os apparátchiki te
detestam
poesia
prima pobre
(veja-se a conversa
de benjamin
com brecht /
sobre lukács gabor
kutella /
numa tarde de julho
em svendborg)
poesia
fêmea contraditória
te detestam
multifária
mais putifária que
a mulher de
putifar
mais ofélia
que hímen de
donzela
na ante-sala da
loucura de hamlet
poesia
que desvia da norma
e não se encarna
na história
divisionária
rebelionária visionária
velada / revelada
fazendo strip-tease
para teus próprios (duchamp)
celibatários
violẽncia
organizada contra a língua
(a míngua)
cotidiana
os apparátchiki te
detestam
poesia
porque tua
propriedade é a forma
(como diria marx)
e porque não
distingues
o dançarino da
dança
nem dás a césar o
que é de césar
/ não lhe dás a
mínima (catulo):
sais com um poema
pornô
quando ele pede um
hino
serás a hetaera
esmeralda
de thomas mann
a dragonária
agônica
de asas de sífilis
?
ou um fiapo de sol no
olho
selenita de celan
?
ana akhmátova te
viu
passeando no jardim
e te jogou nos
ombros
feito um renard
de prata mortuária
walter benjamin
que esperava o
messias
saindo por um
minúsculo
arco da história no
próximo minuto
certamente te
conheceu
anunciada por seu
angelus novus
milimetricamente
inscrita num grão de trigo
no museu de cluny
adorno te exigiu
negativa e dialética
hermética
prospéctica emética
recalcitrante
dizes que estás à
direita
mas marx (le jeune)
leitor de homero
dante goethe
enamorado da
gretchen do fausto
sabia que teu lugar
é à esquerda
o louco lugar
alienado
do coração
e até mesmo lênin
que tinha um rosto
parecido com verlaine
e que no entanto
(pauvre lélian)
censurou
lunatchárski
por ter publicado
mais de mil cópias
do poema
“150.000.000” de maiakóvski
– papel demais
para um poema futurista! –
mesmo lênin sabia
que o idealismo
inteligente está mais perto
do materialismo
que o materialismo
do materialismo
desinteligente
poesia
te detestam
materialista
idealista ista
vão te negar pão e
água
(para os inimigos:
porrada!)
– és a inimiga
poesia
só que um dervixe
ornitólogo khlébnikov
presidente do globo
terrestre
morreu de fome em
santalov
num travesseiro de
manuscritos
encantado pelo riso
faquirizante dos
teus olhos
e jákobson roman
(amor / roma)
octogenário
plusquesexappealgenário
acaricia com
delícia
tuas metáforas e
metonímias
enquanto abres de
gozo
as alas de
crisoprásio de tuas paronomásias
e ele ri do embaraço
austero dos savants
e agora mesmo aqui
neste monte
alegre das perdizes
dois irmãos
siamesmos e um oleiro
de nuvens pignatari
(que hoje se assina
signatari)
te amam furiosamente
na garçonnière
noigandres
há mais de trinta
anos que te amam
e o resultado é
esse
poesia
já o sabes
a zorra na geléia
geral
e todo o mundo
querendo tricapitar
há mais de trinta
anos
esses trigênios
vocalistas
/ que idéia é essa
de querer plantar
ideogramas no nosso
quintal
(sem nenhum
laranjal oswald)?
e (mário)
desmanchar
a comidinha das
crianças?
poesia pois é
poesia
te detestam
lumpenproletária
voluptuária
vigária
elitista piranha do
lixo
porque não tens
mensagens
o teu conteúdo é a
tua forma
e porque és feita
de palavras
e não sabes contar
nenhuma estória
e por isso és
poesia
como cage dizia
ou como
há pouco
augusto
o augusto:
que a flor flore
o colibri colibrisa
e a poesia poesia
Haroldo
de Campos, “a educação dos cinco sentidos”, pp. 16-20, Editora
Brasiliense, São Paulo,
1985.
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