02/04/2015

Escritores Esquecidos 12...



“Foi simplesmente a história de como os patriotas fuzilaram um oficial que os traíra. De como o levaram, livre e aristocrata, de camisa aberta à névoa da manhã. De como o soldado reconheceu que os campos eram de alfafa. De como ouviu o balir dos animais, o tanger dos sinos e o crescer das hastes novas nos pinheiros. De como não se cruzaram palavras duras. De como falaram com dignidade mútua. De como não houve ódios nem castas. Porque não se disse que foi um ajuste de contas. Porque apenas foi uma vitória adiada por esquecidas derrotas. De como o país cabia no meu bolso, tão encolhido. E como tantos eram os horrores, tão encanecidas as histórias que se contavam pela noite.”

João Palma-Ferreira, “Os Crânioclastas”, pp. 31-2, Estúdios Cor, Natal de 1972.



“Oeiras, 17 de Fevereiro de 1969.
Sou um grande escritor de actas. Tenho escrito actas toda a vida. Escrevi actas na Escola, no primeiro emprego, no segundo emprego, no terceiro e no quarto. Estou a fazer a acta de mim próprio e, para que se conste, foi feita esta acta que, depois de lida e aprovada, vai ser assinada nos termos da Lei.
Em tempo vou aditar algumas verdades amargas para uso legal. O documento será autenticado com selo em branco. O funcionário arquivista averbará: está conforme. Aos dezassete dias do mês de Fevereiro de mil novecentos e sessenta e nove, pelas dezassete horas e quarenta e cinco minutos, nesta vila de Oeiras, reuniu o Conselho de decisões definitivas para apreciar o caso do cidadão João. Após as saudações habituais aos membros do Conselho, o Presidente expôs a doutrina e a actuação mais aconselhável para a concretização dos propósitos. Procedeu-se a um rigoroso inventário dos temas a abordar, em obdiência à ordem do dia. Não havendo qualquer assunto a tratar antes da ordem do dia, foi a sessão imediatamente aberta. O Presidente retomou a palavra e fez uma longa descrição da vida do cidadão João. Sublinhou as suas falsidades e torpezas, a sensualidade desenfreada e que é possesso, o estilo de vida que mantém com grande escãndalo público. Acentuou o seu pendor para a divagação, a tibieza do seu comportamento, auto-suficiência, timidez e orgulho. Ilustrou com numerosos exemplos do conhecimento geral. O Vogal representante do Instituto de Direitos Privados tomou a palavra para descrever as qualidades do cidadão João, demonstrando a sua capacidade de humor e de paciência, tolerância, sensibilidade e bondade. O Presidente chamou a atenção do Conselho, insistindo na proibição de exemplificações abstractas. O termo bondade foi substituído pela expressão fraqueza humana. O Presidente retomou a palavra para prosseguir na análise do comportamento social do cidadão João, exemplificando com o seu desprezo pelas instituições religiosas e pelas opções e ideologias políticas, doutrinas, governos e regimes, demonstrando certos aspectos do seu mau humor perante a obrigatoriedade de qualquer dever colectivo, da sua relutância em observar as regras da moralidade tradicional e demais pormenores de natureza pessoal que designou como nítida paranóia. O Vogal representante do Instituto de Direitos Privados pediu ao Conselho que todas as informações fossem devidamente comprovadas com documentação oficial. O Presidente tomou a palavra para afirmar que se opunha à petição do Vogal representante do Instituto de Direitos Privados. Foi proposta a votação. O Conselho não aceitou a proposta do Vogal representante do Instituto de Direitos Privados que foi derrotada por uma margem de quatro votos. O Presidente tomou a palavra e pediu a pena capital para o cidadão João. A proposta foi apresentada à votação e aceite por uma margem de cinco votos a favor. Nada mais havendo a tratar, foi encerrada a Sessão da qual se lavrou a presente acta que, depois de lida e aprovada, vai ser assinada nos termos da lei. Em tempo: faz-se constar que o cidadão João foi enforcado pelas dezoito horas deste dia dezassete de Fevereiro de mil novecentos e sessenta e nove. Na hora da morte mostrou-se convenientemente arrependido, como manda a Lei.”

