20/12/2019

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RAPHAEL

Quando Juvêncio apareceu
Mascava uma raiz de pobreza coisa que serve!
E cuspia dentro de casa o amargo em nós.

Na trouxa
Trouxe Raphael.

Raphael não era o pintor
Nem o anjo de Raphael.

Ponhamos que fosse um anjo
O anjo de sua mãe.

Petrônia descia lavandeira
Pro corgo.
Juvêncio curava gado bicheiras
Raphael era um pouquinho miserável
Tal como a sua idade o permitia.

À noite vinha uma cobra diz-que
Botava o rabo na boca do anjo
E mamava no peito de Petrônia.

Juvêncio acariciava o ofídio
Pensando fossem os braços roliços da mulher.
Petrônia tinha estremecimentos doces
Bem bom.

Cenário de luar. Segundo ato.
Papagaio louro de bico dourado estava com fome
Desceu das folhas verdes
Ou verdes folhas conforme apreciais melhor
E começou a roer um naco
Um naco da testinha tenra
De Raphael.

Havia estrelas no céu
Suficientes para o poeta mais de romântico possível
E eu poderia colocar outras peças
Muitas, além de estrelas. Porém.
Sou um pobre narrador menso
Fosse isto uma Grécia de Péricles, não vê

Que deixava passar este canto
Sem de hexâmetros entrar!

Mandava vir cítaras e eólicas harpas
Convocava
Anjos de bundas redondas e troços do fundo do mar.
Porém.

De resto
Juvêncio não é um herói
Raphael não tem mãe Clitemnestra
E nenhuma cidade disputará a glória de me haver dado à luz.
Falo da vida de um menino do mato sem importância.
Isto não tem importância.

Manoel de Barros, "Poemas Concebidos Sem Pecado" in "Poesia Completa", pp. 35-37, Editorial Caminho, 2010.

15/12/2019

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Nós, Latinos, precisamos acompanhar o movimento do cérebro com o movimento das mãos, que sublinha e ampara o pensamento.
O Inglês não faz um gesto quando fala, e ao começar o seu discurso segura com ambas as mãos a gola do casaco, como que a estrangular a voz; o Latino estende os braços e as mãos, não à súplica, mas para dar mais fôlego ao peito e como que para desimpedir, desafogar o coração.”

M. Teixeira-Gomes, “2.ª Parte de Miscelânea – Carnaval Literário”, pp. 30-31, Livraria Bertrand, 3.ª ed., 1993.

13/12/2019

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"Que pena sermos dois!
Meu amor, somos dois.
Vejo-te, somos dois..."

Fernando Pessoa. 

08/12/2019

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Coimbra, 8 de Dezembro de 1933 Médico. Conforme a tradição, mal o bedel disse que sim, que os lentes consentiam que eu receitasse clisteres à humanidade, conhecidos e desconhecidos rasgaram-me da cabeça aos pés. Só deixaram a capa. E aí vim eu pelas ruas fora o mais chegado possível à minha própria realidade: um homem nu, envolto em três metros de negrura, varado de lado a lado por um terror fundo que não diz donde vem nem para onde vai.

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 11, 1941, Coimbra.

03/12/2019

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Coimbra, 3 de Dezembro de 1937 Por mais que faça, não faço nada. Enrodilho-me como as cobras nas matas, sofro, mordo se alguém me toca, e assobio de vez em quando uma ária que ninguém ouve. É de mim, é dos outros, é dos tempos que vão correndo. Mas hei-de morrer assim.
Tenho cá uma fé comigo que ainda há-de aparecer na minha vida alguém que me conte esta história do Erico Veríssimo:
– Filho. Sabe da história do pirú? La gente risca com giz um circolo in torno do pirú. E o cretino do pirú crede que está prêso. – Guarda… la vita é bela, il mondo te chiama. Salta o risco de giz, no seja come o pirú!

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 48, 1941, Coimbra.

