31/01/2012

PROTOPOEMA DA SERRA D'ARGA

Sonhei ou bem alguém me contou
Que um dia
Em San Lourenço da Montaria
Uma rã pediu a Deus para ser grande como um boi
A rã foi
Deus é que rebentou
E ficaram pedras e pedras nos montes à conta da fábula
Ficou aquele ar de coisa sossegada nas ruínas sensíveis
Ficou o desejo que se pega de deixar os dedos pelas arestas das fragas
Ficou a respiração ligeira do alívio do peso de cima
Ficou um admirável vazio azul para crescerem castanheiros
E ficou a capela como um inútil côncavo de virgem
Para dançar à roda o estrapassado e o vira
Na volta do San João d’Arga

Não sei se é bem assim em San Lourenço da Montaria
Sei que isto é mesmo assim em San Lourenço da Montaria
O resto não tem importância
O resto é que tem importância em San Lourenço da Montaria
O resto é a Deolinda
Dança os amores que não teve
Tem o fôlego do hálito alheio que lhe faltou a amolecer a carne
Seca como a da penedia

O resto é o verde que sangra nos beiços grossos de apetecerem ortigas
O resto são os machos as fêmeas e a paisagem é claro
Como não podia deixar de ser
As raízes das árvores à procura de merda na terra ressequida
Os bichos à procura dos bichos para fazerem mais bichos
Ou para comerem outros bichos
Os tira-olhos as moscas as ovelhas de não pintar
E o milho nos intervalos

Todas estas informações são muito mais poema do que parecem
Porque a poesia não está naquilo que se diz
Mas naquilo que fica depois de se dizer
Ora a poesia da Serra d’Arga não tem nada com as palavras
Nem com os montes nem com o lirismo fácil
De toda a poesia que por lá há

A poesia da Serra d’Arga está no desejo de poesia
Que fica depois da gente lá ter ido
Ver dançar a Deolinda
Depois da gente lá ter caçado rãs no rio
Depois da gente ter sacudido as varejeiras dos mendigos
Que também foram à romaria

As varejeiras põem as larvas nos buracos da pele dos mendigos
E da fermentação
Nascem odores azedos padre-nossos e membros mutilados

É assim na Serra d’Arga
Quando canta Deolinda
E vem gente de longe só para a ouvir cantar

Nesses dias
as larvas vêem-se menos
Pois o trabalho que têm é andar por debaixo das peles
A prepararem-se para voar

Quanto aos mendigos é diferente
A sua maneira de aparecer
Uns nascem já mendigos com aleijões e com as rezas sabidas
Do ventre mendigo materno
Outros é quando chupam o seio sujo das mães
Que apanham aquela voz rouca e as feridas
Outros então é em consequência das moscas e das chagas
Que vão à mendicidade

Não mo contou a Deolinda
Que só conta de amores
E só dança de cores
E só fala de flores
A Deolinda

Mas sabe-se na serra que há uma tribo especial de mendigos
Que para os criar bem
Lhes põem desde pequenos os pés na lama dos pauis
Regando-os com o esterco dos outros

Enquanto ali estão a criar as membranas que valem a pena
Vão os mais velhos ensinando-lhes as orações do agradecimento
Eles aprendem
Ao saberem tudo
Nasce de propósito um enxame de moscas para cada um

Todas as moscas que há no Minho
Se geraram nos mendigos ou para eles
E é por isso que têm as patinhas frias e peganhosas
Quando pousam em nós
E é por isso que aquele zumbido de vai-vem
Das moscas da Serra d’Arga
Ainda lembra a mastigação de lamúrias pelas alminhas do Purgatório
Em San Lourenço da Montaria

Este poema não tem nada que ver com os outros poemas
Nem eu quero tirar conclusões com os poetas nos artigos de fundo
Nem eu quero dizer que sofri muito ou gozei
Ou simplesmente achei uma maçada
Ou sim mas não talvez quem dera
Viva Deus-Nosso-Senhor

Este poema é como as moscas e a Deolinda
De San Lourenço da Montaria
E nem sequer lá foi escrito

Foi escrito conscienciosamente na minha secretária
Antes de eu o passar à máquina
Etc. que não tenho tempo para mais explicações

