02/10/2013

Poesia em sentido estrito é um rito e em sentido lato é 'aquele' acto (dizem)...


"Onde bate mais certa a crítica à personalidade poética é na atribuição aos poetas de um orgulho por vezes insolente. Desconfiai da modéstia e não os acompanhais na auto-crítica. A auto-crítica dum poeta (e porque não de qualquer criador?) é o reconhecimento por ele próprio de que é capaz de fazer melhor – só isso às vezes – mas quando parte dum homem superior e esse reconhecimento é portanto fundado, que censura nos pode merecer? Não é o aperfeiçoamento consciente a condição duma vida bem cheia?
As ideias saíram embaciadas em halos que pareciam resplendores de santos e hoje são nevoeiros baços, a forma mal apropriada, palavras debatendo-se com ideias. Que fazer? Escolho e glória da Poesia! Técnica, ou espantalho a meter medo aos tímidos, técnica ou adorno de que se pode passar, sem falta de dignidade e grandeza para os verdadeiros criadores de formas sem técnica. «Exprimir eis a palavra mágica (que aliás nada explica)», diz Casais Monteiro no seu ensaio «A Realidade Poética». Mais adiante no mesmo ensaio lê-se: «O Poeta ignora. E este ignorar é a chave do seu mais íntimo saber». Mas ignora o quê? Afinal se de facto ignora, se cria seja o que for, a menos que se considerasse inconsciente, advinha ou recorda, mas antes – advinha – pois não pode recordar se ignora. É pois um símbolo de um símbolo a citação de Baudelaire que se nos depara mais adiante no mesmo ensaio: «J’ai de souvenirs comme si j’avais mille ans».
Vulgarmente entende-se por poesia, em sentido lato, quer como substantivo quer na forma adjectivante, qualquer coisa de vago que não se pode explicar bem por palavras e em sentido restrito uma peça pertencente a uma das grandes divisões dos géneros literários, escrita numa forma especial: em verso.
Poesia em sentido lato não é mesmo nada de vago porque tem por objecto coisas que existem embora recém-criadas; a confusão está exactamente em que ele opera sobre dados recém-aparecidos por inexistentes anteriormente.
Poesia no sentido restrito a que nos referimos não é mais do que um conjunto de versos e estes um conjunto de palavras (ou uma palavra ou mesmo um certo número de palavras e parte duma, com se vê numa cantiga de D. Diniz e num poema de António Feijó) com um determinado número de sílabas com determinados pontos do percurso fonético acentuados (um dos caracteres da «musicalidade»), e dizem ainda os mais cautos: formando sentido."

José Blanc de Portugal, “Poeta e poesia”, in Cadernos de Poesia, 2, pp.38-40, 1940.

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