Virgílio Martinho (Lx, 1928 - Lx, 1994)
"Em 1941 houve um ciclone e eu conheci o senhorio da nossa casa. Tinha uma das pernas paralisada. Tinha uma voz que lembrava as notas mais esganiçadas da gaita de beiços. Tinha os olhos estranhamente deslocados para o lado das orelhas. Era um homem triste e viúvo. Tudo porque fora soldado da guerra de 1914-1918 e os estilhaços de um obus fizeram carambola no seu corpo, estropiando-o. Houve o ciclone e o vento arrancou algumas telhas do nosso telhado, razão porque o pai ferroviário me mandou a casa dele para lhe comunicar o sucedido e tomar providências. Fui e conheci-o. A seu mandado sentei-me na extremidade da cadeira de verga, ele sentou-se diante de mim ficando com a perna paralisada perpendicular ao corpo, dizendo eu o que tinha a dizer, perguntando ele: quantas? respondendo eu o que o pai me havia ensinado: seis e duas do beirado, foi o ciclone. Ouviu e abanou a cabeça várias vezes de cima para baixo, fixando o olho esquerdo no aparador, o direito na minha pessoa, porque a bem dizer era mais do que vesgo, tinha os olhos repuxados para os lados, como os do sapo, ocorreu-me na altura. Depois falou-me, não de telhas, de si próprio, dizendo-me com aquela sua voz: sabes, a mulher é um arrimo, um consolo; o que me deixou transido porque nunca ouvira dizer semelhante coisa. E via-o ali sentado diante de mim, com a perna doente na horizontal, pingando dos dois olhos, lamuriando que era um pobre senhorio, que perdera tudo no mundo: a perna, o sítio exacto dos olhos, a voz viril, a esposa e agora, em 1941, seis telhas e duas do beirado. Então comecei a pensar que ele não queria arranjar o nosso telhado e falei-lhe da chuva, do vento, do frio que por ali entravam, ao que me respondeu que a solidão é como um prego metido na cabeça, coisa que também nunca ouvira dizer. Foi nessa altura que olhei para tudo e vi que o retrato da esposa estava em todos os lados da saleta, repetindo-se igualzinho dentro de todas as espécies de molduras; que havia uma população de esposas naquela casa. Em cima dos móveis, penduradas nas paredes, postas aos cantos em pequenas mísulas, e todas com o mesmo rosto a três quartos, o mesmo penteado, o mesmo olhar para cima. E não só na saleta, também no quarto, na cozinha, no corredor. Também nele próprio, no anel, no alfinete de gravata, suponho que na carteira, nas gavetas, no sótão, na despensa, sei lá onde mais, enquanto ele não deixava de abanar a cabeça, de chorar, não por estar exactamente a fazê-lo, porque desde que fora ferido pelos estilhaços do obus ficara com aquela voz de gaita e os olhos não lhe retinham as lágrimas, eram uma fonte, uma desgraça na sua vida. Depois levantou-se e apoiando-se nas muletas levou-me ao quintal. Aqui, mostrou-me uma campa como as dos cemitérios, com mármore, retrato e cruz em cima, aprendendo eu no Barreiro que entre coisas vivas podiam haver coisas mortas, e um senhorio que embora não tivesse pago o arranjo do telhado ao pai ferroviário tinha no seu quintal uma sepultura inventada e dentro de casa uma esposa multiplicada em centenas."
Virgílio Martinho in "O Relógio de Cuco", pp-77-79, Editorial Estampa, Lx, 1973.
Bibliografia principal:
- Festa Pública (1958)
- Orlando em Tríptico e Aventuras (contos) (1961)
- O Grande Cidadão (romance) (1963)
- A Caça
- O Concerto das Buzinas (romance) (1976)
- Filopópolus (teatro) (1973)
- Relógio de Cuco (1973)
- A Sagrada Família (farsa) (1980)
- O Herói Chegado da Guerra e outros Textos em Teatro (teatro) (1981)
- O Menino Novo (contos) (1989)
- 1383 (1976)
- Rainhas Cláudias ao Domingo (1982)
- O Grande Cidadão (1975)
- A Menina, O Gato e o Robot
- Fernão, sim ou não?
- O Gelo na Mesa
clicar na imagem para ampliar (A Regra do Jogo Edições, col. «Os Olhos Férteis, Porto, 1974= |
Homenagem a Virgílio Martinho:
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