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LIVRE, CRISTÃ E OCIDENTAL

“A Galeria Bernardette fazia um negócio excelente e o senhor Balakian tinha todas as razões para estar satisfeito. Era raro o dia em que não vendia uma meia dúzia de fruta, quase sempre dos mais procurados autores. Nesse mesmo momento acabava de vender uma lindíssima banana com a assinatura de Tibor Gayo. Uma banana Gayo realmente excepcional, com aquele alegre colorido tão poderosamente abstracto que caracterizava toda a fruta do artista.
A verdade é que a melhor sociedade, todos os apreciadores da capital eram seus clientes. Com frequência se ouviam comentários encomiásticos às magníficas frutas dos jantares mais apurados. Um banqueiro tinha que resolver grave problema de finança e era certo e sabido: no fim do repasto surgia a fruta com excelentes assinaturas. Com o ministro o mesmo: embaixador presente à mesa e pronto, lá estavam duas ou três pêras Capristano, naquele estilo forte e seguro do pintor. Realmente Capristano era caro mas ninguém discutia o preço. Valia e vendia-se bem.
Pois se ainda há dias me dizia o doutor Lesoto, o conhecido crítico:
Meu caro, ontem, em casa do Gualtério, havia uma maçã e dois abrunhos de Júlia Jardim que eram um regalo. Do melhor que conheço, estou-lhe a dizer. E tão maduros! Uma delícia.
Então aconteceu o inesperado. Estava o senhor Balakian a polir uma pêra Terensky quando lhe entra pela Galeria uma alta patente do exército, da Casa Militar do Ducado. Explicou ao que vinha, com exactidão militar. Sua Excelência dava, no dia seguinte, uma pequena recepção a uma delegação de deputados em visita ao país. Muito bem. Sua Excelência necessitava de uma série de obras para a sobremesa, das mais reputadas. Eram sessenta talheres. Logo, no mínimo seriam sessenta peças escolhidas. O preço não interessava, era só o senhor Balakian apresentar a conta ao erário. Posto isto, o marechal retirou-se avisando que mandaria pela fruta no dia seguinte, às seis da tarde.
O senhor Balakian ficou tremendamente preocupado. Nunca tinha grande acervo, não se podia conservar excessivamente a maioria das obras, sorvavam com enorme rapidez, era capital perdido. Deu um balanço ao que havia. Uma maçã e duas pêras Capristano, do melhor estilo, sóbrias e profundas. Sete bananas Tibor Gayo, ultimamente a procura de banana baixara um pouco. Um ananás realmente extraordinário de Ferdinand, de um colorido assombroso nos múltiplos losangos. Meia dúzia de ameixas sortidas, com a alegria de Júlia Jardim, a imaginação metafísica de Carlos Clarete e a dignidade antiga de Mestre Rovira. Três melões casca de carvalho com motivos folclóricos e não assinados, coisa própria para estrangeiros e, finalmente, uma pêra e três laranjas de Terensky, fulgurantes de abstracção. Feitas as contas, eram vinte e uma obras, embora pudesse considerar o ananás e os melões como obras não unitárias. Bem vista as coisas, digamos que podiam corresponder a quarenta talheres. Era o diabo, os convivas eram sessenta, conforme informara o marechal da Casa Militar. Uma encrenca, essas coisas não podiam ser feitas assim de repente, arreliava-se o senhor Balakian. Passou a tarde a telefonar para os artistas mais conceituados, mas nada. Uns não tinham tempo, outros faltava-lhe a fruta apropriada, outros ainda estavam ocupados com peças de grande porte, como abóboras. De factura exigente e demorada.
À noite, desesperado, mandou.me um recado de aflição pela Remualda da caixa que aparece umas vezes por outras cá em casa. Pensei um pouco, disse à Remualda que se pusesse à vontade que eu não me demorava e atirei-me para o telefone do PRAXIS, logo ali em frente. Enquanto sorvia um gin, liguei para o Militão Cuba, sabem, que vive em Balmoral. Ora, como também sabem com certeza, Balmoral é uma vila famosa pelos fenómenos constantes: já deu um nabo de sete quilos, um pianista búlgaro de dezoito meses e um frango com três pernas, isto que me lembre agora.
O Militão estava em casa e disse-me, eficaz como sempre, que lhe parecia poder solucionar a coisa. Eu que lhe aparecesse por lá logo de manhã e então se veria. Não quis explicar mais nada.
Passei a noite preocupado, embora não muito e, mal foi dia, corria à Galeria a comunicar o facto ao senhor Balakian. Aporrinhado como estava, viu ali a salvação e disse-me que usasse o seu helicóptero, para ser mais rápido.
Às onze e meia estava de volta. O Militão arranjara tudo, com o mais recente fenómeno de Balmoral: uma tremenda melancia de vinte quilos, de um verde radioso! Uma superfície ideal para a pintura paisagística, uma abundância excelente para os convivas que restavam.
Mas havia que acabar a obra. Tinha de ser rápido. O senhor Balakian, já de certa idade e com aquela complicação às costas, não tinha cabeça para nada. Lembrei-lhe o Fujimoto, no seu clássico paisagismo asiático, rápido na execução. Era o indicado, se estivesse livre. Isso mesmo, o Fujimoto, concordou o senhor Balakian e cedeu-me o carro, logo ali, para me atirar ao assunto.
Fui e vim em meia hora, numa loucura de volante, com Fujimoto, as seringas de Pravaz, os pincéis fininhos e as lacas apropriadas. Prometemos-lhe tudo e pusemo-lo numa azáfama criadora.
Ao quarto para as seis a paisagem oriental, exacta, delicada, de suave colorido, envolvia a enorme esfera verde. Na verdade, um dos melhores Fujimoto que me fora dado ver, se não o melhor.
Às seis a fruta era entregue ao enviado especial da Casa Militar.
Dias depois o senhor Balakian recebia do erário o cheque magnânimo e, cerca de um mês após a recepção, Sua Excelência agraciava-o com o colar do Mérito Agrícola Cultural. A melancia fora um êxito completo, o país saíra-se airosamente, com elogios unânimes dos deputados estrangeiros maravilhados.
Quanto a mim, recebi três nêsperas que o senhor Balakian me ofereceu com eterna gratidão. Três nêsperas excepcionais, devo dizer, com originalíssimas colagens do Senegal Júnior.
Souberam-me muito bem.”

