A MEIO CAMINHO dos vivos e dos mortos, e mais próximo destes, sinto por vezes uma singular quietude. Se morrer assim, será com a certeza de que a Fernanda me espera de braços abertos. A sua sabedoria, a sua ternura, o seu amor permitem-me continuar a viver; ela transmite-me a sua coragem de maneira tão evidente como o sol a luz e o calor. Ela vela por mim, se não como poderia eu, contra toda a lógica, continuar a durar?
Mas há dias de um vazio total. Não se passa nada. Esta desolação fascina-me: é cinzenta, monótona, feita de silêncio. Como se fosse o último dia, o dia a que mais nenhum se seguirá. Vagueio como um sonâmbulo e todos os lugares me parecem fora da realidade. Sinto-me sem desejo, numa atonia tal que nada consegue interessar-me, nem ontem, nem hoje, nem amanhã. Se o limbo existisse, seria assim, idêntico a estes momentos, de inapetência, de confusas divagações.
Horas perdidas, mas que me deixam contente. Estes tempos mortos dão mais intensidade aos tempos vivos do passado: não há música sem cesuras de silêncio.
O que me faz temer esta espécie de desfalecimentos é o facto de me separarem da Fernanda; a corrente já não passa ou passa debilmente. É só então que ela está entre os mortos, que se esquece de que eu existo.
Ernesto Sampaio, “Fernanda”, p.78, Fenda, 2005.
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