UM JANTAR DE BARÕES
Invocação
Musa da sopa e do cozido, inspira-me!
Pândega musa, que sorris ao vate
Em molho de açafrão, e de tomate,
Um cego adorador… achaste em mim:
Transforma o estro meu em lombo assado;
Da minha inspiração faz um pudim.
Tu, filha dos barões, musa do unto,
Nasceste na cozinha entre caçoilas;
Saudaram-te no berço alhos, cebolas,
Do cominho tiveste uma ovação;
Depois, trajando galas de toucinho,
Eu vi-te nas bochechas de um barão.
Namorado de ti, fiz-te meiguices
Por detraz de um peru, e tu de lá
Sorriste-me através da nédia pá
De vitela gentil, rica de arroz!
Ai! era!… e nem eu sei se foi mais linda
Aquela gorda pata… que te pôs!
Tu fizeste de mim um novo Cláudio,
Inspiraste-me a fé num rodovalho.
Traguei indigestões, arrotos d’alho,
Bernardas na barriga suportei.
Tomei chá de macela… e, em prémio disto,
O teu auxilio, ó musa, não terei?!
I
Dentro e fora iluminado
O palácio dum barão,
Fulgurante representa
Um enorme lampião.
Jorram límpidas vidraças
Sobre as populosas praças
Ondas trémulas de luzes.
Vai lá dentro grande gozo,
Nesse alcáçar radioso
Do barão dos Alcatruzes.
D’Alcatruzes é chamado,
Porque, sendo ainda moço,
Muitos baldes d’água fresca
Dizem que tirou dum poço.
Nenhum outro mais destreza
Revelou na árdua empresa
De puxar acima um balde.
Um que seja tão robusto
Há-de vir mui tarde e a custo
Do concelho de Ramalde.
É barão; não vale a pena
Discutir-lhe os nobres feitos;
É barão dos Alcatruzes,
Já tem pagos os direitos.
Inda é mais; pois, além disto,
É comendador de Cristo
Com bastante indiscrição.
Mal diria Cristo, outrora,
Que seria posto agora
No peito dum vendilhão!
E mais ele, que os tocava
Com terrivel azorrague!
Mas os Judas vendem Cristo,
Ponto é haver quem pague.
E o barão dos Alcatruzes
Neste século das luzes
Também fez de fariseu.
E, também, se necessário,
Representa de Calvário
Onde a cruz se suspendeu.
II
Num salão vasto, opulento
Um banquete se vai dar;
Nos cristais reflecte o ouro
A fulgir, a cintilar.
Os rubis e a cor da opala
Transfiguram esta sala
Em olímpicas mansões.
Mas a alma cai por terra
Quando vê que ali se encerra
Dúzia e meis de barões.
Da terrina a caudal sopa
Em silêncio é devorada.
Só então fingiram d’homens,
Porque não disseram nada.
Mas venceu a natureza!
Um barão por sobre a mesa
Estendendo o prato diz:
“Ó compadre!isto é qu’ébô!
Venha sopa, e acabô!
Cá de mim torno à matriz!”
O barão de Cogumelos,
Junto estando à baronesa
Que se diz dos Sacatrapos,
Quis fazer-lhe uma fineza.
Arrastou pra junto dela
Um peru, e a cabidela
No prato lhe despejou.
E lhe diz: “Cá isto é nosso;
Coisa que não tenha osso
É pró estâmago, e arrimou!”
Outro diz à gorda esposa
Que bem perto de si tem:
“Bai-le bobendo po’riba,
Ó mulher, come-le bem!”
Este pede ao seu vizinho
“Que lh’atice bem no binho
Qu’é da bela Companhia.”
Diz aquele ao seu fronteiro
“Que lhe chegue um frango inteiro,
E biba a santa alegria!”
III
As saúdes já começam;
É um gosto agora vê-los:
Estas caras representam
Tomates de cotovelos
E, através do escarlate
Do legítimo tomate,
Transuda um óleo que brilha.
Cada qual tem as orelhas
Encarniçadas vermelhas
Como as asas de uma bilha.
Pega no copo e exclama
O barão de Pimpinelas:
“Vito sério! um home fala
Sem preâmbulos nem aquelas!
À saúde e alegria
Desta bela companhia
E com toda a estifação!
Pra que todos cá binhamos
Estifeitos como bamos
De casa do sor barão!”
E os hurras retumbaram
Pela sala do festim!
Baltasar nos seus banquetes
Nunca ouviu gritar assim!
Sobre a mesa deram murros,
Saudaram com grandes urros
O barão dos Alcatruzes;
Mas alguns com mágua sua,
Já cuidavam ver a Lua,
Não podendo ver as luzes.
Mas, entre eles, um existe,
Literato em seu conceito,
A palavra pede, e reina
Um silêncio de respeito.
Ele diz: “Risonhas galas
Que refrangem nestas salas
Repercutem, simbolizam
Acrimónias insolúveis,
Nos acrósticos volúveis
D’epopeias que eternizam.
Pandemónios exauríveis
De indeléveis congruências,
Requintados se escurecem
Nos empórios das ciências
E libérrimos se escudam
Nas facanhas que transsudam
Em fantasiosas luzes.
E, portanto, a mais aludo,
Quando, férvido, saúdo
O barão dos Alcatruzes!”
Sucedeu o grito ao pasmo!
Nunca se viu coisa assim!
O orador foi abraçado
Com furor, com frenesim!
“Isto é qu’é!” dizia um,
Convertido em rubro atum,
Beterraba até não mais.
“Viva Cic’ro!” outro dizia,
Despejando a malvazia
Com grasnidos infernais.
IV
E a pândega findou. Mas alta noite,
Disseram-nos fiéis informações
Que grande movimento houve de tripas,
E grande salto deram as torneiras
Das pipas convertidas em barões
Ou, antes, dos barões tornados pipas.
Camilo Castelo Branco