Daniel Maia-Pinto Rodrigues |
Este poema
chama-se Jogo de Realidade
mas também se poderia ter chamado
Comunhão ou Aventura.
Convidou-me para ver
em casa dela
no vídeo
o África Minha
filme da sua predilecção.
Eu já tinha visto esse filme
mas por uma questão de subtil delicadeza
disse-lhe que nunca o tinha visto.
Serviu-me um bom jantar
e uma intensa aguardente montanhesa.
Eu como não sabia muito bem
o que lhe hávia de dizer
saiu-me isto:
“Sabes que Isabel quer dizer cor de café com
leite?”
Ao que ela disse:
“Estou a ver que estás a pensar em alguma Isa-
bel!?”
“Não, não”, disse eu
enquanto me lembrava de uma tirada mais cine-
matográfica:
“Uma vez num filme
agradou-me ver um pequeno adesivo
na mão de um menino
adesivo esse que não veio a revelar
qualquer interferência no contexto do filme.”
Ela ficou assim a olhar para mim
com ar
de quem me estava a achar um bocado maluco
e depois foi a vez dela espetar esta:
que aqui há uns tempos atrás
pertencera a um grupo de malta rebelde
que tinha entre outros projectos inovadores
diversos programas de rádio
e algumas encenações teatrais
sendo todavia o projecto principal
o de mudar o mundo.
Ao que lhe disse
que o meu grande projecto foi sempre
o de que o mundo não me mudasse a mim.
Falou-me então de um tal Tito
… que as coisas entre eles não iam bem
que ele ultimamente não andava… bem…
“Daqui a um bocado – disse-me ela –
há-de aparecer aí uma amiga minha
e vamos abrir aquela garrafa de champagne
e uma latinha de paté-de-foie
é sempre agradável um pequeno ménage!”
Fomos depois para o sofá
para ver o filme
(alta seca, Daniel).
“Olá”, disse eu para uma revista intitulada Sexo
Bizarro
que discretamente descansava entre as almofadas.
Durante o filme ela interrompia-o várias vezes
em actual gesto electrónico
para mo explicar.
Eu lá ia dizendo
que ia percebendo
mas ela insistia na explicação
aquilo já ia em perspectivas complicadíssimas
e eu, claro, comecei a estranhar.
Foi então aí que se deram os três Abre
o abre-te Sésamo
o abre-te vestido
- abrenúncio!
Só ficou por abrir a latinha de paté-de-foie.
Chegou ao topo a intensidade da aguardente mon-
tanhesa
e passado um bocado
parece que ficámos
segundo ela
física e espiritualmente em Comunhão.
“Não te sentes em Comunhão?!”,
perguntou ela.
“Sinto, sinto”.
E ela insiste na questão
“Como é que te sentes…?”
“Olha, sinto-me sem cinto”,
estive para dizer
mas evitei este trocadilho
portador de algum mau gosto
e também algo indecente
daquele género de indecente
tão descortinável pelas mulheres.
Respondendo-lhe à questão
osculei-lhe a testa
com um tácito beijo
e murmurei
mais patético do que pateta
que me sentia em Comunhão.
Esta Comunhão deve trazer água no bico
pensei eu já no dia seguinte
em minha casa
enquanto comia
abundantemente
farinha Maizena
e alguns pudins Boca Doce.
Depois de me revitalizar
pedi ao peito que fizesse de conta
que tinha vinte anos
e fui dar uns pinotes
ao som de um antigo disco da Patti Smith
mas uma indefinida e intemporal ausência de
alguém
assaltou-me o pensamento
e desconjuntou as colagens imaginativas.
Parei a dança
e ao levantar o pick-up
ouvi tocar o telefone.
Atravessando a luz interior da tarde
fui atender.
Uma voz bem timbrada e sem vestígios hilários
Disse-me que era a Florbela Espanca
e que gostaria de aparecer em minha casa.
“Mas que piada de mau gosto”, disse
E desliguei o telefone.
Ainda um tanto irritado
transportei os meus passos
e fui fazer estatísticas
relacionadas com o Rallye de Portugal.
Todavia constatei
que podia fruir melhor as estatísticas
numa outra ocasião.
Com a esferográfica na mão
Pensei então em fazer mais um poema
mas apesar de a preguiça ser em mim
um defeito produtivo
sentia-me também inquieto.
Neste estado de espírito, inquieto e de levante,
para conseguir manejar um poema necessitaria
de uns bons tragos do composto de atanásia, gin-
seng e tiamina
de ingestão preferencial antes dos meus parece-
res de predição
de forma a ferver e a ministrar potência ao cérebro.
Mas por certo o espesso suco
ao dar de caras com o meu estômago
com os benfazejos produtos lácteos
ainda a braços com a aguardente
trataria imediatamente de os talhar…
Assim pousei a esferográfica
e ao pousar o objecto
pousei também a objectividade.
Fechei a persiana do quarto
apaguei a luz
e liguei a PlayStation
coloquei a password
e prossegui a Aventura –
os Heroes of the Lance
poderiam ter nesse dia
a possibilidade de libertar a Princesa
e derrotar o Dragon Evil Spirit
depois de terem trilhado uma longa demanda
e sofrido várias baixas em suas hostes.