Mário-Henrique Leiria, “Contos do Gin-Tonic”, pp. 15-18, Editorial Estampa, 2. ª ed., 1976.

02/12/2019

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Para uma pequena filosofia do Natal
Ao separar a correspondência, o carteiro encontrou várias cartas dirigidas ao Pai Natal. Como não tinham endereço, ficaram por distribuir. Desejos não endereçados não chegam ao céu!
Resolveu fazer Natal todo o ano. Quando o trataram de maluco, perguntou-respondeu candidamente: – Então o pinheiro não é árvore sempre verde?
Encontrou no sapatinho uma guilhotina de brinquedo.
À porta da loja de brinquedos, o Pai Natal já não podia com o frio. Um senhor teve pena dele e pagou-lhe um copo num bar vizinho.
Proposta (rejeitada) de um vereador amigo da natureza: fazer árvores de Natal nos pinhais (com pinheiros não cortados, evidentemente).
Todos os lugares deveriam ser santos no Natal.
Pelo Natal, um pequeno industrial arruinado decidiu relançar o seu talco invendável sob uma nova marca: NATALCO. «Mas é a pior altura do ano para se vender talco!», disse-lhe um amigo. «Não. É agora que os armazenistas fazem os seus estoques de Verão»», respondeu-lhe o industrial. E cada um parecia muito seguro do que afirmara. Eu pensava nos refegos dos bebés…
O mais triste do após-Natal: pinheirinhos, às portas das casas, como adereços imprestáveis.
Estão à espera de uma graça sobre o Natal e a gasolina, não estão? Então esperem…
– Que tens tu?
– Nada. É Natal.”


Alexandre O’Neill. In “Capital”, 20 de Dezembro de 1973.

13/11/2019

Livraria Edições 50kg...


No dia 29 deste mês de Novembro, na rua de Faria Guimarães no número 137, abro no Porto uma livraria alfarrabista. Na realidade é uma espécie de três em um. Porque, no mesmo local, além da livraria, também inauguro uma oficina de encadernação e restauro de livros, e a nova casa das edições tipográficas 50kg. Gostaria de contar convosco na inauguração, haverá um lanche e um beberete por volta das 17h00. Marquem já nas vossas agendas e apareçam para vos mostrar este novo espaço. Um abraço do Rui Azevedo Ribeiro. 

Horário: de Terça-feira a Sábado das 10h00-13h30 e das 14h30-19h00. 


Ferro...


