24/03/2018

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São Martinho de Anta, 24 de Março de 1940 Tentativa fustrada para ir às Terras do Preste Baçal. Bragança é longe. Além disso, o carro, apenas atravessou o distrito de Vila Real, pôs-se a refilar, a refilar, até que parou de todo.
E aí vou eu por aqueles ermos, doido, aos gritos, sob um sol africano, a pedir gasolina às fragas e aos sobreiros. De regresso, com um regador dela, ordenhada a seis quilómetros de distância do fundo dum bidão providencial, alagado em água, dou de caras com o motor esventrado pelo companheiro.
E aquela miséria mecânica, ali ao sol como os figos, tirou-me quantas ilusões em nome da humanidade eu tinha posto nos cilindros e nas rodas. Evidentemente que uma dedada singular imprimira no aço e no latão a marca do primeiro arfar da vida. Mas a coisa era cosida com parafusos a mais. Não havia naqueles ferros a interpenetração de tudo, a mágica ligação de tudo, que faz dum corpo humano um milagre de resistência e adaptação.Lá estavam realmente as causas da paragem inesperada: a bóia solta, a gasolina entornada, e o coração do carro sem alento. Mas um homem, mesmo estendido e aberto numa mesa de pedra, era outra coisa. Não tinha nunca aquele ar mesquinho e ridículo de brinquedo estragado.

Miguel Torga, “Diário I”, pp. 139-140, 1941, Coimbra.

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