Coimbra,
16 de Maio de 1944
RAÚL
BRANDÃO
Ao
lado das grandes figuras realizadas,
cuja sombra, de tão cerrada, nos arrefece, há uma outra categoria
de artistas, que o são deveras, debaixo da copa de quem a gente
refresca e medita. Insisto em que se não trata de artistas menores,
ou coisa assim. Quando se diz artista, não há escala. Tão grande
é, especificamente, Shakespeare como Baudelaire. Apenas um tocava
num piano sem fim, e o outro num violino.
Destes homens assim, cujo poder material só vai à gaita feita dum
caule de cevada verde, há aqui em Portugal imensos. Raúl Brandão,
que é desses, é para mim dos mais atraentes e dos mais fecundos.
A
obra realizada em tamanho, em Lusíadas,
em Comédia Humana, em
Sinfonias, destrói a
obra por acabar, sonhada, esboçada, nimbada duma preguiça de
promissão. As Berlengas que Brandão no deixou, as maravilhosas e
nunca decifradas Berlengas que todos hoje conhecemos, não são as
dos Pescadores. São o
próprio assombro do artista, deitado nas rochas de Peniche a olhar
os brumosos penedos. Um romance articulado da Candidinha talvez fosse
eu, sei lá!, um grande livro. Mas não seria tão sugestivo como
essa balbuciada Farsa
que nos deixou, cósmica, protoplásmica, com portas para todos os
horizontes da vida, e sem destino nenhum. Sempre que pego num livro
de Raúl Brandão, estremeço. Como não sou capaz de o levar ao fim,
como não é capaz de me possuir inteiro, parece-me sempre que toquei
no grande corpo humano do autor, informe, mansarrão, aparentemente
morto, e onde um raio de luz desencadeava uma tormenta. Já na
estante, cada letra do título é ainda um dos seus olhos azuis de
pescador, meigos e lancinantes, a contemplar-me.
As
suas obras mais falhadas são para mim as melhores. As Memórias,
por exemplo. De O Doido e a morte,
obra perfeita, a gente ri-se e gosta, certamente. Das Ilhas
Desconhecidas, a gente lê e
gosta também. Dos
Pescadores, a gente
relê e gosta mais. Mas das Memórias,
do Húmus, dos Pobres
e do resto a gente não gosta. Fica com aquela massa imensa cá
dentro para ir articulando pela vida fora de seu vagar. Porque uma
coisa é um livro falhado e condenado à morte, e outra um livro
falhado e condenado à vida. Há lá coisa mais palpitante de seiva,
de eternidade, do que certos bosquejos de Raúl Brandão, a arfar
como ondas sem vento num mar de emoção!
O grande sonhador não foi capaz de contar uma história direita.
Não tinha imaginação romanesca, nem sabia. Mas cada esforço, cada
passo para nos dizer a palavra específica sobre uma figura, é um
alanceado desespero de ternura e trágica beleza.
Não é preciso que Raúl Brandão, ou qualquer outro artista assim,
fique no primeiro lugar da história da literatura. Um primeiro lugar
ao lado de Frei Heitor Pinto ou mesmo de Sá de Miranda interessa
pouco. Mas já não é o mesmo ficar ao lado da sua própria
evidência, tentador como um fruto imaturo.
Miguel
Torga, “Diário
III”,
pp.
43-45,
1954,
Coimbra.
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