Santos Fernando (Lisboa, 1927 - Lisboa, 1975)
Uma Biografia prefaciada... (in Cotovelos de Vénus)
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BIBLIOGRAFIA
A, Ante, Após, Até (1957)
Seis Gramas de Paraíso (1959)
A Bolsa do Canguru (1961)
Areia nos Olhos (1962)
Os Cotovelos de Vénus (1963)
Tempo de Roubar (1964)
As Uvas Estão Maduras (1965)
Consolação Número Três (1968)
Os Grilos Não Cantam ao Domingo (1969)
A Sopa dos Ricos (1970)
Absurdíssimo (1972)
A Árvore dos Sexos, (1974)
Sexo 20 (1975)
ARTIGOS DE FERRO RODRIGUES UMA LÁGRIMA (ENTRE PARÊNTESES) E LUIZ PACHECO SANTOS FERNANDO, MEU AMIGO - NO SUPLEMENTO LETRAS E ARTES DE 16 DE DEZEMBRO DE 1976
UMA LÁGRIMA (ENTRE PARÊNTESES) Artigo de FERRO RODRIGUES (*)
“FERNANDO, meu (nosso) inesquecível Amigo: porque foste sempre tão apressado? Que urgência era essa que te fazia correr, ansioso e alvoraçado, atrás do tempo que não querias perder?
No teu último livro, nesse «Sexo Vinte», que hoje releio com arrepios pelas suas fantásticas premonições, tu pões na boca do avô Lindolfo uma frase profundamente significativa: «Cheguei há pouco e não posso perder tempo.» «Sexo Vinte», um livro prenhe de sorrisos macabros e onde o amor e a morte se entrelaçam em festim de funérea sensualidade, foi a meta final da tua pressa. Este livro extraordinário, praticamente desconhecido, morreu (ou deixaram-no morrer) contigo. Na contracapa não trazia aquela fotografia de sorriso aberto, de sorriso gordo e rasgado que era, sempre, o teu primeiro brinde, mas um rosto que já não era o teu, onde há um esgar que quase nos assusta.
Fernando, meu (nosso) inesquecível Amigo: a tua pressa transparecia em tudo quanto escreveste. Nos teus livros, a partir dum certo tempo de escrita pausada, denunciavas a explosão do frenesim de acabar, vencia-te a necessidade urgente de pores o último ponto final, como se receasse ficar abruptamente pelo caminho onde fazias correr a tua infatigável imaginação.
Por duas vezes a morte nos tocou de perto. A primeira quando na praia da Rocha uma inesperada e assassina maré viva nos embrulhou em ondas de afogar. Tu, eu e o Eduardo Luís salvámo-nos agarrados a um providencial pneu de avião. Recordo-me do teu pânico ao pressentires que a razão da tua pressa poderia ficar justificada no fundo do mar do Algarve. Recordo-me também do teu humor negro e surreal quando, no meio de tão angustiada aflição, apontaste a fila compacta que a multidão desenhava na praia, à beira do mar enfurecido e gritaste «Olha tantos gajos a verem como se vai morrer!»
Isto aconteceu, Fernando, há mais de quinze anos. Era a época do furioso embargue quotidiano no nosso «comboio expresso», onde numa velocidade incrível nos acompanhavam os diálogos para o Vasco Santana – outro inesquecível e também gordo-apressado – os folhetins diários para o Igrejas Caeiro, a colaboração nos jornais humorístico, o «Ouvindo as Estrelas», o «Fogo-de-Artifício», as revistas do Parque, o “Despertador” e teatro para a TV, os argumentos para cinema, a publicidade, eu sei lá! E tu sempre com a tua pressa, uma pressa que me rebocava às sete e meia da manhã, num resfolegante aproveitamento do tempo livre, por cafés como o «Martinho» e o «Nacional», onde até às nove e meia – altura de iniciarmos as funções da nossa triste e contraditória vida burocrática – discutíamos e escrevíamos trabalhos da nossa inexpugnável parceria. Lembro-me da desconfiança que provocava, em plena era de «pides» à solta, o nosso estrénuo escrevinhar tão matutino. Uma manhã, no «Nacional», tu desenhaste numa folha de papel, com letra garrafal bem preta de tinta A REVOLUÇÃO COMEÇA ÀS NOVE E MEIA. E puseste a folha de papel virada ostensivamente para uma mesa próxima onde dois suspeitosos indivíduos mostravam por nós uma farejante atenção que cheirava muito a «bufos».
