07/01/2020

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A VIAGEM, ENFIM


Isto de ter sempre o mesmo sonho todas as noites torna-se aborrecido.
Era assim: saía de casa, ia até ao carro e dizia à família «vamos lá fazer essa viagem». Primeiro entravam a mulher e as duas crianças, depois os pais, ele instalava-se ao volante e pronto, não havia lugar para os sogros! Era sempre a mesma coisa. Por mais que empurrassem, não conseguiam metê-los lá dentro.
Acordava a suar, empurrando ainda qualquer coisa que não estava lá.
A mulher aconselhou-lhe uns calmantes, para ver se o sonho se ia.
Mas nada. Lá vinha sempre, todas as noites. É verdade que empurrava menos, talvez os calmantes, mas continuava naquele desespero de não conseguir enfiar os sogros no carro alucinante.
Os sogros disseram-lhe que não se interessavam em ir, não faziam questão, já estavam velhos para viagens.
Os pais prontificaram-se a ceder os lugares deles.
Toda a família colaborava, mas o sonho continuava.
Chegou a fazer experiências, a meter a família completa no velho Citroën arrastadeira. E conseguia, lá se metiam todos, mais ao menos apertados mas entravam. Mas no sonho não.
A coisa tornava-se desesperante.
Porque é que não vais ao Mora? Ele é psicanalista, explica-te, tira-te isso – insistia a mulher, já arreliada, e preocupada também, com aquelas viagens nocturnas e frustradas em que ele se envolvia sem culpa.
O Mora era amigo de infância, nem sequer permitia que ele pagasse, era extraordinário! Às vezes até ia lá jantar.
E respondeu à mulher:
Tens razão, Xuxa, vou mesmo, que isto assim não pode ser. Tens sempre razão, menina.
Deu-lhe um beijo e atirou-se para o consultório do Mora. Contou tudo. O Mora mandou-lhe contar mais, o passado também, que sendo amigos de infância, o passado continua sempre oculto, ao que disse. Deitado, contou-lhe o que lhe veio à cabeça. E a coisa pareceu esclarecer-se. O que ele precisava era de derivar, sabem, encontrar qualquer coisa além do carro e da viagem que não fazia em sonhos. Derivar. Substituir o carro. Agradeceu e convidou o Mora para jantar no sábado. O Mora não podia e deu-lhe uma palmada nas costas.
Chegou a casa aliviado e esclareceu a Xuxa:
Vou derivar, menina.
Derivar?
Sim, substituir o carro e tudo o mais, excepto tu, as crianças, os velhos e a casa. Amo-te mas vou derivar.
Xuxa concordou. Desde que derivar resolvesse o caso, ele que derivasse quanto fosse preciso.
Nessa noite ainda teve o sonho e acordou estafado de tanto empurrar os sogros.
No dia seguinte avisou para o emprego que ia mais tarde, foi ao Banco buscar o que sobrava e entregou-se a uma moto, uma Rudge poderosa e em segunda mão. Estava a derivar em cheio.
O sonho foi-se diluindo. Cada vez empurrava menos, com grande satisfação da mulher.
Então, após ter passado um fim-de-semana a mexer na máquina para ver se percebia alguma coisa e a dar volta pela vizinhança de capacete preto e amarelo enfiado na cabeça, deixando o carro na garagem, sentiu-se livre.
E era verdade.
À noite não sonhou. No dia seguinte a Xuxa disse-lhe que até parecia dez anos antes.
Tudo voltou à normalidade, os sogros deixaram de se preocupar com a viagem, as crianças entusiasmaram-se com os estoiros da moto. E o carro na garagem.
E, de repente, tornou a sonhar. O sonho.
Assim: saiu de casa, foi até ao carro e disse à família «vamos lá fazer essa viagem». A mulher e as crianças entraram, depois os pais, e ele instalou-se ao volante. E não havia lugar para os sogros! Começaram a empurrar para os meter lá dentro, e nada. Então virou-se para a garagem. Estava um pouco diferente mas a moto continuava lá dentro. Deixou tudo, montou a moto, pôs o chapéu de palha e avançou pela estrada. Uma estrada larga, muito aberta a tudo. Pareceu-lhe já a ter visto alguma vez. Olhou para trás e lá ao longe, à porta da casa, continuavam a empurrar-lhe os sogros. Acenou uma despedida, acelerou e continuou, olhando árvores e nuvens.
Ainda não voltou.”


Mário-Henrique Leiria, “Contos do Gin-Tonic”, pp. 117-199, Editorial Estampa, 2. ª ed., 1976.

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