“Foi simplesmente
a história de como os patriotas fuzilaram um oficial que os traíra.
De como o levaram, livre e aristocrata, de camisa aberta à névoa da
manhã. De como o soldado reconheceu que os campos eram de alfafa. De
como ouviu o balir dos animais, o tanger dos sinos e o crescer das
hastes novas nos pinheiros. De como não se cruzaram palavras duras.
De como falaram com dignidade mútua. De como não houve ódios nem
castas. Porque não se disse que foi um ajuste de contas. Porque
apenas foi uma vitória adiada por esquecidas derrotas. De como o
país cabia no meu bolso, tão encolhido. E como tantos eram os
horrores, tão encanecidas as histórias que se contavam pela noite.”
João
Palma-Ferreira, “Os Crânioclastas”, pp. 31-2, Estúdios Cor,
Natal de 1972.
“Oeiras,
17 de Fevereiro de 1969.
Sou
um grande escritor de actas. Tenho escrito actas toda a vida. Escrevi
actas na Escola, no primeiro emprego, no segundo emprego, no terceiro
e no quarto. Estou a fazer a acta de mim próprio e, para que se
conste, foi feita esta acta que, depois de lida e aprovada, vai ser
assinada nos termos da Lei.
Em
tempo vou aditar algumas verdades amargas para uso legal. O documento
será autenticado com selo em branco. O funcionário arquivista
averbará: está conforme. Aos dezassete dias do mês de Fevereiro de
mil novecentos e sessenta e nove, pelas dezassete horas e quarenta e
cinco minutos, nesta vila de Oeiras, reuniu o Conselho de decisões
definitivas para apreciar o caso do cidadão João. Após as
saudações habituais aos membros do Conselho, o Presidente expôs a
doutrina e a actuação mais aconselhável para a concretização dos
propósitos. Procedeu-se a um rigoroso inventário dos temas a
abordar, em obdiência à ordem do dia. Não havendo qualquer assunto
a tratar antes da ordem do dia, foi a sessão imediatamente aberta. O
Presidente retomou a palavra e fez uma longa descrição da vida do
cidadão João. Sublinhou as suas falsidades e torpezas, a
sensualidade desenfreada e que é possesso, o estilo de vida que
mantém com grande escãndalo público. Acentuou o seu pendor para a
divagação, a tibieza do seu comportamento, auto-suficiência,
timidez e orgulho. Ilustrou com numerosos exemplos do conhecimento
geral. O Vogal representante do Instituto de Direitos Privados tomou
a palavra para descrever as qualidades do cidadão João,
demonstrando a sua capacidade de humor e de paciência, tolerância,
sensibilidade e bondade. O Presidente chamou a atenção do Conselho,
insistindo na proibição de exemplificações abstractas. O termo
bondade foi substituído pela expressão fraqueza humana.
O Presidente retomou a palavra para prosseguir na análise do
comportamento social do cidadão João, exemplificando com o seu
desprezo pelas instituições religiosas e pelas opções e
ideologias políticas, doutrinas, governos e regimes, demonstrando
certos aspectos do seu mau humor perante a obrigatoriedade de
qualquer dever colectivo, da sua relutância em observar as regras da
moralidade tradicional e demais pormenores de natureza pessoal que
designou como nítida paranóia. O Vogal representante do Instituto
de Direitos Privados pediu ao Conselho que todas as informações
fossem devidamente comprovadas com documentação oficial. O
Presidente tomou a palavra para afirmar que se opunha à petição do
Vogal representante do Instituto de Direitos Privados. Foi proposta a
votação. O Conselho não aceitou a proposta do Vogal representante
do Instituto de Direitos Privados que foi derrotada por uma margem de
quatro votos. O Presidente tomou a palavra e pediu a pena capital
para o cidadão João. A proposta foi apresentada à votação e
aceite por uma margem de cinco votos a favor. Nada mais havendo a
tratar, foi encerrada a Sessão da qual se lavrou a presente acta
que, depois de lida e aprovada, vai ser assinada nos termos da lei.
