Mostrar mensagens com a etiqueta Prótese. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Prótese. Mostrar todas as mensagens

28/11/2011

Manhã com manha de «hètèrònominal»…

I.

PRÓTESE

"Co’a breca da antinomia
Em desuso há seis mil anos
Fabriquei a cartesia
Dos heterónimos manos.

Desvestidos de seus nus,
De pernas muito afastadas,
Duas medidas de mus
(Duas formas co-irmãs)
Masturbam homens de as-
Pecto decente nos
Vãos de escadas.

Antinomia é que é fon,
A é A nunca tem B,
Branco não pode ser preto,
Fica escuro, não se vê
O cavaleiro secreto.

Bom.
O que eu queria era ser um Benito
Dêsses entregues ao fogo
Atados até à nuca
Para nas chamas torrado
Gozar como uma maluca.

Depois de bem antinómico
Fui ao Platão dos Diálogos
E apanhei-lhe os análogos
Diálogos anatómicos

Platão, Platão é que é bom
Pegado a Descartes frito
Cêrca a cabine de som
Em praia de muito apito.

- Y quien más más que Platon
En portuguez o español ?
Pués el beleño Aristol-
Teles: On ai me on.

En Sartre, version francesa
De Heidegger, el buen nazi
Tambien verás la belleza
Que vino de Grécia aqui.

On ai me on por delante
On ai me on por detraz.
La noche se puzo fria
On ai me on. Que será ?

Ni tu ni yo. Solo aquel
De la Bestia Ladradora
Tirado como hidromiel
En la tumba de Eleonora

Inflado com un adobo[1]
Que no se pode tragar
A menos que venga el lobo
Del desierto americano
Com su bolsita de mano
Y su botelha de mar.

- «Vicente! Vicente!»
É o mais que diz o corvo lusitano
Quando o provoca gente que passa,
Passa, não maça
Nem pretende ir morrer a Baltimore
Cum «um grave e nobre corvo dos bons tempos ancestrais»
(Dos bons tempos ancestrais!)
«Num alvo busto de Atena que há por sôbre os meus umbrais»

E a borracha do alcool e dos sais
«No veludo onde a luz tem vagas sombras desiguais»
Já sem pinga de soro para o jôrro sonoro
Do «amanhã também te vais»,
Quando verdade é que êsse bar sujo daquele bairro
                sabujo mais próprio de marujo que de escritor
- Salvo o patrão que mancava e ao balcão se agarrava, dali
                lançando, sempre manquejando, o apêlo famoso de
                macho defeituoso
Que urdia pastoso quando o relógio adrede, um pêndulo
                de parede que mais parecia ferro de mafamede,
Batia com afoite as 11 da noite:
«On time! That´s enough my lords, score no more! I’m
Accursed enough and from afar with such a crew into my
                only mine Elanora’s Bar em Baltimore!
E vou lançar o cão sem o açaime
If you don’t take your mate and go ashore
And ashes and coffins no more!»  
Difícil era ver qual o mais bêbado
E com mais medo de cair ao chão
Ainda que natural que fosse o, de falsete, corvo velho
                grumete,
Dada a posição que ocupava
E não ser a primeira vez que rasgava
O «ar denso como cheio de incenso» até ao tapete
Sem que ninguém ajudasse, sequer por topete.
A o repôr na cantilena
Do peta do ave preta sobre a cabeça da Atena

Também ela mais bêbada, muito mais, do que já estava
Antes de ir para os Estados Unidos,
Nação cuja fundação ergue a Memória
Da maior bebedeira da História. –

Homero, não, nunca quis,
Leva tudo a braço forte
Y a mi no me quiere la muerte
Pois também nunca lhe quiz.

Eurípedes, Sofocles, Esquilo
Tampouco me fazem uso
Todo o trágico recuso
Davam-me cabo do grilo
Que me aperta o parafuso.

Nem do fantomas bretão
A isabelina peça
Co’aquêle «Ser ou não ser…»
(O morrer ou não morrer!)
Creio que seja dever
Nem vejo que seja questão
Nem cristão.

Aos diálogos do grego
Dei forma individual
Sem nunca perder o rêgo
Da cartesia geral.

Êste todo o meu enlevo
E todo o meu enxoval
Ir logo de manhã cedo
Para o hètèrònimal.

De Lógicos e Sofistas
Fiquei todo a abanar
As vezes falta-me o ar.
E sinto coisas sinistras

Bocas roxas de vinho
Mãos penetrando cousas
Brancas como arminho
Sujas como lousas.

E como Platão expulsou
Os poetas da cidade
Mandando que nela só
Falásse a vulgaridade

Eu anónimo e avulso
Aldeão do mundo a haver
Eu o mim de mim expulso
O mim que se vá lamber.

Ninguém na vasta selva
Do mundo inumerável
O veja ou reconheça
Nem ao nível da relva

O basto chão arável,
Nem o Céu imutável,
Tenham sua cabeça

E o anel cabalista
E outras dobras do medo
Que a marujada ensaísta
Me anda a tirar do dedo,

Aqui os digo e confesso,
Aqui os confesso e nego:
Dei muita leitura à vista
E muitas voltas à pista
Mas para bom alquimista
Nunca passei do nigrêdo

Ísis… Osíris… Que lado
Do céu para me fartar?
A quem nasceu desastrado
Que podem os astros dar?

Desvestidos de seus nus,
De pernas muito afastadas,
Duas medidas de mus
(Duas formas co-irmãs)
Masturbam homens de as-
Pecto decente nos
Vãos de escadas.”

Mário Cesariny in “O Virgem Negra – Fernando Pessoa explicado às Criancinhas Naturais e Estrangeiras por M. C. V.”, 2ª ed. revista e aumentada, pp.11-17, ed. Assírio &Alvim, Lisboa, 1996.





[1] adobe