João Palma-Ferreira, “Diário (1962-1972)”, pp. 121-23, Editora Arcádia, Abril de 1972.




“Em 1944 Ernest dedicou dois longos poemas a Mary Welsh, escritos entre Maio e Setembro daquele ano. Foram, pela primeira vez, publicados na revista The Atlantic (Agosto de 1965, vol. 216, n.o 2) com uma nota de Mary Hemingway. O Segundo Poema Para Mary encontra-se gravado no disco Ernest Hemingway Reading, editado pela Cadmon Records, de Nova Iorque. Até à data, uma única tradução dos poemas foi divulgada no estrangeiro, que se saiba: a versão em língua castelhana do cubano Armando Alvarez Bravo. A tradução em língua portuguesa, que terminei há dias, é, portanto a segunda que até agora se realizou. Baseia-se no texto original inglês e na versão de Armando Bravo.


Segundo Poema Para Mary

Dorme ele agora
Com essa cabra velha, a Morte,
Que ainda ontem três vezes se negou.
Repitam comigo
Dorme ele agora
Com essa cabra velha, a Morte
Que ainda ontem três vezes se negou.
Esperem. Aguardem que eles terminem.
Continuemos.
Negaste-a?
Sim.
Três vezes?
Sim.
Repitam comigo.
Aceita esta cabra velha, a Morte,
Por legítima esposa
Diante da lei?
Sim.
Sim.
Sim.
M. E. A. 6 of. 61 s. 13 Set. 2400 – 14 Set. 2400
Traduzam.
Mortos em Acção 6 oficiais, 61 soldados, da meia-
[-noite de 13 de Setembro à meia-noite de
[14 de Setembro.
Repitam comigo sessenta e sete vezes
Sim
Sim
Sim, sessenta e sete vezes
Continuemos
E continua-se.
Na próxima guerra sepultaremos os nossos mortos
[amortalhados em celofane
Na próxima guerra sepultaremos os nossos mortos
[amortalhados em celofane
A Hóstia virá empacotada nas rações K
A Hóstia virá empacotada nas rações K
Distribuir-se-á a cada homem um pequeno, mas
[perfeito,
Arcebispo Spellman que enche automaticamente
(por deferência da Air Reduction – aberto-fechado-
[-aberto-fechado)
Isto não é para repetir. A cerimónia terminou.
Já se foram todos e a ti próprio o dizes em voz alta.
Neste momento estás só e este momento é sempre.
[Sempre era uma palavra que utilizava nas
[promessas. Carece de valor.
A todos os oficiais, subalternos e soldados será distri-
[buída uma réplica do seu verdadeiro amor,
[aquele que não mais viram, e todas estas
[réplicas poderão ser devolvidas pelas vias
[competentes.
O meu verdadeiro amor é Mary Welsh.
Logo, supõe-se, poderá ser devolvida.
Mas hoje, neste dia, não aceitarei a rubrica do
[Arcebispo Spellman. Nem a dela.
Vocês todos podem ir-se embora, todos vós. Ponham-
[-se ao fresco o mais caladinhos que vos for
[possível. E podem levar o possível convosco,
[caso o encontrem. E podem desfazer-se dele
[do modo que acharem mais conveniente.
Hoje ninguém emprega o calão porque a clareza é de
[vital importância
Convém amenizar, mas só como adjectivo.
Ameniza o suor.
Significa isto que devemos padecer sem nenhuma
[possibilidade de modificarmos o resultado
ou o desenlace.
E nós, os que conhecemos este segredo, caminhamos
[lentamente e contemplamo-nos com infinito
[amor
e compaixão
Isto sobrevém unicamente quando já cem dias decor-
[reram e é um dos sintomas finais.
E temos irritação, ira, medo, dúvida, culpa, negação,
[má interpretação, erro, cobardia, torpeza e
[falta de talento para este trabalho.
Tudo isto tivemos e voltaremos a ter. E terá de ser
[enfrentado com firmeza, segurança, coragem,