É que eu estava a falar dos mendigos e das moscas
E não disse
Contagiado pelo ar fino de San Lourenço da Montaria
Que tudo é assim em todos os dias do ano
Mas aos sábados e nos dias de romaria
Os mendigos e as moscas deles repartem-se melhor
São sempre mais
E creio de propósito
Ser na sexta-feira à noite
Que as mendigas parem aquela quantidade de mendigozinhos
Com que se apresentam sempre no dia da caridade

Elas parem-nos pelo corpo todo
Pois a carne
De tão amolecida pelos vermes
Não tem exigências especiais
E porque assim acontece
Todos os meninos nascidos deste modo têm aquele ar de coisa mole
Que nunca foi apertada

Os mendigos fazem parte de todas as paisagens verdadeiras
Em San Lourenço da Montaria
Além deles há a bosta dos bois
Os padres
O ar que é lindo
Os pássaros que comem as formigas
Algumas casas às vezes
Os homens e as mulheres

Por isso tudo ali parece ter sido feito de propósito
Exactamente de propósito
Exactamente para estar ali
E é por isso que se tiram as fotografias

Por isso tudo ali é naturalmente
Duma grande crueldade natural
Os meninos apertam os olhos das trutas
Que vêm da água do rio
Para elas estrebucharem com as dores e mostrarem que ainda estão vivas
Os homens beliscam o cu das mulheres para que elas se doam
E percebam assim que lhes agradam
Os animais comem-se uns aos outros
As pessoas comem muito devagar os animais e o pão
E as árvores essas
Sorvem monstruosamente pelas raízes tudo o que podem apanhar

Assim acaba este poema da Serra d’Arga
Onde ontem vi rachar uma árvore e me deu um certo gozo aquilo
Parecia a queda dum regímen
Tudo muito assim mesmo lá em cima
E cá em baixo dois suados à machadada

Ao cair o barulho parecia o duma coisa muito dolorosa
Mas no buraco do sítio da árvore
Na mata de pinheiral
O azul do céu emoldurado ainda era mais bonito
Em San Lourenço da Montaria"


Moledo, Agosto de 1948

António Pedro

António Pedro, (1909-1966)


PREFÁCIO

                Hesitei muito antes de dar um título ao que vai seguir-se. Há pessoas que julgam os títulos de somenos importância, coisa que depois terá sua razão de ser na continuação da leitura. Há outras pessoas que depois de terem feito um livro pegam no nome duma das personagens escrevem-no com letra mais grossa na capa, como se bastasse. As primeiras funcionam como os provérbios, as segundas como os padrinhos. Ambas estão erradas, como não podia deixar de ser. Os provérbios podem ser aplicados assim como nos lembram ou ao contrário e estão sempre bem. É essa a razão da sabedoria popular ou daquilo que assim se chama e é ingenuidade e, por consequência, o contrário da sabedoria. Os nomes que os padrinhos dão a uma criança, quando chega o momento de ser necessário designá-la, são sempre tão mal escolhidos que a gente de casa passa logo a chamar-lhe um diminutivo qualquer e, e quando cresce, a gente de fora passa sempre a chamá-la pelo apelido, que é o nome do pai com quem entende que deve parecer-se por uma razão de hereditariedade. Os padrinhos só acertam por acaso e estes acasos felizes são excepções que não fazem senão confirmar a regra que lhes é contrária.
                Não foi portanto fácil a escolha deste título ou, mais verdadeiramente, não teria sido fácil se ele fosse verdadeiramente um título. O que se vai ler é apenas uma narrativa daquilo que não aconteceu, como deve ser em todos os romances. Chama-se portanto aquilo que é, embora não seja costume.
                Outro facto que talvez mereça os reparos iniciais que justificam a existência de prefácios é a designação de romance. No Brasil, aqui há tempos, houve uma grande discussão entre escritores acerca do que devia chamar-se novela e do que devia chamar-se conto. Todos tinham tanta razão com os seus argumentos que só a teve a ponto de não valer a pena falar-se mais do assunto. Uns optavam pela questão do tamanho, outros pela questão do conteúdo, outros pela maneira de contar as coisas: Creio ser de Mário de Andrade a justa teoria:
                 – Romance é aquilo que o autor resolveu designar assim.
                A história que vai ler-se é simples como as plantas e nasceu naturalmente, embora, como elas, tenha por vezes formas inesperadas. Não tem intenção de provar coisa nenhuma mas, se a tivesse, seria a de que há uma lógica do absurdo tão verdadeira, pelo menos, como a lógica racional, embora muito mais espontaneamente aceitável do que ela e, se não fosse perigoso tocar em tais questões, muito mais parecida com aquela que usam artistas que o povo entende: oleiros de romaria que fazem gatos dourados com manchas vermelhas e cara de gente, contistas de serão provinciano que inventam histórias da carochinha, e aquele poeta extraordinário e desconhecido que inventou o rico pico serenico quem te deu tamanho bico ou de ouro ou de prata mete aqui nesta buraca.
                Resumindo, pois, o que vai seguir-se, porque é narrado de forma sem pretensões, é Apenas uma Narrativa e, porque assim me pareceu bem, subintitula-se Romance.
                A quem não cheguem estas explicações, absolutamente desnecessárias, recomenda-se que não leia este livro. Aos outros também, por modéstia obrigatória, sem nenhuma convicção.