A segunda vez que a asa negra nos tocou, aconteceu a menos de quarenta e oito horas da tua morte. Encontrámo-nos no Sancho, numa quinta-feira de Dezembro, para almoçarmos. Os nossos encontros eram agora mais espaçados, a nossa vida literária já não embarcava no «comboio expresso», só nos encontrávamos quando o comboio da amizade parava nalgum apeadeiro. Durante o almoço ofereceste-me o «Sexo Vinte», acabado de sair do prelo e, em dada altura, fizeste-me esta confidência de estarrecer; «Olha lá, tu não achas que um tipo chega a atingir vinte e quatro de tensão já não devia andar cá neste mundo?» Fiquei siderado, com um enorme frio interior, a olhar estupidamente para ti, para o teu amplo sorriso levemente triste, receoso. E continuaste: «Talvez seja um tipo diferente dos outros.» E bebeste o bagaço.
Não interessa recordar o que te disse acerca dessa espantosa e terrível revelação. A verdade é que no sábado seguinte num táxi, rebentava-te «o tecto do mundo.»
Fernando, meu (nosso) inesquecível Amigo: agora compreendo (compreendemos) a razão da tua pressa. A tua luta contra o tempo saiu vitoriosa, deixou uma valiosa e sinceríssima Obra em que pudeste criar e recriar «o teu mundo» sem esqueceres a terra ingrata, lamacenta e hipócrita que pisavas. No teu «Absurdíssimo», tu próprio assim te defines: O escritor, parte integrante da vida da sua época, observador firme no meio social, muitas das vezes insociável, não pode desempenhar o simples papel de espectador frio e frívolo que volta costas à cena quando o acto que se representa tem uma protagonista com varizes. A sua missão lógica é estudar a geração a que pertence, de molde a auxiliá-la, gritando-lhe os podres, caricaturando-a, amando-a, em suma
E a «República» dizia, pouco tempo antes da saída do teu derradeiro livro: Santos Fernando é entre nós, um resistente. A sua inventiva levou-o para uma forma literária que foi fenecendo. O seu mérito e a sua personalidade está em ser lançado e ter conseguido caminhar e firmar pé, sem ter abdicado de ser ele mesmo.
Por isso, Fernando, o teu caminhar de pé firme faz-me (faz-nos) continuar a ver-te, todos os dias, com os teus livros e papéis debaixo do braço, passar cheio de pressa no passeio dos Restauradores. Escreveste no «Areia nos Olhos» que o humorismo é uma lágrima entre parêntesis. É verdade, Fernando. Mas o parêntesis que aparentemente te fechou, não poderá jamais prender a minha (nossa) lágrima.
Santos Fernando morreu fez um ano. Ao que dizem, assassinado pelos sonhos; ao que dizem, por viver apressadamente – outra maneira de se existir mais. Sabe-se o que envolve de complacência resignada a homenagem póstuma a qualquer amigo: surgem, quase inevitavelmente, as pias palavras sem significado, sem direcção, sem sentido. Santos Fernando merece a atenção lúcida dos que ainda se aprestam a apreciar a boa prosa servida por uma boa dose de imaginação. Mas nunca se fala de um amigo desaparecido sem a emoção rediviva dos momentos de antigamente. «O passado é sempre um resto» – disse-o Afonso Duarte. «Só tenho saudades do futuro» – proclama José Gomes Ferreira. Entre o resto e o futuro há, sempre, como entremeio, um tempo para a amizade. Aquela piscadela de olho; aquele instante sereno no bojo do qual ainda encontramos força para dizer um «olá!». “
Artigo de Ferro Rodrigues no Diário Popular em 16 de Dezembro de 1976.