03/11/2019

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QUESTÃO DE TERRAS


Quando o Ricardo Romarigues me convidou simpàticamente para ir passar o fim de semana lá na herdade, fiquei um pouco desconfiado.
Tinham-me contado que havia querela entre ele e o doutor Estêvão Brás Tramagal, tudo por causa de uma outra herdade, a herdade da Argola, que Ricardo tinha de antiga e que o doutor Tramagal afirmava ser proprietário por ocupação e cultivo. Dizia-se até que o doutor contratara malteses sólidos para lhe defenderem a causa. Coisas de terras, não é?
Mas acabei indo, na minha bicicleta.
Ao entardecer, quando estávamos de conversa, tendo ao alcance das mãos magníficas canecas de vinho esquentado à lareira e mastigando, com saborear lento, excelentes rodelas de paio e pão trigal, estrugiu o ruído inesperado lá fora. Corri à janela, espalmei o tabuado contra a parede que olhava o espaço.
E vi.
Através da terra larga avançava uma matula de porrete em punho, bigodes antigos, ar de mundo já esquecido.
Pisavam duramente e berravam em conjunto:
Argola é nossa. Argola é nossa. Viva Tramagal!
Pausa. Novo berro colectivo:
Argola é nossa. Argola é nossa. Viva Tramagal!
Era a briga.
Não tinha nada a ver com aquilo. Fechei o tabuado o melhor que podia, puxei as calças que me escorregavam embirrativamente e declarei ao Ricardo que, embasbacado, parecia não acreditar no berro que chegava:
Olha, aguenta-te.
Corri às traseiras, montei a bicicleta e aqui estou.
Coisas.”



Mário-Henrique Leiria, “Contos do Gin-Tonic”, pp. 147-148, Editorial Estampa, 2. ª ed., 1976.

23/10/2019

A stand up comedy dos novos filósofos...

"Então, que mentalidade mais realista podemos levar connosco para um casamento? Que tipo de votos precisaremos de trocar com o nosso parceiro para estabelecermos boas hipóteses de fidelidade mútua? Certamente que alguma coisa muito mais cautelosa e pessimista do que as banalidades do costume. Por exemplo: prometo desiludir-me contigo e só contigo; prometo fazer de ti o único repositório dos meus pesares, em vez de os distribuir por vários casos extraconjugais e por uma vida de D. Juanismo sexual; analisei as diferentes opções para ser infeliz e foi contigo que escolhi comprometer-me. É este o tipo de promessas generosamente pessimistas e gentilmente pouco românticas que os casais deviam fazer no altar.
A partir daí, um caso amoroso seria uma infidelidade somente à jura recíproca de se ficar desiludido de uma determinada forma e não uma esperança irrealista. Os cônjuges traídos já não se queixariam furiosamente de que esperavam que o parceiro fosse feliz com eles 'per se'. Em vez disso, poderiam gritar incisiva e justamente: "confiava que serias leal à variedade específica de desilusões que eu represento. ""

Alain Botton, "Como Pensar Mais Sobre Sexo", pág. 137. Expresso, 2019.

18/10/2019

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Tive de regressar a França. Deveres imperiosos de família chamavam-me.
Adeus, terra hospitaleira, terra deliciosa, pátria de liberdade e de beleza! Parto com mais dois anos, rejuvenescido vinte, mais bárbaro também do que à chegada e no entanto mais culto. Sim, os selvagens ensinaram-me muitas coisas, aqueles ignorantes, sobre a ciência de viver e a arte de ser feliz.
Quando deixei o cais, no momento de me fazer ao mar, olhei para Teura pela última vez. Tinha chorado durante várias noites. Agora, cansada e sempre triste mas calma, estava sentada sobre a pedra, com as pernas balouçando, tocando na água salgada com os seus pés grandes e sólidos. A flor que antes trazia atrás da orelha tinha-lhe caído sobre os joelhos, murcha.
Espaçadas, outras como ela olhavam, fatigadas, mudas, sem pensamentos, o pesado fumo do navio que nos levava a todos, amantes de um dia. E a ponte do navio, com os binóculos, durante muito tempo pareceu-nos ler nos seus lábios este velho discurso maori:
«Vós, brisas ligeiras do sul e do leste, que vos juntais para brincar e acariciar os meus cabelos, corram depressa para outra ilha: aí encontrareis aquele que me abandonou, sentado à sombra da sua árvore favorita. Digam-lhe que me viram chorar.»
PAUL GAUGUIN
1898”

Paul Gauguin, “Noa-Noa – Estada em Taiti”, pp. 115-116, Publicações Europa-América, 1998. Trad. Jacqueline Medeiros.

14/10/2019

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JULGAMENTO DEFINITIVO




O julgamento chegara ao fim.

