Despede-se o Poeta da Bahia, quando foi degredado para Angola
Adeus, praia; adeus, cidade,
E agora me deverás,
Velhaca, dar eu a Deus
A quem devo ao demo dar.
Quero agora que me devas
Dar-te a Deus como quem cai,
Sendo que estás tão caída,
Que nem Deus te quererá:
Adeus, povo; adeus, Bahia,
Digo canalha infernal,
E não falo na nobreza,
Tábula em que se não dá.
Porque o nobre enfim é nobre,
Quem honra tem, honra dá,
Pícaros dão picardias,
E ainda lhes fica que dar.
E tu, cidade, és tão vil,
Que o que em ti quiser campar,
Não tem mais do que meter-se
A magano, e campará.
Seja ladrão descoberto,
E qual águia imperial
Tenha na unha o rapante
E na vista o perspicaz.
A uns compre, a outros venda,
Que eu lhe seguro o medrar,
Seja velhaco notório,
E tramoeiro fatal.
Compre tudo e pague nada,
Deva aqui, deva acolá,
Perca o pejo e a vergonha,
E se casar, case mal.
Porfiar em ser fidalgo,
Que com tanto se achará.
Se tiver mulher formosa,
Gabe-a por êsses poiais;
De virtuosa talvez,
E de entendida outro tal;
Introduza-se ao burlesco
Nas casas onde se achar.
Que há donzelas de belisco,
E aos punhos se gastará;
Trate-lhes um galanteio,
E um frete, que é o principal.
Arrime-se a um poderoso
Que lhe alimente o gargaz,
Que há pagadores na terra
Tão duros como no mar.
A êstes faça alguns mandados
A título de agradar
E conserve o afetuoso
Confessando desigual.
Intime-lhe a fidalguia,
Que eu creio que lho crerá,
E que fique ela por ela
Quando lhe ouvir outro tal.
Vá visitar os amigos
No engenho de cada qual,
E comendo-os por um pé
Nunca tire o pé de lá.
Que os Brasileiros são bêstas,
E estarão a trabalhar
Tôda a vida por manterem
Maganos de Portugal.
Como se vir homem rico,
Tenha cuidado em guardar,
Que aqui honram os mofinos,
E mofam dos liberais.
No Brasil a fidalguia
No bom sangue nunca está,
Nem no bom procedimento:
Pois logo em que pode estar?
Consiste em muito dinheiro,
E consiste em o guardar:
Cada um a guardar bem,
Para ter que gastar mal.
Consiste em dá-lo a maganos
Que o saibam lisonjear,
Dizendo que é descendente
Da casa de Vila Real.
Se guardar o seu dinheiro,
Onde quiser, casará:
Que os sogros não querem homens,
Querem caixas de guardar.
Não coma o genro, nem vista,
Que êsse genro universal:
Todos o querem por genro,
Genro de todos será.
Oh! assolada veja eu
Cidade tão suja e tal,
Avesso de todo o mundo,
Só direita em se entortar.
Terra que não se parece
Neste mapa universal
Com outra; e ou são ruins tôdas,
Ou ela sòmente é má.
Obras de Gregório de Matos. IV – Satírica, vol. 1. Publicações da Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, 1930.
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