SOB UM CÉU NÓMADA
as palavras que
espalhas
não consolam
tu não falas para
os homens
que guardam os seus
haveres em currais
amas o deserto
o lume da estrela
filtrado pela lã
tens a pele
endurecida que acalma os ventos
e um afago prenhe
nos lábios
as palavras que
ruminas
não os acordam
só a ti mantêm
elas acordado
Sérgio Pereira, “O
Sol é um Moccasin”, p.15, Agosto Editores, 1996.
“AMIGOS FOI PARA
ISTO QUE VIESTES?”
agora que as pedras
rasgam o muro do
poema
estar vivo é um
escândalo
contradizer quem
engole uma espada de fogo
pode ser fatal
desprezai-me na
minha específica
integridade cruel
desprezai-me vinte e
quatro horas
todos os segundos
não pergunteis se é
merda ou indiferença
o que me escorre da
língua
bebei e nas costas
suai as camisas
o cenário no jardim
de Getsemani
com menos pormenores
era mais
apocalíptico
dizei às fúrias
que acordo com o
sexo dilatado
que nasci com seis
dedos em cada mão
que passo ao lado
das serpentes
contundidas
e por cima das
gabardinas sujas
há-de haver um
lugar
para o vosso medo
há-de haver uma
chuva
que vos assole os
cabelos
moldei-vos como
relâmpagos de morte
na cinza dos
inquisidores
é por isso que a
noite vos visita
um pouco mais cedo
cada dia que passa
Sérgio Pereira,
“Técnica do Escalpe”, p.61, Agosto Editores, 1996.
ENTÃO ELES
PERGUNTARAM: O QUE É ISTO O QUE É ISTO? QUE ESTÁS PARA AÍ A
DIZER?
respondi-lhes com
blocos de silêncio
respondi-lhes à
unha
com descargas
eléctricas com sapos abortados
com vírus
descondicionados
com sapatas em bico
com a poesia de
Breyten Breytenbach
com as tuas
mini-saias selvagens
com ventos do leste
com as tarântulas
dos crivos
respondi-lhes,
respondi-lhes nada lhes disse
e não deixei de os
desidratar
até que moribundos
terminassem
as suas refeições
de venenos práticos
o meu coração não
bate ao ritmo
das obras-primas
Sérgio Pereira,
“Técnica do Escalpe”, p.62, Agosto Editores,1996.
“VENDO-TE A MINHA
RESSACA”
um olhar “vendo-te
a minha ressaca”
ou então a safra
dos horizontes
saio da terra vou a
pé
saúdo os cães
com mão morta
hipnotizo-os
o meu canto provoca
linchamentos
entre as formigas
também depende de
ti esta morada em movimento
que apanha vírgulas
no ar
e as sacode para
dentro de uma luva de metal
toca-me com a noite
na janela dos ossos
e sentirás o rachar
do albião
como um amplexo na
nuca da cascata
sou feito de areia e
chuva desavinda
escavo uma passagem
sem espessura
para o outro lado do
silêncio
Sérgio Pereira,
“Técnica do Escalpe”, p.63, Agosto Editores, 1996.
estou à espera de
um milagre
é simples como
isto:
o massacre vem antes
da revelação
enterre-se agora o
machado
para mais tarde as
aves de arribação
não fazerem desta
colina
um rio cintilante de
ossos
#
é verdade
tenho a devoção senão o amor
de algumas marés pouco recomendáveis
exige-se de mim que quebre a noz
mas que poupe o verme
#
é verdade
tenho a devoção senão o amor
de algumas marés pouco recomendáveis
exige-se de mim que quebre a noz
mas que poupe o verme
Sérgio
Pereira, “Istmos e
Hordas”, p. 57,
Edições TOMAHAWK,
Porto, 1997.
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