INVENTÁRIO
É um barco e uma
pedra.
É a pedrada no
charco.
É o orvalho na
erva.
É a bandeira. É o
arco.
É a chuva. É o
outono.
É a sopa de
hortelã.
É o cão que não
tem dono.
É o bicho da maçã.
O tempo que está
mudando.
É o orgulho
nacional.
É a balada. É o
fado.
A galinha no
quintal.
O carneiro a remoer
as hortenses da
avenida.
E o silêncio a
bater
numa vidraça
partida.
É o ódio que nos
cega.
É o braço que se
estende.
O discurso, a
cabra-cega.
É o homem que se
vende.
É o peito que não
pára
de apertar o
coração.
É a comida mais
cara.
É a cara contra o
chão.
É a semente na
terra.
É o trigo na seara.
É uma arma de
guerra.
É a raiva que a
dispara.
É o lobo que devora
as canelas da
poesia.
É o momento. É a
hora
de estrangular a
alegria.
É a videira é o
vinho.
É o copo de
amargura.
É a santa da
Ladeira.
São as raias da
loucura.
É o tejo que se
embala
num cacilheiro
doente.
É o desejo que
estala.
É o buraco no
dente.
É o dinheiro. É o
juro.
O amor em
percentagem.
É o passado e o
futuro.
É uma questão de
coragem.
É o que sobra. É a
falta.
É o emprego
decente.
É a amizade da
malta.
É a ternura da
gente.
É a mulher que
pariu.
É o filho que se
fez.
É a corda e o
rastilho.
É o sarilho outra
vez.
É o mapa desenhado
sobre as costelas
partidas.
É o sorriso
emprestado.
A hipoteca das
vidas.
É a mágoa
registada.
É a patente do
medo.
É a cultura
enlatada.
É o drama sem
enredo.
É o rugido da fera.
É o marquês de
Pombal.
O cravo na
primavera.
Uma prenda no Natal.
É o azul. É o
vício.
É a carga de
porrada.
É a cara do
polícia.
É a liamba fumada.
O ministro que
promete
que amanhã irá
chover.
O desenho na retrete
para toda a gente
ver.
É a dança é o
marasmo.
A paragem do
autocarro.
É atingir o orgasmo
com o fumo de um
cigarro.
É chamar nomes à
mãe
do tipo que está ao
lado
e responder a
alguém:
Eu estou bem, muito
obrigado!
Joaquim Pessoa,
“Português Suave”, pp. 65-7, Círculo de Poesia – Moraes
Editores, Lisboa, 1979.
NB: Este inventário é antes do inventário do BPN
NB: Este inventário é antes do inventário do BPN
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