Paolo Virno |
“A multitude, para Hobbes, é
inerente ao «estado da natureza», i.e., àquele que precede a instituição do
«corpo político». Mas o antecedente longínquo pode ressurgir, como um «destituído»
que regressa para se fazer valer, nas crises que sacodem a cada momento a
soberania estatal. Antes do Estado estavam os muitos, depois da instauração do
Estado adveio o Povo-Uno, dotado de uma vontade única. A multitude, segundo
Hobbes, ressurge da unidade, é refractária à obediência, não estabelece pactos
duradouros, não consegue nunca o estatuto
de pessoa jurídica porque nunca transfere os seus direitos naturais a um
soberano. A multitude inibe essa «transferência» pelo seu próprio meio de ser –
pelo seu carácter plural – e de actuação. Hobbes, que era um grande escritor,
contava com admirável e lapidária prosa o facto da multitude ser anti-estatal e,
por isso mesmo, anti-popular: «Os cidadãos, de tanto se rebelarem contra o
Estado, são a multitude contra o povo»[1].
A contraposição entre os dois conceitos é aqui levada ao extremo: se há povo,
nenhuma multitude; se há multitude, nenhum povo. Para Hobbes e para os apologistas
da soberania estatal de 1600, «multitude» é um conceito-limite, puramente
negativo: coincide, por isso, com os perigos que gravitam à volta da soberania
do Estado, é um detrito que volta-e-meia pode obstruir a marcha da «Grande
máquina». Um conceito negativo, a multitude: aquilo que não veio a definir-se
povo, aquilo que contradiz virtualmente o monopólio estatal da decisão
política. É, em suma, uma regurgitação do «estado de natureza» na sociedade
civil.”
Paolo Virno, Gramática de la multitude – Para un análisis de
las formas de vida contemporâneas, pp. 23-24, Traficantes de Sueños, Madrid,
2003. Trad. Livre.
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