O AUTOR

António Pedro in «Apenas uma Narrativa», pp. 15-17, 2.ªed. Editorial Estampa, Lx, 1978

Segunda Edição da Estampa, 1978.

Revista Piolho 008


«Os moradores ligam muitas vezes uns para os outros a perguntar coisas. A perguntar onde está ... Está do outro lado do Atlântico sentado no Piolho.» Rui Costa


Ana Ulisses(ilustrações), António Ramos Rosa, Ricardo Álvaro, Alexandra Antunes, Catarina Ulisses, José Luís Bértolo, Luís Serra, Miguel Sá Marques, Pedro Águas, Marta Peixoto, Oliveira Martins Roxo, Ricardo Marques, José Guardado Moreira, Raul Simões Pinto, Manuel Filipe, Pedro Calcoen, Sylvia Beirute, Cristina Aguiar, Sandra Filipe , rosa azevedo, Luís Pedroso, Rui Almeida, Luís Ferreira, José-Emílio Nelson, Teixeira Moita, Hugo Pinto Santos, A. Dasilva O.,Pedro S. Martins, António S. Oliveira e John Berryman



fazem mais ou menos por esta desordem este
número

o oitavo Fevereiro 2012
Coordenado por Sílvia C. Silva, Meireles de Pinho (capa e arranjo gráfico),Fernando Guerreiro e A. Dasilva O.

Franco nas respostas que são perguntas...

António Franco Alexandre. Fotografia de Manuela C.

QUATRO PERGUNTAS E 5 RESPOSTAS A PROPÓSITO DE OÁSIS

                Parece um livro muito diferente dos anteriores. Parece-me mais explícito e dramático. Por outro lado, o título Oásis, sugere o deslumbramento de quem atravessou desertos. É um livro biográfico no sentido mais intenso da palavra?

                Não é nem mais nem menos biográfico que outro poema qualquer; ou são todos ou não é nenhum. O que talvez seja é mais obviamente narrativo: os meus poemas, mesmo os mais líricos, tendem sempre a ser fragmentos de narrativa são mais extensas, e mais explícitas e dramáticas, como tu dizes. Mas há vários personagens, várias vozes, e não me interessa identificar-me especialmente com nenhuma delas. Quanto ao resto, o livro poderia chamar-se Anti-oásis, o oásis é nele uma figura sobretudo negativa, não é? É o lugar da humidade viscosa, mortífera. Mas duvido que o contrário do oásis seja o deserto.


                O poema é longo com ritmos e vozes distintas, as estrofes, que quiseste bem intervaladas, revelam uma pulsão irregular e bastante sincopada. O poema surgiu impositivamente como monólogo inadiável, ou resulta da junção de diferentes poemas ligados por uma idêntica emoção?

                Foi primeiro pensado, de um modo genérico e formal, e depois escrito continuamente, progressivamente, durante cerca de um ano. Fui escrevendo, improvisando «dentro do tema», e alterando o que tinha escrito, sempre «de trás para a frente»: quando cheguei à última linha, tinha acabado. Mas a estrutura tripartida, simétrica, os paralelismos, estavam fixados à partida, e alguns «episódios» visualizados (mas não escritos). Foi como escrever um conto. A palavra «monólogo» desconsola-me, porque embora tudo o que se escreva tenha necessariamente também a forma da reflexão interior, a intenção é que se sintam claramente as «vozes distintas».


