“Por
acaso, em uma das minhas anteriores visitas a Londres, eu travara
relações com uma sufragista de alto coturno, à qual manifestara
toda a minha simpatia pela «causa», e, por acaso também, foi ela
uma das primeiras pessoas que encontrei quando entrei em funções.
Reafirmei-lhe os meus sentimentos, e isso (à parte algum exagero)
com sinceridade e convicção: a mulher inglesa, geralmente muito
mais culta do que o homem tinha boas razões para exigir o direito do
voto.
Admirável
foi o efeito que produziram as minhas declarações, comunicadas sem
demora aos corpos dirigentes: veio logo uma delegação perguntar-me
se a República Portuguesa não estaria disposta a praticar almejada
reforma, e em cada sufragista surgiu uma defensora da nossa
revolução, que bem precisava desses favores, pois a atmosfera de
que fruía em Londres era péssima.
Constava
que o governo inglês tao cedo não reconheceria a nossa república,
e assim, mostrando-me publicamente a sua estima, as sufragistas
manifestavam-se contra os seus actuais opressores.
Toda
esta salada seria inverosímil e absurda noutro país, mas a
Inglaterra é a pátria consagrada de todas as extravagâncias, e um
amigo meu, que a conhecia a fundo, comparava-a ao Celeste Império.
Para em tudo se assemelharem, afirmava ele, até houve na
Grã-Bretanha uma espécie de muralha da China: aquela que o
imperador Adriano construiu, para separar a Escócia do resto da
ilha, e estendia-se do mar do Norte ao Atlântico… E com razão se
consideram os Ingleses como sendo o povo mais espiritualista da Terra
– ajuntava ele: até a gramática inglesa admite incondicionalmente
a existência da alma humana, como agora do «Grande Lafaiette» (um
cómico que morrera queimado em Edimburgo): «o grande Lafaiette
perdeu ali a vida e perdeu o seu cão», entendendo-se que a alma do
cómico perdeu o seu corpo e o cão…
Estas
brincadeiras, que eu transmiti num «chá das cinco» à minha amiga
sufragista, granjearam-me a fama de humorista, qualidade muito
apreciada no Reino Unido, e para me ouvir ofereceram-me um soberbo
banquete, onde entre outras notabilidades encontrei o Conan Doyle,
então já absolutamente afogado no espiritismo. Veio para mim de
braços abertos, chamando-me ilustre colega: constava-lhe que eu
evocava a alma do grande Lafaiette e com ela tinha amiudadas
conferências!...
Esse
banquete (de resto opíparo, muito bem servido, e abundante em
convivas jovens e lindas) foi dos episódios mais alegres da minha
vida, e tão bem disposto me encontrava que, quando me chegou a vez
de discursar, dei largas à fantasia, tendo repentes felizes que
foram delirantemente aplaudidos. Porém, no auge do arrebatamento,
feita a apologia do sufragismo, atrevi-me a forragear pelos campos do
humorismo, e declarei que pessoalmente ansiava pelo restabelecimento
do matriarcado, na esperança de que os homens seriam tratados com as
atenções e desvelos que hoje dispensamos ao sexo frágil, e,
enquanto as mulheres suavam e tressuavam para nos sustentar e
enfeitar, nós levaríamos a vida repimpados em flácidos coxins,
fumando por narquilés, e tocando harpa…
Foi
um balde de água fria lançado sobre aquela fogueira de entusiasmo.
Após
um momento de profundo e geral silêncio ouviram-se murmúrios de
desaprovação; as estenógrafas suspenderam o seu trabalho: algumas
senhoras idosas levantaram-se e saíram, e até o Conan Doyle, de
olhos cerrados e mãos cruzadas sobre a barriga, parecia ter
mergulhado definitivamente nos abismos onde só os espíritos adejam…
De
nada me valeu acudir sem demora apodando de mero gracejo a atrevida
passagem, a qual eu renegava, mas veio depois uma comissão
participar-me que não seria publicada na imprensa. Algo estomagado
com a forma peremptória como foi feita a comunicação, respondi que
não consentia em cortes: ou o discurso todo ou nada. Aqui ardeu
Tróia. Houve clamores de revolta e olhares assassinos, e tomando o
café já frio separámo-nos sem excessos de cordialidades.
Não
há dúvida, pensava eu com os meus botões, a caminho da cama, fui
buscar lã e vim tosquiado.
Puro
engano. Ao dia seguinte a imprensa sufragista dava conta do banquete,
nos mais elogiosos termos para Portugal e para o seu representante.
Belo
exemplo de sentido político, justo e prático: naquele momento eu
representava um trunfo no jogo das sufragistas e elas entenderam que
não seria conveniente perdê-lo. Foi quando me convenci de que a
vitória da «santa causa» era certa…
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