(*) Ferro Rodrigues (1925-2006) - Autor dos livros Noite Sem Estrelas; Lusitânia Expresso e Proibido Andar Sobre a Relva. Amigo do escritor Santos Fernando, com quem manteve parcerias no teatro de revista do Parque Mayer, e colaborou nos programas dos Parodiantes de Lisboa. É o pai do ex-ministro do PS - Eduardo Luís Barreto Ferro Rodrigues.
(FOTO: Ferro Rodrigues)
SANTOS FERNANDO, MEU AMIGO por Luiz Pacheco
"Vi há muitos anos já, no Condes se bem me lembro (ah!, este meu Mestre Nemésio, que não me larga), um filme francês que perdi o título, seria de segunda, mas ficou gravado por qualquer mola potente e subconsciente, daquelas que a gente traz consigo e, quantas vezes muitas vezes, serão as decisivas. Entrava o Victor Francen. Era uma coisa assim: universo concentracionário, de qualidade especial: asilo ou recolhimento para actores da terceira idade, eufemismo que ao vosso ouvido posso dizer: velhadas, taralhoucos, for a de carroça, umas múmias. E havia uma cena, que é a tal. A que com toda a certeza, persistiu, teimosa, e suponho para aqui. Morria um dos comediantes e, coval aberto, o Francen ia prestar-lhe a última homenagem. O costume. Palavrinhas embargadas. E aldrabonas. Mas convenientes, conformes à circunstância. Tão inofensivas para o morto como para os fantasmas em redor, espreitando-se e resguardando-se no temor de serem a seguir os próximos enterrados. Aí, com uma solene dignidade, o Francen adiantava uns passos e declamava singelamente: «Meu pobre Fulano, gostaria agora muito de dizer que tinhas sido um grande actor, mas não posso. Foste, sim, uma criatura generosa, um grande amigo nosso», etc.
O Santos Fernando faz hoje, 13 de Dezembro, um ano que morreu. Ia visitá-lo (cravá-lo, precisamente) quando o ardina, velho compincha de copos, de serviço entre o Palladium e a Ginjinha, mesmo à porta dos Fosfatos, me dispara: «Olhe que o seu Amigo morreu, é agora o enterro»; inda subi o elevador. Silêncio. Corrida a Campo de Ourique, só para ver o regresso do acompanhamento dos Prazeres.
Nem quero falar de mortos. De gente viva, pois. E é bem vivo que o Santos Fernando me aparece em Caldas da Rainha, no Verão de 65. Grande corpo, grande copo, bom garfo, grande Amigo. Uma presença aberta em riso no gozo vivido de estar. Uma gentileza e uma delicadeza de sentimentos que espantavam. Também, a solerte imediata percepção do grotesco e absurdo das coisas e das pessoas, mas sem acrimónia. Nós (eu, o Vítor Silva Tavares) chamávamos-lhe o Homem Gordo, ligando o físico bojudo à larga compreensão, à grandeza de alma (para empregar um termo cristão) de que ele escuberava, numa bonacheirice que se julga ser apanágio quanto mais bochechudos dos gordos (não é, às vezes pior) e em Santos Fernando era dádiva, era superioridade inata, era decerto a resultante do seu fundo conhecimento da sociedade errada que o rodeava, de que foi vítima como tantos mas não lhe roubou nunca a alegria de viver.
