“Porque
os versos não são, como as gentes pensam, sentimentos (esses têm-se
cedo bastante), – são experiências. Por amor de um verso têm que
se ver muitas cidades, homens e coisas, têm que se conhecer os
animais, tem que se sentir como as aves voam e que se saber o gesto
com que as flores se abrem pela manhã. É preciso poder tornar a
pensar em caminhos em regiões desconhecidas, em encontros
inesperados e despedidas que se viram vir de longe, – em dias de
infância ainda não esclarecidos, nos pais que tivémos que magoar
quando nos traziam uma alegria e nós a não compreendemos (era uma
alegria para outro –), em doenças de infância que começam de
maneira tão estranha com tantas transformações profundas e graves,
em dias passados em quartos calmos e recolhidos e em manhãs à
beira-mar, no próprio mar, em mares, em noites de viagem que
passaram sussurando alto e voaram com todos os astros, – e ainda
não é bastante poder pensar em tudo isto. É preciso ter
recordações de muitas noites de amor, das quais nenhuma foi igual a
outra, de gritos de mulheres no parto e de parturientes leves,
brancas e adormecidas que se fecham. Mas também é preciso ter
estado ao pé dos moribundos, ter ficado sentado ao pé de mortos no
quarto com a janela aberta e os ruídos que vinham por acessos. E
também não é ainda bastante ter recordações. É preciso saber
esquecê-las quando são muitas, e é preciso ter a grande paciência
de esperar que elas regressem. Pois que as recordações mesmas ainda
não são o que é preciso.
Só quando já não têm nome e já se não distinguem de nós
mesmos, só então é que pode acontecer que, numa hora muito rara,
do meio delas se erga a primeira palavra de um verso e saia delas.”
Rainer
Maria Rilke, “Os Cadernos de Malte Laurids Brigge”, pp.19-20,
Ed. Instituto Alemão da Universidade de Coimbra, 1954. Trad. Paulo
Quintela.
Sem comentários:
Enviar um comentário