O subterrâneo vaporoso labirinto
Poderia naquela altura ser deslindado!
Passei revista pelas espadas, lanças e alabardas
pelos escudos, elmos e armaduras
pelos pergaminhos, varinhas e poções.
Os items e artefactos dificílimos de encontrar
estavam agora
depois de três meses
reais
de buscas e vicissitudes
na minha mão.
Eu imaginava já
após o triunfo do Bem
o Paladino e líder dos Heroes (Herões, em português)
dirigir-se para os seus fiéis e sobreviventes com-
panheiros, dizendo-lhes:
“Fiéis companheiros, faço-vos barões.
A ti, Knight, ofereço-te estes quinhões de terra
próspera,
tu, Mago, ficarás com dois castelos
e com aquilo que tanto almejas,
os subterrâneos que pertenciam ao Mal
(que tal Mage, meu Jimmy Page!?),
e tu, minha doce Clerical, ficarás com um mo-
nastério
e com duas ou três abadias, um gajo depois vê
isso…”
Enquanto eu dizia isto
o Knight vai assim todo vaidosão pavonear-se à
Princesa.
“Ó Knight, qual é a tua, meu, fod’s já tens
o teu quinhão oucaralhe.”
E voltei-me para o Mago. “Ei, ó Mage
segundo as tuas previsões
qual de nós dois, aqui o cavaleiro
ou eu, tem mais condições
de fazer feliz a Princesa?”
“Tu, Paladino, mais do que o Knight Lancelotito.
Não por seres o líder ou não sei quê
porque em relação a isso
tanto eu como a Princesa
nos estamos a marimbar. Digo que és tu
porque realmente acho que és tu
e mais não digo. Mas atenção
Paladino
aparecer-te-ão altas traps
e se deixares de ser o Paladino
as rodas do destino girarão
e as meras personagens de alterarão”.
“Vês Knight ó Lancelotito
o Mage acha que sou eu!...”
E com facilidade na delicadeza
o Paladino segura na mão da Princesa.
Deambulando um pouco pela paisagem
chegam à margem poética de um regato
e o Paladino
olhando para a Princesa
diz-lhe: “Minha Princesa
gosto de vós por nunca terdes visto aviões.”
“Como dizes, meu Paladino… visões?”
“Aviões… é um termo da minha época
mas o que vos quero realmente dizer
minha Princesa
é que tenho por vós uma grande afeição.”
Toca o telefone. Fiz pause
e fui atender. Era a minha amiga
a dos filmes
a propor novas Comunhões.
Este poema
como bem sabeis
chama-se Jogos de Realidade
mas também se poderia ter chamado
Comunhão ou Aventura.
Eu tinha consciência
de que no nível do Fosso Púrpura
não dava para fazer save data na Aventura
e que interromper ali o jogo
poria em grave risco
a quest dos Heroes of the Lance.
Dizia a lenda
que se a Princesa sonhasse com o Dragon
a própria Besta, qual íncubo, adquiriria forma
humana
e macularia a Princesa em noites de ventania
e duma certa forma eu até compreendia
que a Besta achasse bestial
macular a Princesa virginal.
E havia
o meu sonho de um outro dia
que me dizia que a Princesa
poderia sonhar com o Dragão
mesmo com o computador apagado.
Ora esta ideia provocava-me profunda intranqui-
lidade.
E como não existem destas princesas
na vida real
a esta oriunda da propulsora fábula
eu tinha que a conseguir resgatar
do negro encanto do Dragon Evil Spirit
e entrega-la imaculada
ao Paladino e líder dos Heroes of the Lance.
“Está? Está?”
disse o telefone.
“Estou”
disse eu.
“Mandei o Tito passear.”
disse o telefone.
“Ora Tito, Tito, assim de repente
não estou a ver… Ah, sim!, sim, claro.”
“Ai ele foi indecente!”
“… Sei, sei, certo…”
Atravessando o corredor
vinda do quarto e da fantasia
ressoa a auspiciosa e encantatória
porém frágil e desprotegida música
que envolve a Aventura.
Eu hesitei, titu-
beei
e acabei por flectir
para o mundo real.
Abandonei a Aventura e fui Comungar.
No dia seguinte
ainda em casa dela
saí do quarto para ir ao quarto-de-banho.
O corredor parecia-me um pouco maior
do que no dia anterior.
Avancei
e enganando-me na porta
entrei num aposento com as persianas fechadas.
Todo estiradão na cama, aos comandos da Play-
Station
estava o Knight Lancelotito?!
“Admirado, ex-Paladino,
por o teu companheiro Lancelotito ser o Tito
o tipo da tua amiguinha dos filmes?
Já viste o que eu estou a jogar?
Os Heroes of the Lance.
Mas desta vez fui eu que escolhi as personagens
e como podes ver
agora sou eu o Paladino.”
Motorizado pelo desespero
fui no encalço do monastério
uma vez que as abadias já tinham ruído
mas no monastério disseram-me
que a doce Clerical já tinha morrido.