[rápida compreensão e habilidade para ma-
[nobrar
e combater
Mas agora, por um instante, apenas há amor e
[compaixão.
Repitam.
Só amor e compaixão.
Para os B.F's também?
Battle Fatigues, oficiais, soldados, meia-noite 13 de
[Setembro... (?) meia-noite 14 de Setembro)
Não.
Logo não é compaixão.
Nem sequer para os B.F's.
Sim, é amor e compaixão.
Como podes dizer uma coisa dessas aqui?
E como podes dizer as outras?
Não somos nós que pediremos mais. Não somos nós
[que a desejaremos outra vez. Não somos
[nós que a desejaremos. Nem a desejaremos
[maior.
Mas quando eles se despediram daquele ignoto país
[de cujos limites nenhum viajante
que ali não tenha estado poderá regressar,
Despediram-se eles de tudo que não podemos
[exprimir. E neles morreu esse profundo co-
[nhecimento que cresce com maior fragância
[e formusura do que qualquer rosa.
Protegido pela morte e apenas regado pelas lágrimas
[retidas até que, hoje, floresce neste amor e
[nesta compaixão.
Para eles não.
Não. É pena.
Não está, por isso, completo.
Não, nem jamais estará.
E sem contrição.
Não, sem uma estúpida e velha contrição.
Só compaixão e amor.
Estende a tua mão á obscura irmã do Amor, o Ódio,
[e caminha com ela por essa colina que lenta-
[mente precorremos, e verifica se lá em cima
[nos guarda o Amor
Ou quem, em seu lugar, nos aguarda
Já te disse que devido às circunstâncias ficou branco
[o meu coração?
A encantadora irmã do Amor
Amorosa desamorável
Que despreocupadamente se aproxima
Enamorando sem submeter
Mas nunca inteiramente equivocada
Só de metade verídica
Prendendo sem prender para prender no ponto de
[onde ligeiramente pare o Amor sem nos
[deixar
o endereço.
O Amor parte levemente sem deixar recado e é
[a sua obscura irmã quem ocupa todos os
[espaços
Todas as formas completamente ocupadas.
O que se escreve revela um qualidade onde o Amor
[é muitas vezes ilegível
Garatujado à pressa enquanto ela sorri
Sem dar importância à página.
Crês que a encontraremos no alto da colina?
Não, há muito que se foi embora. Nunca oferece
[batalha,
Sabendo muito bem que o combate é imbecil, para
[sempre ido o amor,
só nos deixa o desolado sacramento.
Tal como a refeição que encontramos sobre a mesa
[de qualquer casa de uma aldeia recém-
[-ocupada.
Assim o consumimos agora. As suas pegadas marcam
[os nossos maxilares. Como os restos de gema
do raro e desejado ovo, e o nosso recém-devorado
[sacramento
Levemo-lo com os recentes retratos dos nossos amores
[verdadeiros até aos altos terrenos para lá
[da aldeia.
Até à fácil, suja boca sorridente que tantos dias
[temos negado
Até à fácil, suja boca sorridente que temos negado
[tantos dias (D plus 108)
Movamo-nos agora laboriosamente, até ao cimo dessa
[colina
E deixemo-nos levar lentamente pelos pés até onde
[melhor nos saibam conduzir.
Sábios são os pés cautelosos
Os pés de John e os pés de Harry
Os pés sabem
Os pés não partirão.
Faz agora com que os pés se movam lentamente
Faz com que os pés te levem até onde nenhum arado
Marque o teu caminho
Onde tudo se dissemine
Até ao local onde estará morto.
DEVOLVAM-NA AGORA PELAS VIAS COMPE-
[TENTES. DEVOLVAM-NA.
Isto ajudar-te-á.

E. Hemingway

in João Palma-Ferreira, “Diário (1962-1972)”, pp. 98-105, Editora Arcádia, Abril de 1972.

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