O Juiz levantou-se, colocou a touca de pompons e encarou a assistência.

O silêncio era total quando o preboste tocou a corneta.

Todos se levantaram numa unanimidade respeitosa, enquanto o escrivão disparava os dois tiros da praxe.

A pequena porta à esquerda da tribuna abriu-se e os acusados entraram, acompanhados pelas vivandeiras e pelos carregadores habituais.

O coro, na varanda, entoou os primeiros acordes do hino e o decano dos archeiros perfilou-se e içou a bandeira.

Ia processar-se a leitura da sentença.

O Juiz estendeu o documento ao boticário de serviço nocturno que fora chamado especialmente.

A acusação descritiva foi lida em primeiro lugar, para descrever a acusação apresentada a favor dos acusados pela Comissão de Inquérito.

Os três réus eram elogiados sob reserva por, em local algures, terem exterminado trinta e sete crianças avulsas, setenta e duas mulheres em movimento recalcitrante, onze velhos não autenticados e sete cabras suspeitas de espionagem comercial, embora o óbito destas últimas não tivesse sido confirmado pela Comissão de Inquérito. Também lhes era atribuído o incêndio de três aldeias não localizáveis e de duas cadeiras Luís XV já localizadas, se bem que sem número de catálogo.

O preboste tocou a corneta e o escrivão, em sentido, disparou o tiro da praxe.

Ia ser lida a decisão final.

Os acusados viraram-se para o Juiz.

As vivandeiras viraram-se para os acusados.

Os carregadores viraram-se uns para os outros.

O Juiz tirou a touca de pompons, pôs o chapéu das circunstâncias sentenciosas e virou-se para o boticário.

O boticário prosseguiu a leitura do documento.

Verificados os acontecimentos e sendo os mesmos louvados por unanimidade, os acusados sofriam os seguintes benefícios:

O primeiro acusado, de boné grande (vinte e uma crianças, trinta e seis mulheres, sete velhos, duas aldeias), recebia medalha de ouro.

O segundo acusado, de boné pequeno (dez crianças, vinte e nove mulheres, três velhos, uma aldeia), recebia medalha de prata.

O terceiro acusado, sem boné (seis crianças, seis mulheres, um velho, nenhuma aldeia mas duas cadeiras), tinha direito a medalha de bronze.

A assistência irrompeu em aplausos frenéticos, com preferência evidente para o segundo acusado, que era da terra.

O boticário enrolou o documento e devolveu-o ao Juiz que o entregou ao Depositário de Secos e Molhados.

O preboste tocou a corneta e o escrivão, atento, deu os três tiros da praxe.

As vivandeira beijaram os acusados.

Os carregadores beijaram o boticário.

Todos se sentaram.

Os acusados subiram ao podium e saudaram a assistência, em sentido e sem rir.

O coro, na varanda, entoou os últimos acordes do hino.

À noite, depois da marcha triunfal, houve um cocktail Molotov comemorativo, no Palácio dos Jogos Fenianos, com a presença de todas as altas personalidades do Condado.

Dizia o Juiz aos três homenageados «ainda não lhes contei a última do Reboredo» quando o mundo explodiu.”




Mário-Henrique Leiria, “Contos do Gin-Tonic”, pp. 47-49, Editorial Estampa, 2. ª ed., 1976.

08/10/2019

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S. Martinho de Mouros, 8 de Outubro de 1946 Depois de uma pietá no convento de Cárquere a chorar o filho, uma tela na igreja românica desta terra, com um S. Martinho a dividir a capa. O catolicismo banalizou o bispo de Tours de báculo e mitra, mas os artistas persistem na visão de um homem bom (semi-bom, afinal) a repartir a capa com o semelhante. Talvez não seja muito edificante a parcimónia do gesto. Os artistas, porém, sabem até onde o humano é legítimo e santo. Dar metade da capa, é um nobre gesto de solidariedade. Dar a capa inteira e ficar nu, é proibido pela polícia.

Miguel Torga, “Diário IV”, pp. 16-17, 1953, Coimbra.

30/09/2019

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A VELHA E AS COISAS


Verdade se diga que o país era pequeno, bem pequeno mesmo. Logo, é evidente, as coisas também tinham de ser pequenas, para caberem.

Daí os partidos. Havia o partido Blicano e o partido Crático; assim reduzidos, cabiam. Eram a Oposição.