                O eu é neste poema arrebatado e central. Mas eu é aqui também carne, o corpo anatomicamente exposto: olhos, boca, mãos, coração, sangue, carne, corpo, lábios. Este livro indicará uma mudança na tua poesia?

                O personagem mais evidente, às vezes eu e outras ele, é de facto um bocado excessivo, enfático, apesar de andar sempre rodeado de pequenas vozes irónicas ou controladoras. E tem uma irritação, que eu partilho, para com as belas imagens do corpo, toda a fantasia lírica do corpo, que é instrumento de sujeição dos corpos. O sangue, a carne, o veio de hipocondria, são maneiras que ele tem, um tanto brutais, de lutar contra a sedução da imagem. O oásis é também isso, a imagem bem acabada, pelicular.

                Dizem-me sempre que mudo muito, de livro para livro; mas parece-me que a questão, e a linguagem, já estava no Sem Palavras Nem Coisas, e até antes. Eu não penso os meus livros como colectâneas de poemas, mas como poemas completos, necessariamente diferente uns dos outros, até porque de diferentes «géneros». Não posso escrever da mesma maneira um diário de viagem (Visitação) ou o retrato de um amigo (Os Objectos Principais), e assim de seguida.


                Leio o primeiro verso «recebe-me coração espesso de sangue» e o fim do poema: «o coração das folhas para sempre». Este Oásis é um poema de amor? De dissolução? Ou de sobrevivência? Ou principalmente «o verbo que se fez carne»?

                É a carne a fazer-se verbo, não é? Não sei bem. Os primeiros versos são uma invocação, talvez essencialmente uma invocação ao Poema, simbolizando pelas alusões a uma canção de Camões, a um poema de Pessoa… Quando acaba está onde começou, na promessa do poema, que é tudo isso que dizes, amor, dissolução, sobrevivência; se calhar nem chega a haver poema… Entretanto há um passeio por Lisboa, com um companheiro importuno, um diabo menor.

                Por que não me perguntaste nada sobre a presença da música, que é constante, mesmo obsessiva; não se nota? Esse é um dos problemas da leitura que me inquietam, porque há passagens que receio fiquem aberrantes para quem não ligue à alusão musical. Por exemplo todas as frases em inglês são letras de canções, ou títulos. E há ainda um objecto muito importante, o trombone. É preciso pegar num trombone e sentir o inverosímil e maravilhosamente necessário que é fazer música com uma prótese assim. E as conotações históricas do instrumento, umas fúnebres, outras mefistofélicas, outras…, interessam muito. Não quer dizer que todas as alusões ou referências sejam emblemáticas. Formalmente, desejaria cada vez mais fazer poemas como quem faz música, o que não quer dizer «escrever musical».

Entrevista a António Franco Alexandre
In ‘A Phala’, n.º 31, Outubro/Novembro/Dezembro, Assírio & Alvim, Lx, 1992.

20/01/2012

Para o e-leitor...

RICARTE-DÁCIO DE SOUSA «Um acto de amor e posse»
     Cem anos não tinham passado sobre a data de publicação da Bíblia de Guttenberg (1455) já os documentos chegados aos nossos dias apontavam para a existência, no decorrer do séc. XVI, de coleccionadores da letra impressa, a erguerem pacientemente as primeiras bibliotecas particulares.
     Poderemos salientar na época a livraria reunida pelo humanista alemão Willibald Pirkheimer (1470-1530), amigo de Dürer, cujos livros viriam mais tarde a pertencer à família inglesa dos Duques de Norfolk, e os três mil volumes de Jean Grolier de Servières, Visconde d’Aiguisy, Tesoureiro-mor e Embaixador de França (1479-1565) e talvez o maior bibliófilo de Quinhentos.
     Coleccionar é um acto de amor e posse. Exige discernimento e cultura e é incompatível com a ligeireza. Bibliofilia e bibliomania não são, logicamente, uma e a mesma coisa.
    Lembro-me com nitidez da entrevista concedida pelos escritores Roger Stéphane e Bernard Pivot, para um dos seu famosíssimos programas «Apostrophes» da televisão francesa. Stéphane, célebre autor do livro Portrait de l’Aventurier (1.ª ed. 1950) com capítulos inovadores e pioneiros sobre T. E. Lawrence, André Malraux e Ernest von Salomon, ao ser interpelado sobre os seus «amores» das primeiras edições, respondia: «Claro que sim. Amo as tiragens originais, mas atenção, só adquiro as raridades dos escritores que admiro». Neste ponto entra em cena a cumplicidade com o texto que lemos, a corrente estabelecida entre nós e o outro, e o rasgar de horizontes que podem modificar a perspectiva da vida.
     A bibliofilia poderá nascer nesse instante, na tentativa extrema de captar, através do objecto, no qual está inserida uma aventura do espírito, a sensação de partilha. O objecto em si (pelo menos na 1.ª edição) tem um formato, uma qualidade de papel, um aspecto tipográfico a traduzir certamente o consentimento ou a escolha do autor. Muitas vezes as tiragens reduzidas e o grau de raridade aumentou com os anos e a nossa vontade de posse, essa, centuplicou com o refrear do desejo!

