“Não
se admire o leitor de me ver discretear assim de cadeira sobre o
assunto de tanta magnitude: eu também já me atirei às
investigações históricas, tendo a fortuna de resolver,
satisfatória e definitivamente, um dos mais árduos e capitais
problemas da história moderna, a saber: onde foi que a George Sand
«armou» pela primeira vez o marido. E não posso encarecer as
canseiras, as vigílias, as meditações que me causaram as
respectivas, inúmeras, indispensáveis pesquisas. Mas consegui, e
para conhecimento universal aqui deixo consignado o fruto do meu
labor. O facto deu-se no ano de 1825, dentro da gruta (depois
milagrosa) de Lourdes.
E
segundo me revelou uma vidente mística, muito relacionada com o céu,
foi esse caso que deu origem ao aparecimento da Virgem. Eis o que ela
me contou:
No
clube dos arcanjos da pena amarela, o mais maledicente dos páramos
celestes, esse acontecimento foi comentado tão ostensiva e
desbragadamente que chegou aos ouvidos da Nossa Senhora, a qual lá
tem sempre as suas espias, para saber o que murmuravam a seu
respeito, pois que não a pouparam com dúvidas indecentes acerca da
sua virgindade, quando ela deu entrada no Paraíso. Os pormenores do
acto lúbrico, exagerados talvez pelos eróticos arcanjos, e as
alusões à amenidade do sítio, inspiraram à Nossa Senhora desejos
de o visitar, o que fez com certa dificuldade, graças à relutância
do Padre Eterno em outorgar a indispensável licença. Tão agradada
ficou do conforto e pitoresco da caverna que ali voltou várias vezes
até se encontrar com a «beata Bernadeta»
O
resto é sobejamente conhecido.
E
aqui está como os carnais desvios da George Sand abriram para a
França essa prodigiosa fonte de devoção espiritual e lucros
materiais sem par no mundo.
Não
há dúvida: Deus escreve direito por linhas tortas…”
M.
Teixeira-Gomes,
“2.ª Parte de Miscelânea – Carnaval Literário”, pp. 144-145,
Livraria Bertrand, 3.ª ed., 1993.
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