Em tempo: faz-se constar que o cidadão João foi enforcado pelas
dezoito horas deste dia dezassete de Fevereiro de mil novecentos e
sessenta e nove. Na hora da morte mostrou-se convenientemente
arrependido, como manda a Lei.”
João
Palma-Ferreira, “Diário (1962-1972)”, pp. 121-23, Editora
Arcádia, Abril de 1972.
“Em 1944 Ernest
dedicou dois longos poemas a Mary Welsh, escritos entre Maio e
Setembro daquele ano. Foram, pela primeira vez, publicados na revista
The Atlantic (Agosto de 1965, vol. 216, n.o 2) com
uma nota de Mary Hemingway. O Segundo Poema Para Mary
encontra-se gravado no disco Ernest Hemingway Reading, editado
pela Cadmon Records, de Nova Iorque. Até à data, uma única
tradução dos poemas foi divulgada no estrangeiro, que se saiba: a
versão em língua castelhana do cubano Armando Alvarez Bravo. A
tradução em língua portuguesa, que terminei há dias, é, portanto
a segunda que até agora se realizou. Baseia-se no texto original
inglês e na versão de Armando Bravo.
Segundo Poema
Para Mary
Dorme ele agora
Com essa cabra
velha, a Morte,
Que ainda ontem três
vezes se negou.
Repitam comigo
Dorme ele agora
Com essa cabra
velha, a Morte
Que ainda ontem três
vezes se negou.
Esperem. Aguardem
que eles terminem.
Continuemos.
Negaste-a?
Sim.
Três vezes?
Sim.
Repitam comigo.
Aceita esta cabra
velha, a Morte,
Por legítima esposa
Diante da lei?
Sim.
Sim.
Sim.
M. E. A. 6 of. 61 s.
13 Set. 2400 – 14 Set. 2400
Traduzam.
Mortos em Acção 6
oficiais, 61 soldados, da meia-
[-noite de 13 de
Setembro à meia-noite de
[14 de Setembro.
Repitam comigo
sessenta e sete vezes
Sim
Sim
Sim, sessenta e sete
vezes
Continuemos
E continua-se.
Na próxima guerra
sepultaremos os nossos mortos
[amortalhados em
celofane
Na próxima guerra
sepultaremos os nossos mortos
[amortalhados em
celofane
A Hóstia virá
empacotada nas rações K
A Hóstia virá
empacotada nas rações K
Distribuir-se-á a
cada homem um pequeno, mas
[perfeito,
Arcebispo Spellman
que enche automaticamente
(por deferência da
Air Reduction – aberto-fechado-
[-aberto-fechado)
Isto não é para
repetir. A cerimónia terminou.
Já se foram todos e
a ti próprio o dizes em voz alta.
Neste momento estás
só e este momento é sempre.
[Sempre era uma
palavra que utilizava nas
[promessas. Carece
de valor.
A todos os oficiais,
subalternos e soldados será distri-
[buída uma réplica
do seu verdadeiro amor,
[aquele que não
mais viram, e todas estas
[réplicas poderão
ser devolvidas pelas vias
[competentes.
O meu verdadeiro
amor é Mary Welsh.
Logo, supõe-se,
poderá ser devolvida.
Mas hoje, neste dia,
não aceitarei a rubrica do
[Arcebispo
Spellman. Nem a dela.
Vocês todos podem
ir-se embora, todos vós. Ponham-
[-se ao fresco o
mais caladinhos que vos for
[possível. E podem
levar o possível convosco,
[caso o encontrem.
E podem desfazer-se dele
[do modo que
acharem mais conveniente.
Hoje ninguém
emprega o calão porque a clareza é de
[vital importância
Convém amenizar,
mas só como adjectivo.
Ameniza o suor.
Significa isto que
devemos padecer sem nenhuma
[possibilidade de
modificarmos o resultado
ou o desenlace.
E nós, os que
conhecemos este segredo, caminhamos
[lentamente e
contemplamo-nos com infinito
[amor
e compaixão
Isto sobrevém
unicamente quando já cem dias decor-
[reram e é um dos
sintomas finais.
E temos irritação,
ira, medo, dúvida, culpa, negação,
[má interpretação,
erro, cobardia, torpeza e
[falta de talento
para este trabalho.