Tenho coisas tocantes a relembrar desses tempos das Caldas, tão afectuosas como isto: ele trazia-me frequentemente de manhã fruta excelente de que se privava ao pequeno-almoço no Hotel Rosa, surpreendia-me na cama em plena ressaca para me reanimar com uma piada jovial, uma passeata repousante pelo Parque, uma arrancada às rajadas de iodo e sal do mar da Foz. E, caso invulgar entre colegas escribas, estimulou por palavras e actos o meu labor então bastante incómodo e isolado quase. E assim se manteve pelos anos fora, numa atitude que nele não podia supor postiça ou aduladora. Fez comigo, terá feito com muitos mais. Por pesporrência, por aquele pendor egotista de que me acusam e me acuso (e condeno), chamei-lhe «meu Amigo». Diria certo: Santos Fernando, nosso Amigo.
Que o era. E deveras. Na sua admirável capacidade de amar a vida, cabia ele e todos nós. Ainda aqueles que caricaturava, de quem se ria. E é isto, convirá vincá-lo, coisa tão rara no riso à portuguesa, incapaz desde sempre do motejo sem escárnio ou maldizer, do dito que não morda ou procure ferir, que no seu convívio se exemplificava e no seu humor escrito se reflecte."
O Santos Fernando faz hoje, 13 de Dezembro, um ano que morreu. Ia visitá-lo (cravá-lo, precisamente) quando o ardina, velho compincha de copos, de serviço entre o Palladium e a Ginjinha, mesmo à porta dos Fosfatos, me dispara: «Olhe que o seu Amigo morreu, é agora o enterro»; inda subi o elevador. Silêncio. Corrida a Campo de Ourique, só para ver o regresso do acompanhamento dos Prazeres.
Nem quero falar de mortos. De gente viva, pois. E é bem vivo que o Santos Fernando me aparece em Caldas da Rainha, no Verão de 65. Grande corpo, grande copo, bom garfo, grande Amigo. Uma presença aberta em riso no gozo vivido de estar. Uma gentileza e uma delicadeza de sentimentos que espantavam. Também, a solerte imediata percepção do grotesco e absurdo das coisas e das pessoas, mas sem acrimónia. Nós (eu, o Vítor Silva Tavares) chamávamos-lhe o Homem Gordo, ligando o físico bojudo à larga compreensão, à grandeza de alma (para empregar um termo cristão) de que ele escuberava, numa bonacheirice que se julga ser apanágio quanto mais bochechudos dos gordos (não é, às vezes pior) e em Santos Fernando era dádiva, era superioridade inata, era decerto a resultante do seu fundo conhecimento da sociedade errada que o rodeava, de que foi vítima como tantos mas não lhe roubou nunca a alegria de viver.
Tenho coisas tocantes a relembrar desses tempos das Caldas, tão afectuosas como isto: ele trazia-me frequentemente de manhã fruta excelente de que se privava ao pequeno-almoço no Hotel Rosa, surpreendia-me na cama em plena ressaca para me reanimar com uma piada jovial, uma passeata repousante pelo Parque, uma arrancada às rajadas de iodo e sal do mar da Foz. E, caso invulgar entre colegas escribas, estimulou por palavras e actos o meu labor então bastante incómodo e isolado quase. E assim se manteve pelos anos fora, numa atitude que nele não podia supor postiça ou aduladora. Fez comigo, terá feito com muitos mais. Por pesporrência, por aquele pendor egotista de que me acusam e me acuso (e condeno), chamei-lhe «meu Amigo». Diria certo: Santos Fernando, nosso Amigo.
Que o era. E deveras. Na sua admirável capacidade de amar a vida, cabia ele e todos nós. Ainda aqueles que caricaturava, de quem se ria. E é isto, convirá vincá-lo, coisa tão rara no riso à portuguesa, incapaz desde sempre do motejo sem escárnio ou maldizer, do dito que não morda ou procure ferir, que no seu convívio se exemplificava e no seu humor escrito se reflecte."
dp – 16-12-76, pág. VIII
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