   Por vezes as ironias e as leis de mercado, vingam-se na posteridade do mau passadio que o poeta suportou no seu tempo, e de forma implacável exigem o dízimo acumulado! Recordo o caso de Benjamin Péret, num viver (quase sempre) endiabrado e de risco, com mil carências permanentes e cujas primeiras edições (nas tiragens especiais) valem fortunas, estando apenas ao alcance de milionários. Um exemplar da tiragem especial, papel do Japão, do au 125 du Boulevard Saint-Germain, Paris, 1923, com desenhos de Max Ernst, chega facilmente aos dois mil contos! Muitas das suas «plaquettes» são autênticas obras de arte.
     Alguns dos companheiros da prodigiosa aventura surrealista foram grandes bibliófilos. Aragon. Eluard e Tzara. E o próprio André Breton possuía preciosidades (escolhidas a dedo) do Romantismo, e ainda traduções francesas (raríssimas) do Romance Gótico inglês dos fins do séc. XVIII.
     Na nossa terra falava-se nos quarenta mil volumes de Afonso Lopes Vieira. Ainda existem? Onde Param?
     Coleccionar pode levar ao desatino egoísta e feroz, e em certos casos limites, o desequilíbrio mental não anda longe. No séc. XIX português existe um exemplo medonho. Agostinho Vito Pereira Merello, espantosos bibliómano, reuniu, dezenas de anos a fio, sumptuosas biblioteca, na qual possuía peças únicas, e entre elas, o manuscrito inédito do poema de «Santa Maria Egipsiaca» atribuído a Sá de Miranda. Esta personagem, quando ilustres investigadores (Teófilio e Carolina Michäelis) lhe pediam para ver a obra, respondia: «Gosto tanto dela que não a mostro, seja a quem for!!!» Só depois da sua morte foi possível editá-la!
     Talvez a solução esteja no conselho do homem que mais admirei nestas lides, Pascal Pia, grão-senhor dos livros antigos: «O ideal, dizia ele, seria possuir três exemplares do que amamos. Um para o acariciar. Outro, para trabalhar. E o terceiro para emprestá-lo aos amigos, e é preciso que o mereçam!»

Ricarte-Dácio de Sousa
In ‘A Phala’, n.º 23, Abril/Maio/Junho, Assírio&Alvim, Lx, 1991.