Tudo isto tivemos e
voltaremos a ter. E terá de ser
[enfrentado com
firmeza, segurança, coragem,
[rápida
compreensão e habilidade para ma-
[nobrar
e combater
Mas agora, por um
instante, apenas há amor e
[compaixão.
Repitam.
Só amor e
compaixão.
Para os B.F's
também?
Battle Fatigues,
oficiais, soldados, meia-noite 13 de
[Setembro... (?)
meia-noite 14 de Setembro)
Não.
Logo não é
compaixão.
Nem sequer para os
B.F's.
Sim, é amor e
compaixão.
Como podes dizer uma
coisa dessas aqui?
E como podes dizer
as outras?
Não somos nós que
pediremos mais. Não somos nós
[que a desejaremos
outra vez. Não somos
[nós que a
desejaremos. Nem a desejaremos
[maior.
Mas quando eles se
despediram daquele ignoto país
[de cujos limites
nenhum viajante
que ali não tenha
estado poderá regressar,
Despediram-se eles
de tudo que não podemos
[exprimir. E neles
morreu esse profundo co-
[nhecimento que
cresce com maior fragância
[e formusura do que
qualquer rosa.
Protegido pela morte
e apenas regado pelas lágrimas
[retidas até que,
hoje, floresce neste amor e
[nesta compaixão.
Para eles não.
Não. É pena.
Não está, por
isso, completo.
Não, nem jamais
estará.
E sem contrição.
Não, sem uma
estúpida e velha contrição.
Só compaixão e
amor.
Estende a tua mão á
obscura irmã do Amor, o Ódio,
[e caminha com ela
por essa colina que lenta-
[mente precorremos,
e verifica se lá em cima
[nos guarda o Amor
Ou quem, em seu
lugar, nos aguarda
Já te disse que
devido às circunstâncias ficou branco
[o meu coração?
A encantadora irmã
do Amor
Amorosa desamorável
Que
despreocupadamente se aproxima
Enamorando sem
submeter
Mas nunca
inteiramente equivocada
Só de metade
verídica
Prendendo sem
prender para prender no ponto de
[onde ligeiramente
pare o Amor sem nos
[deixar
o endereço.
O Amor parte
levemente sem deixar recado e é
[a sua obscura irmã
quem ocupa todos os
[espaços
Todas as formas
completamente ocupadas.
O que se escreve
revela um qualidade onde o Amor
[é muitas vezes
ilegível
Garatujado à pressa
enquanto ela sorri
Sem dar importância
à página.
Crês que a
encontraremos no alto da colina?
Não, há muito que
se foi embora. Nunca oferece
[batalha,
Sabendo muito bem
que o combate é imbecil, para
[sempre ido o amor,
só nos deixa o
desolado sacramento.
Tal como a refeição
que encontramos sobre a mesa
[de qualquer casa
de uma aldeia recém-
[-ocupada.
Assim o consumimos
agora. As suas pegadas marcam
[os nossos
maxilares. Como os restos de gema
do raro e desejado
ovo, e o nosso recém-devorado
[sacramento
Levemo-lo com os
recentes retratos dos nossos amores
[verdadeiros até
aos altos terrenos para lá
[da aldeia.
Até à fácil, suja
boca sorridente que tantos dias
[temos negado
Até à fácil, suja
boca sorridente que temos negado
[tantos dias (D
plus 108)
Movamo-nos agora
laboriosamente, até ao cimo dessa
[colina
E deixemo-nos levar
lentamente pelos pés até onde
[melhor nos saibam
conduzir.
Sábios são os pés
cautelosos
Os pés de John e os
pés de Harry
Os pés sabem
Os pés não
partirão.
Faz agora com que os
pés se movam lentamente
Faz com que os pés
te levem até onde nenhum arado
Marque o teu caminho
Onde tudo se
dissemine
Até ao local onde
estará morto.
DEVOLVAM-NA AGORA
PELAS VIAS COMPE-
[TENTES.
DEVOLVAM-NA.
Isto ajudar-te-á.
E.
Hemingway
in João
Palma-Ferreira, “Diário (1962-1972)”, pp. 98-105, Editora
Arcádia, Abril de 1972.
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