21/04/2014

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Paolo Virno

“A multitude, para Hobbes, é inerente ao «estado da natureza», i.e., àquele que precede a instituição do «corpo político». Mas o antecedente longínquo pode ressurgir, como um «destituído» que regressa para se fazer valer, nas crises que sacodem a cada momento a soberania estatal. Antes do Estado estavam os muitos, depois da instauração do Estado adveio o Povo-Uno, dotado de uma vontade única. A multitude, segundo Hobbes, ressurge da unidade, é refractária à obediência, não estabelece pactos duradouros, não consegue nunca o estatuto de pessoa jurídica porque nunca transfere os seus direitos naturais a um soberano. A multitude inibe essa «transferência» pelo seu próprio meio de ser – pelo seu carácter plural – e de actuação. Hobbes, que era um grande escritor, contava com admirável e lapidária prosa o facto da multitude ser anti-estatal e, por isso mesmo, anti-popular: «Os cidadãos, de tanto se rebelarem contra o Estado, são a multitude contra o povo»[1]. A contraposição entre os dois conceitos é aqui levada ao extremo: se há povo, nenhuma multitude; se há multitude, nenhum povo. Para Hobbes e para os apologistas da soberania estatal de 1600, «multitude» é um conceito-limite, puramente negativo: coincide, por isso, com os perigos que gravitam à volta da soberania do Estado, é um detrito que volta-e-meia pode obstruir a marcha da «Grande máquina». Um conceito negativo, a multitude: aquilo que não veio a definir-se povo, aquilo que contradiz virtualmente o monopólio estatal da decisão política. É, em suma, uma regurgitação do «estado de natureza» na sociedade civil.”

Paolo Virno, Gramática de la multitude – Para un análisis de las formas de vida contemporâneas, pp. 23-24, Traficantes de Sueños, Madrid, 2003. Trad. Livre.



[1] Hobbes, De cive, 1642, XII, 8.

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