Além disso, havia a Posição. O General, os Dois Coronéis, o Sargento (justicialista), o Professor Mustache, autor da Constituição e de «Cartas Patrióticas ao Corneta Pir» e a Velha dirigindo, claro.

Portanto as coisas lá iam, o comportamento geral era bastante aceitável, as cebolas vendiam-se a contento, o nabo aguentava-se, havia a nêspera e o export-import funcionava mais ou menos.

Mas também havia as eleições à porta. Era preciso tento, nada de imprevidências. E chamou-se o Galvez, dos Suplementos Literários, para montar o processo jurídico, organizar e levar o assunto a bom termo, como devia ser.

O Galvez organizou.

Leram-se as dignidades do preparo. O discurso activou-se e a pátria foi avisada que estava em perigo. Houve quermesses. A Velha explicou tudo ao país, mais uma vez, pela televisão. Elegeram-se misses e praticou-se música histórica, própria da conjuntura.

Assim se foram três meses, com várias bofetadas esclarecedoras aos que, pelos cafés, ainda não sabiam.

Então chegou o dia do voto. Todos deram o papel que lhes tinha sido entregue. Alguns espancamentos disciplinares, para clarear o voto, e a contagem fez-se.

A informação foi a seguinte:

Sopa de Feijão Branco (candidato Blicano)    – 13 728

O Bode (candidato Crático)                          – 13 727

D.ª Josefa Sur-Mer (candidata independente)– 13 726

O General (candidato)                                 – 13

Donde, conforme a Constituição, o General foi eleito de novo, por maioria absoluta.

Havia os seguintes impedimentos legais:

Sopa de Feijão Branco não residia há mais de cinco anos no país (inconstitucional, portanto).

O Bode era menor e não estava inscrito nos cadernos eleitorais (inconstitucional, evidente).

D.ª Josefa Sur-Mer não sabia Matemáticas Modernas, já residia há mais de cinco anos no país e, além disso, era Sur-Mer (totalmente inconstitucional).

Vendo o acontecimento, o Galvez ameaçou escrever para mais Suplementos, pondo tudo em pratos limpos, já que lhe parecia – tinha até provas – que Sopa era residente perpétuo.

O Galvez foi chamado. A Velha falou-lhe. O Galvez escutou. A Velha explicou-lhe. O Galvez era patriota. O Galvez ficou convencido.

Daí em diante o Galvez passou a negociar – com exclusivo próprio – na exportação de nêspera conservada, do pescado enlatado e da camisa em renda de bilros. Teve também o Turismo e o Gabinete Alfandegário.

Aqui se vê, portanto, que a coisa pública seguiu esclarecida, firme, como era de desejar.

No entanto, dado o tamanho realmente pequeno do país, como aliás já fiz notar, houve que fazer mais umas reduções. A Oposição passou a chamar-se só Ó e os dependentes devido à situação económica e à outra, ficaram apenas Pendentes.

Visto isto, o Galvez foi de ministro plenipotenciário para Tombuctu.

Como dizia a Velha, no seu habitual «Colóquio à Lareira» pela televisão:

Para a frente, meus filhos. A pátria nos contempla e o passado nos espera.”




Mário-Henrique Leiria, “Contos do Gin-Tonic”, pp. 121-123, Editorial Estampa, 2. ª ed., 1976.

27/09/2019

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Sabugueiro, 27 de Setembro de 1949
          – Nada, meu Senhor! Acredite: Ninguém tece um fio…
Que tristeza não poder visitar uma aldeia do país sem que o povo se alvoroce a cuidar que é o fisco que o vem desgraçar! Que velha e dolorosa chaga de perseguição a doer-lhe na memória! Nunca o visitaram com amor. Sempre o procuraram para o enganar, mentindo-lhe na religião, no ensino, na economia, na assistência. Por isso continua a espreitar-nos dos buracos como um bicho perseguido, e é com alívio que nos vê partir – a nós, seus irmãos, filhos da mesma terra!
O espelho da nossa traição de civilizados são as aldeias de Portugal.”

Miguel Torga, “Diário V” 2ª ed. Revista, pág. 51, Coimbra Editora, 1955.