19/01/2012



HERBERTO HELDER PHALA DE MÁRIO CESARINY


     Há trinta anos os jovens gafanhotos caíram sobre a poesia radioactiva de Cesariny, comeram dela, fulguraram dela um instante como pequenas jóias uranianas. Carbonizou-os o fogo roubado. Jazem agora nos arrabaldes. Quem não assistiu nem suspeita. Pode fruir-se aqui uma lição rápida: o poder que mantém o universo de um grande poeta é inacessível – não está nas palavras mas entre elas, não está nos modos mas atrás deles, não está na claridade mas na obscuridade («Pour être vrai il faudrait être obscur». Flaubert). Eis o abismo entre mestre e discípulos: o mestre é a zona de radiações que os discípulos devassam em revoadas estudantes. As ciências naturais, espécies e espécimes colhidos, trabalhos de campo e casa, desnaturam-se nos fundamentos: não há nada para aprender. O autor, que propôs «alguns mitos maiores alguns mitos menores», só tem a inexplicável sabedoria de ser o dono deles e da sua aliança oculta. No âmbito profano da escolaridade, números e ordens são intransmissíveis. A floração atómica Cesariny ergue-se no deserto, não é paisagem para visitas guiadas, trânsitos, aulas, mapas. Não se ensina nem aprende nela nenhuma botânica democrática. É uma paisagem bárbara, entregue à escarpada biografia dos dias e das noites. Está ali, arboreamente explosiva e irreal como uma radiografia, negra à volta, inabitável na sua massa de luz.
     Com que linhas te coses? Com as dos meus poemas.
     Ora vejamos: vinte e cinco linhas, por exemplo, ou vinte e quatro, é linha a mais para coser um poeta. Ou a menos. Sempre a mais e a menos. «Aceita este risco supremo: renuncia a compreender aquilo que escreveu». Com uma linha assim cosem Emily Dickinson – que se cosera, ela, com as linhas de mil e seiscentos poemas. «O vento agarrou nas coisas do norte, / Acumulou-as no sul, / Dobrou depois o leste sobre o oeste (…)» – tudo enfiado numa agulha opondo magneticamente, não apenas as quatro partes cardeais, mas o poeta a si mesmo num prodigiosa costura celeste.
     Recapitulemos.
     Eles pensam.
     Prefiro o pensamento de que não há forma de dizer porquê e o como e o para quê. Talvez possamos recorrer à paráfrase, uma larga frase contendo em si, como coração, a intangibilidade do poema. Maneira de abraçar? Ele pede para ser abraçado? O mal é que a frase derivada, abraçadora, não aquece nem arrefece, não substitui. E então pergunta-se para que serve? Pois apenas serve aquilo que substitui. Se o poema fica, inamovível, sobra a paráfrase. Só interessariam as paráfrases a poemas desaparecidos, ardentes homenagens, louvor, invocações que restituíssem os belos corpos devorados. Seriam poemas em segunda mão, no entanto animados pelo sopro hínico. Os discípulos são autores em segunda mão, mas falta-lhes o espírito que restabelece a vida. As falas ecoam as falas escutadas – nelas está constantemente
a aparecer o que não desapareceu. Só as vozes da aparição conseguem louvar: louvam a cerimónia da sua aparição. Porque uma voz é isso mesmo, aparição.
     Há trinta anos, reiterando, Cesariny aparecia onde tentavam que desaparecesse. Agora aparece nas férias epigonais. Territorialmente desimpedida, esta poesia é tão absoluta e solitária que o comentário vai pouco, e dentro: é a última de nome religioso. E foi ele, Cesariny, quem o disse: «Assim acaba este estranho poema, o último de nome religioso escrito pelo Autor». O poeta cose-se com as suas linhas, religa tudo em nome escrito. Qualquer nome é o último, possui a força da renúncia, despede-se de si próprio. E compreende-se como primeira canção, a do fogo, misteriosa voz do mundo que o autor autoriza. Anda por aqui o Demónio, nesta música, ouve-se no fundo quando a leitura se torna mestra de si como de si era mestra a poesia: absoluta e solitária.
     É o que posso dizer, assistindo.
     Em quantas linhas, vinte e cinco, vinte e quatro, não coso nem descoso? Trata-se de entender, e faço pelo melhor: entendo o que não entendo, obscura coisa, esta, entender, prática do leitor religado. Também anda por aqui o Demónio, em tamanha audição. Que músicas para que ouvidos! As coisas do norte no sul, leste e oeste um sobre o outro. Dito em palavra pura. Quando se habita a poesia, condena o ofício às fogueiras acendidas em todos os lados do vento até o corpo se transmutar em diamante, um corpo que as luzes executam, como sanciona o étimo: luciferinamente. A pena capital, sofreu-a Cesariny, o canto desnorteado.
     Pois o norte é isso, um nome que procura, que descobre, com as suas inspirações boreais, uma versão de águas e terras juntas, elementos, complementos, um estilo de ficar australiano. O canto é uma desolação de ar e fogo. O poeta, servo e senhor dos pactos, sabe-o bem. Perguntem-lhe nos poemas. Mas nunca finjam que ele respondeu. Porque a sua metáfora, a alquimia baptismal, não é uma resposta aos outros, mas uma pergunta a si mesmo. E se há nela qualquer sedução, veja-se como vestígio daquela dança propiciatória, sempre hipnótica, difícil, ofuscante – exercida para a melhor posse dos talentos. É inerente ao capítulo infernal da comédia, um abuso no mais enigmático dos círculos: a beleza é monstruosa.

