“«I AM WHAT I AM.» É esta a última oferenda do marketing ao mundo, o estádio último da evolução publicitária, para lá, muito para lá de todas as exortações a sermos diferentes, a sermos nós próprios e a bebermos Pepsi. Décadas de conceitos para aqui chegar, à tautologia pura. EU = EU. Ele corre na passadeira à frente do espelho do ginásio. Ela volta do trabalho ao volante do Smart. Será que se vão encontrar?
«EU SOU AQUILO QUE SOU.» O meu corpo pertence-me. Eu sou eu, tu és tu, e isto não vai nada bem. Personalização de massa. Individualização de todas as condições — de vida, de trabalho, de infelicidade. Esquizofrenia difusa. Depressão galopante. Atomização em pequenas partículas paranóicas. Histerização do contacto. Quanto mais quero ser Eu, maior é a sensação de vazio. Quanto mais me exprimo, mais me esgoto. Quanto mais vou atrás das coisas, mais cansado fico. Eu ocupo-me, tu ocupas-te, nós ocupamo-nos do nosso Eu como num entediante balcão de atendimento. Tornámo-nos os representantes de nós próprios — estranho comércio, fiadores de uma personalização que se assemelha, afinal, a uma amputação. Afiançamos até à ruína, com uma falta de jeito mais ou menos disfarçada.
No entretanto, faço a gestão. Da procura de uma identidade, do meu blog, do meu apartamento, das últimas patetices da moda, das histórias a dois ou de cama... a quantidade de próteses que é preciso para sustentar um Eu! Se «a sociedade» não se tivesse tornado esta abstracção completa, designaria o conjunto das muletas existenciais que me estendem para que me continue a arrastar, o conjunto das dependências que contraí em troca da minha identidade. «O deficiente constitui o modelo da cidadania que vem». Não é sem uma certa dose de premonição que as associações que o exploram reivindicam actualmente para o deficiente um «rendimento de subsistência».
A obrigação constante de «ser alguém» preserva o estado patológico que torna necessária esta sociedade. A obrigação de ser forte produz a fraqueza pela qual ela se mantém, ao ponto de tudo parecer assumir um aspecto terapêutico, até trabalhar, até amar. Todos os «tudo bem?» que trocamos ao longo do dia sugerem uma sociedade de pacientes sempre a medir a temperatura uns dos outros.”
Comité Invisível, “A Insurreição que Vem”, pp. 14-16, Edições Antipáticas, Lx, 2010.
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