Entregaram-me um escrito
que ela tinha deixado para mim:
“Paladino
nunca me esqueci de ti
porém o meu tempo de vida terminou.
À minha linha de Life Points
como tu dirias
resta apenas 1 ponto-barra.
Preferi ser mortal
a ter que comer paté-de-foie
com aquela diaba.
Recordo-te que Clerical foi a minha personagem
e que lutei… lutámos contra o Mal.
Sem te querer ofender
eu até posso ter ficado um pouco patética
aqui encarcerada no monastério
como tu lhe chamas…
… mas pateta não fui…
Pena é que não tenhamos chegado a ver aquilo
das abadias…
… tu só pensavas na Princesa…
As coisas da vida não estão fáceis
mas também não são assim tão complicadas!...
Para mim tu será sempre o Paladino.
Sonhei-me contigo em roseirais de jardim
em frescas varandas
em pérgulas de afastamente.
Meu Paladino,
Adeus.”
“Aaaah! Aaaah! Mage
não percebi nada do que tu me disseste.
Porque é que não indicaste simplesmente
a nossa doce companheira?
Mage! Mage!
Where are you, Mage?
Estarás nos subterrâneos que pertenceram ao Mal?
Mage, Mage, Sorcerer, Mage!!!”
«Welcome Paladino caído!
Parece que vamos estar novamente os dois
do mesmo lado da batalha.
Porém desta vez vamos ser as personagens
que não chegámos a derrotar.
Perguntas porque não te indiquei
a nossa doce clerical. Não julgues
que não o lamento
por ti e por ela.
Eu quero participar na Aventura tanto como tu
e de tanto querer são-me indiferentes
as hostes que represento. Mas preciso de ti
ao meu lado
porque sendo a vitória do jogo a conquista da
Princesa
é-me necessário o teu empenho em cativá-la.
E também tu precisas de mim
pelo facto de eu não me mesclar na Realidade,
o que me valeu o estatuto de personagem fixa.
Mas para isso eu tenho de pertencer
ao lado rotulado como mau, ao lado que não é
escolhido
mas que nunca deixa de aparecer na Aventura.
Só assim não ficarei sujeito
a que possam não escolher a minha personagem
ou a que alguém a escolha por mim
como aconteceu contigo, Paladino.
Eu sou a Personagem por excelência.
Ninguém conseguirá retirar-me do Jogo
assim como ninguém, que não eu, será a minha
personagem.
Já me tornei o melhor jogador da Aventura
E digo-te mais: sendo o líder deles
O Paladino Lancelotito
os Heroes of the Lance não têm a menor possi-
bilidade
contra nós. Tu, sim, tu terias!
O teu mundo real, a tua importância
estava na nossa fantástica demanda,
não deverias ter desligado a máquina.
O palerma do Lancelotito
já fez a primeira de muitas interrupções
e está neste momento a ver revistas quentes
com a vossa amiga dos filmes – ou melhor,
a nossa endiabrada cúmplice
enviada para distrair o líder deles
e o demover de terminar a Aventura.
E como é a nós que a vitória vai caber
tu poderás macular a Princesa à vontade.
Até porque ela vai sonhar connosco,
comigo e contigo,
com o computador aceso
e mesmo com o computador apagado.
E vais ver que ela afinal
não é assim tão santa como pensavas.
Ainda agora na Aventura anterior
o Cônsul Von Troche
nosso saudoso colega conselheiro
mais saliente todavia pelos seu medalhões
e alfinetes de peito
fartou-se de se consolar a macular a Princesa
até mesmo com a consola apagada, por assim
dizer.
Eu pensei em contar-te
mas não te quis desmotivar…
E na altura captei esta sórdida verdade: foi ela
a Princesa, e não aquela harpia
que o encarcerou para o poder zurzir
- enfernizar, como ela dizia a rir.
Também isto estive para te dizer
mas tive medo do que poderia acontecer…
Até me ocorreu na ocasião
uma ideia remediar a situação. Dizia-te
o seguinte: meu caro Paladino, nada te prometo
mas a troco de umas lulas
também tu a maculas.
Não, não te alarmes
com este meu tom venal.
Isto é apenas a título experimental.
Ouve, agora a sério, eu e tu
corremos apenas um risco
se se pode considerar como tal:
as nossas duas personagens
tenderão a diluir-se uma na outra.
Só mais uma coisa. Antes de afiarmos
as garras, que eu já não estou
a ficar assim muito bom, tens de saber
que no jogo anterior
ao contrário do que julgas
nós não encontramos todos os items.
Existe um artefacto que não consta das instru-
cões
e que só tu poderias encontrar.
É um item mais forte do que qualquer lança ou
poção
é um item transformado em personagem.
Essa personagem… estava no nosso grupo
e o artefacto era o Amor.
Agora deixemo-nos de pieguices.
Press action. E comecemos
a verter o fel.
Daniel Maia-Pinto Rodrigues, “A Sorte Favorece os Rapazes”, Cadernos do Campo Alegre, pp. 53-72, Porto, 2001.
Sem comentários:
Enviar um comentário