Herberto Helder
In ‘A Phala’, n.º 9, Abril/Maio/Junho, Assírio&Alvim, Lx, 1988.

18/01/2012

Espécie de poesia visual muito antes do E.M. de Melo e Castro...

Manoel Roussado (um dos autores visados na célebre questão Coimbrã por Antero) 

Manoel Roussado, in Roberto ou A Dominação dos Agiotas

AR BUSTO...

MARIA GABRIELA LLANSOL «Os meus livros»

__________________ os meus livros já não se encontram alinhados em prateleiras, no escritório; os que eu considero mais meus, por serem os textos do meu desejo, pu-los no guarda-vestidos aberto, encostados frontalmente ao fundo, ou formando pequenas pilhas, com os nomes dos «batedores» em evidência.
     Myriam e eu, lado a lado, acabámos por subir às páginas, «mas os nossos pés», leu Myriam em voz alta, «são especialmente importantes porque são marcha em direcção oblíqua».
     Não compreendo, Myriam, a intensa suavidade negra da noite. Quando deixava de a ouvir, a encosta tornava-se íngreme, e os «batedores», numa grande angustia de sentido, elevavam as vozes. Ela fazia crescer um arbusto entre duas palavras separadas pela extinção da voz __________________ ou movimento final de silêncio.
     Atravesso o pinhal:
«as árvores falam através dos ângulos que criam». Mas não podem ser meus amantes, pois o seu plano de construção é diferente do meu; se eu tivesse uma árvore por amante, só subindo me poderia deitar com ela; talvez eu tenha uma árvore por amante; amante da minha árvore, figura humana que eu projecto nela, cria o amor num dia melhor que toda a beleza que eu anuncio ao escrever; ofereço-lhe este texto, com o risco que não me compreenda. «É para si», e concluo «é para nós»; eu entendo de igual modo as árvores, e as letras que atravessam as linhas dos livros, vivemos sob a lei da refulgência da natureza que, à hora crepuscular, explica quais são as proporções entre o homem e o resto do mundo; quantas vezes este pinhal não poderá afirmar que por aqui passou um texto, elaborado entre ele e a sua árvore?
a árvore que se refinou sob a emoção humana, caminha; os seus passos vão de ela própria à próxima árvore, e assim chegámos ao fim do bosque em movimento, só parado para quem não preferiu a árvore à língua do texto; quando as acácias levam mais longe do que o amante o seu perfume, eu começo a contar os meus sentidos; desisto a meio, englobada pelo número que se tornou qualidade.


Colares, 1991



MGL
In ‘A Phala’, n.º 23, Abril/Maio/Junho, Assírio &Alvim, Lx, 1991.

16/01/2012

Lançamento de dois livros de Miguel Martins...

"A Metafísica das T-shirts Brancas" (Edições 50 Kg)
 "Um Homem Sozinho" (Língua Morta)


 4 de Fevereiro (Sábado), às 17h00 no Teatro A Barraca. 

13/01/2012

Underground... na rua das Flores

 LIVRARIA CHAMINÉ DA MOTA - Rua das Flores, 18  

LIVRARIA CHAMINÉ DA MOTA - Rua das Flores, 18

LIVRARIA CHAMINÉ DA MOTA - Rua das Flores, 18

LIVRARIA CHAMINÉ DA MOTA - Rua das Flores, 18

LIVRARIA CHAMINÉ DA MOTA - Rua das Flores, 18

LIVRARIA CHAMINÉ DA MOTA - Rua das Flores, 18

07/01/2012

Sinais Usados na Revisão de Prova Tipográficas

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ELOGIO E REABILITAÇÃO DA GRALHA

"Insinua-se a gralha, com seu bico normando, sua trupe de tipos inspirados.

Por um parágrafo a entrada falharia.

Nos cadernos da ordem, a vida mácula do autor, parceira de goyescas
criaturas; unhadas, dedadas, repelões, empastos de tinta seca.

Que novo o sonho de Alice!

No mosaico de um Improviso para Duas Estrelas de Papel, de azul, vermelho,
azul, vermelho, eis que fica entretanto azul, azul.

Quem escreve, se inscreve, foi escrito?"

Mário Cláudio in MeaLibra - Revista de Cultura, Centro Cultural do Alto Minho, p.17, Agosto de 1982, Viana do Castelo