26/09/2019

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Coimbra, 26 de Setembro de 1949 – Blake. Uma noitada de poesia e loucura, de que amanheci tonto e maravilhado. Nunca me aproximo deste homem sem que saia de ao pé dele meio maluco também, carregado de visões angélicas. Há outros poetas que admiro mais, e de cuja obra posso tirar um alento mais consciente e positivo. Mas nenhum me seduz tanto como este doido que nunca chegou à perdição de Hölderlin, e que pôde levar ao fim, intacto, o cristal duma vida de poeta possesso. Na sua fonte torrencial podem refrescar-se ainda todos quantos acreditam que nenhum pudor, nenhum limite e nenhuma norma devem coagir o artista.
A nossa poesia não tem loucos. Balisa-a um sentimentalismo lúcido de craveiro estacado e florido no seu poial. Só Gomes Leal se desbordou, mas sem grandeza. Por isso o superlúcido Pessoa, através de Walt Whitman, veio mergulhar neste brumoso inglês as raízes Ávidas de cósmico e de inorganizado.
A minha dúvida sobre o nosso génio nutre-se destas evidências. De companhias como as de Blake emerge-se com estrelas agarradas aos cabelos; do compadrio com Garrett sai-se com as asas depenadas.”

Miguel Torga, “Diário V” 2ª ed. Revista, pág. 50-51, Coimbra Editora, 1955.

24/09/2019

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Escreveu em seis dias uma nova peça. Um dos personagens dizia: «Eu pensava estar morto, mas creio que era outro qualquer.»”
 
William Soroyan, “Um Dia no Crepúsculo do Mundo”, pág.220, Editora Ulisseia, Lisboa, 1973. Trad. Marina Aparício e Fernando Lopes.

17/09/2019

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"Society is like a stew. If you don't stir it up every once in a while then a layer of scum floats to the top." (Edward Abbey)

15/09/2019

"Oops!"...


Por acaso, em uma das minhas anteriores visitas a Londres, eu travara relações com uma sufragista de alto coturno, à qual manifestara toda a minha simpatia pela «causa», e, por acaso também, foi ela uma das primeiras pessoas que encontrei quando entrei em funções. Reafirmei-lhe os meus sentimentos, e isso (à parte algum exagero) com sinceridade e convicção: a mulher inglesa, geralmente muito mais culta do que o homem tinha boas razões para exigir o direito do voto.
Admirável foi o efeito que produziram as minhas declarações, comunicadas sem demora aos corpos dirigentes: veio logo uma delegação perguntar-me se a República Portuguesa não estaria disposta a praticar almejada reforma, e em cada sufragista surgiu uma defensora da nossa revolução, que bem precisava desses favores, pois a atmosfera de que fruía em Londres era péssima.
Constava que o governo inglês tao cedo não reconheceria a nossa república, e assim, mostrando-me publicamente a sua estima, as sufragistas manifestavam-se contra os seus actuais opressores.
Toda esta salada seria inverosímil e absurda noutro país, mas a Inglaterra é a pátria consagrada de todas as extravagâncias, e um amigo meu, que a conhecia a fundo, comparava-a ao Celeste Império. Para em tudo se assemelharem, afirmava ele, até houve na Grã-Bretanha uma espécie de muralha da China: aquela que o imperador Adriano construiu, para separar a Escócia do resto da ilha, e estendia-se do mar do Norte ao Atlântico… E com razão se consideram os Ingleses como sendo o povo mais espiritualista da Terra – ajuntava ele: até a gramática inglesa admite incondicionalmente a existência da alma humana, como agora do «Grande Lafaiette» (um cómico que morrera queimado em Edimburgo): «o grande Lafaiette perdeu ali a vida e perdeu o seu cão», entendendo-se que a alma do cómico perdeu o seu corpo e o cão…
Estas brincadeiras, que eu transmiti num «chá das cinco» à minha amiga sufragista, granjearam-me a fama de humorista, qualidade muito apreciada no Reino Unido, e para me ouvir ofereceram-me um soberbo banquete, onde entre outras notabilidades encontrei o Conan Doyle, então já absolutamente afogado no espiritismo. Veio para mim de braços abertos, chamando-me ilustre colega: constava-lhe que eu evocava a alma do grande Lafaiette e com ela tinha amiudadas conferências!...
Esse banquete (de resto opíparo, muito bem servido, e abundante em convivas jovens e lindas) foi dos episódios mais alegres da minha vida, e tão bem disposto me encontrava que, quando me chegou a vez de discursar, dei largas à fantasia, tendo repentes felizes que foram delirantemente aplaudidos. Porém, no auge do arrebatamento, feita a apologia do sufragismo, atrevi-me a forragear pelos campos do humorismo, e declarei que pessoalmente ansiava pelo restabelecimento do matriarcado, na esperança de que os homens seriam tratados com as atenções e desvelos que hoje dispensamos ao sexo frágil, e, enquanto as mulheres suavam e tressuavam para nos sustentar e enfeitar, nós levaríamos a vida repimpados em flácidos coxins, fumando por narquilés, e tocando harpa…
Foi um balde de água fria lançado sobre aquela fogueira de entusiasmo.
Após um momento de profundo e geral silêncio ouviram-se murmúrios de desaprovação; as estenógrafas suspenderam o seu trabalho: algumas senhoras idosas levantaram-se e saíram, e até o Conan Doyle, de olhos cerrados e mãos cruzadas sobre a barriga, parecia ter mergulhado definitivamente nos abismos onde só os espíritos adejam…
De nada me valeu acudir sem demora apodando de mero gracejo a atrevida passagem, a qual eu renegava, mas veio depois uma comissão participar-me que não seria publicada na imprensa. Algo estomagado com a forma peremptória como foi feita a comunicação, respondi que não consentia em cortes: ou o discurso todo ou nada. Aqui ardeu Tróia. Houve clamores de revolta e olhares assassinos, e tomando o café já frio separámo-nos sem excessos de cordialidades.
Não há dúvida, pensava eu com os meus botões, a caminho da cama, fui buscar lã e vim tosquiado.
Puro engano. Ao dia seguinte a imprensa sufragista dava conta do banquete, nos mais elogiosos termos para Portugal e para o seu representante.
Belo exemplo de sentido político, justo e prático: naquele momento eu representava um trunfo no jogo das sufragistas e elas entenderam que não seria conveniente perdê-lo. Foi quando me convenci de que a vitória da «santa causa» era certa…

