por Alain Robbe-Grillet
Ouvimos
aqui muitas intervenções altamente interessantes. Mas eu queria afirmar o meu
espanto por ter encontrado na boca da maior parte dos oradores soviéticos
críticas tão vivas dirigidas às pesquisas da literatura moderna, que se
assemelham exactamente às críticas que nos fazem na sociedade burguesa do
Ocidente. Aqui, como ali, acusam-nos de «gratuitidade» e de «formalismo». Julgam
a nossa arte «decadente» e «desumana». Perguntam-nos: «Porque é que você
escreve?» «Para que é que você serve?» «Qual é a sua função na sociedade?»
Naturalmente,
estas perguntas são absurdas. Tanto como qualquer outro artista, o escritor não
pode saber para que serve. A literatura não é para ele um meio que ponha ao
serviço de qualquer causa. E quando nós ouvimos fazer o elogio desse «bom
instrumento» que é o romance do século XIX, esse bom instrumento do qual se
acusa o novo romance de querer afastar-se (quando poderia ainda expor ao povo
os males do mundo actual e os remédios na moda, ainda que, se necessário, com
alguns pequenos melhoramentos, como se se tratasse de aperfeiçoar um martelo ou
uma foice…), quando nos enchem os ouvidos com a «responsabilidade» do escritor,
somos forçados a responder que estão a troçar de nós, que o romance não é um
instrumento e que até, provavelmente, do ponto de vista da sociedade, ele não
serve para grande coisa.
Comprometido,
o romancista é-o, certamente – como o são, de qualquer maneira e nem mais nem
menos, todos os homens –, no sentido em que ele é cidadão dum país, duma época,
dum sistema económico, que vive no seio de hábitos e de regras sociais,
religiosas, sexuais, etc. Em suma, é comprometido na medida exacta em que não é
livre. E uma das formas particulares – muito virulenta – que toma neste momento
a restrição da sua liberdade é precisamente esta pressão exercida pela
sociedade tentando-lhe fazer crer que ele escreve para ela (ou contra ela, o
que vem dar no mesmo). E aqui temos um caso bastante interessante daquilo que
hoje em dia se convencionou chamar alienação.
Digamos,
portanto, as coisas com clareza. Como toda a gente, o escritor sofre as
desgraças dos seus semelhantes; pretender que ele escreve para remediá-las é
desonesto. O romancista alemão-oriental que declarou, nesta tribuna, escrever
romances para lutar contra o fascismo, provoca-me o riso e causar-me-ia
inquietação sobre as suas qualidades de escritor se nós não compreendêssemos,
nós, que também ele não sabe porque escreve e que os seus álibis não têm
nenhuma importância.
Quanto
a mim, prefiro dizer que aquilo que me interessa é a literatura; a forma dos
romances parece-me muito mais importante do que as anedotas – mesmo as
antifascistas – que neles se possam encontrar; no momento da criação ignoro o
que estas formas, de que sinto a necessidade, significam, e ainda muito mais
para que elas poderão servir.
A
comparação que aqui foi feita entre um escritor e um piloto de aviação
comercial só pode ser tomada como uma brincadeira. O romance não é um meio de
expressão – quer dizer, na medida em que conheceria de antemão as verdades (ou
as interrogações) que teria de exprimir. Para nós, o romance é uma pesquisa, e
uma pesquisa não sabe mesmo o que procura. Claro que o piloto deve saber o
destino imediato para onde conduz os seus passageiros; por definição, o
escritor não sabe onde vai. E se me fosse absolutamente necessário responder à
pergunta: «Porque escreve você?», eu responderia somente: «Eu escrevo para
tentar compreender porque desejo escrever.»
Mas
o que nos parece mais escandaloso é encontrar no campo socialista e no mundo
burguês as mesmas ilusões quanto ao poder político da arte, o mesmo culto pelas
formas artísticas ultrapassadas, o mesmo vocabulário crítico e, no fim de
contas, os mesmos valores.
«Decadente»,
dizeis vós? Em relação a quê? «Desumana»? Não será talvez a vossa concepção do
homem que necessita de ser renovada? Porque, se é compreensível que a crítica
burguesa do Ocidente defenda obstinadamente (ainda mais timidamente que vocês)
as formas romanescas, as quais encarnam, para eles, evidentemente, a idade de
ouro do romance e o paraíso da classe possuidora, parece-nos estranho que
combateis, aqui, pela mesma causa e que faleis duma escritura romanesca inocente e natural, da qual já Gustave Flaubert começava a duvidar em 1848.
Acusais-me
de «formalismo», mas são as formas
literárias que contêm a significação das obras; e as formas que enalteceis,
sabemos, justamente, que elas representam o mundo que reputadamente combateis.
In “Romance e Realidade”, pp. 135-9,
Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1969. Trad. Luísa Fialho.
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