M. Teixeira-Gomes, “2.ª Parte de Miscelânea – Carnaval Literário”, pp. 157-160, Livraria Bertrand, 3.ª ed., 1993.

07/09/2019

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O «bovarysmo», expressão inventada por Júlio Gaultier, e hoje de uso corrente, pode ser ampliada no sentido de levar ignorantes obstinados à recusa de verdades evidentes, para só admitirem o que a princípio se lhes afigurava seguro e certo. Exemplo: no consultório de um meu amigo apareceu, com um tumor no ouvido, uma mulher que a muito custo, e após grandes instâncias, consentiu em ser lancetada. O ouvido estava cheio de «caca de anjinho» (excremento de criança de mama) que ela pusera na persuasão de que seria mezinha infalível. E era tanta que o médico tirou e lavou com muitíssimo trabalho. Depois da punção, a mulher, tal como lhe assegurava o médico, sentiu-se logo aliviada e observou: – «Afinal eu estava com medo e isto não doeu nada… Sinto-me melhor; bem se vê que a ‘caca de anjinho’ é excelente para estes bichocos…»
Mas o «bovarysmo» pode ir ainda muito longe, levando indivíduos de fraca envergadura intelectual a presumir das forças que a si mesmos atribuem, energias consideráveis, como se dispusessem daquela acção nervosa que é exclusivo apanágio dos heróis.”

M. Teixeira-Gomes, “2.ª Parte de Miscelânea – Carnaval Literário”, pp. 145-146, Livraria Bertrand, 3.ª ed., 1993.

06/09/2019

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Coimbra, 6 de Setembro de 1949 – Só me vem roubar tempo e maçar-me. Mas recebo-o sempre com deferência, e ouço-o com a melhor atenção que posso. Com todos os seus defeitos, é um leitor. Um homem capaz ainda de se debruçar sobre um poema, atento e enlevado horas a fio. A vida levou nos seus braços velozes a calma dos dias passados, que dava para fazer passeios, pelos campos e pelos livros. Agora reduziu tudo ao essencial, ao caldo e às batatas, e só verdadeiros heróis, sujeitos deformados e anacrónicos, têm a necessidade de ler e meditar. Por isso é preciso acarinhar estes fenómenos. E não tanto pela arte, que, afinal, se não é precisa não tem nada que fazer no mundo, mas por eles, que são doentes, diferentes, condenados paladinos duma causa perdida.”

Miguel Torga, “Diário V” 2ª ed. Revista, pág. 44, Coimbra Editora, 1955.

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