05/08/2018

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Monte Real, Agosto de 1938, Domingo Quatro horas num destes comboios portugueses que parecem arcas de Noé. Quatro horas arrumado entre uma canastra de sardinhas e a sua dona, a ouvir o que nunca cudei de ouvir. Quando cheguei ao fim, por fora, era pescador. Por dentro é que fui verificar. Mas não: – Olhei-me bem e, infelizmente, era o mesmo pobre-diabo de sempre, poeta, etc e tal, amarfanhado, mas com ares de Traga-Moiros, quase a pedir desculpa por não ser realmente o homem daquela Maria Cação.

Miguel Torga, “Diário I”, pp. 70-71, 1941, Coimbra.

04/08/2018

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Sete-Pedras, 4 de Agosto de 1942 – (…) Hoje, numa das minhas peregrinações por esta terra portuguesa, que eu amo como um namorado, fui descobrir numa quinta perdida entre milharais e ramadas uma mulherzinha que me fez saltar o coração no peito. A criatura tinha estrume nas mãos, uma rima de netos à volta, os dentes podres, e tudo quanto era preciso para ser dali; mas havia nela um nada indefinido e suspeito que me arrebitou a orelha. Reparei melhor. Penteava o cabelo sem risca, puxado ao alto, andava duma maneira particular, brilhava-lhe nos olhos um sorriso fino, irónico, e falava do Porto como do único sítio do mundo onde a gente se podia lavar à vontade. Com jeito, lá cheguei ao fim – a um cartão que dizia isto:

Carolina Michaëlis de Vasconcelos

Declara que M.R. a serviu durante anos,
É limpa, fiel, e sabe do seu ofício.


Miguel Torga, “Diário II” 3ª ed. Revista, pp. 48-49, Coimbra Editora, 1960.

03/08/2018

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Este livro que supostamente abordaria uma ética do caçador... Não tem nada a ver com isso! Não é sobre caça, não é sobre caçadores, cães ou espingardas... Não é sobre peças... Tirando a peça que é o autor...







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Coimbra, 3 de Agosto de 1939 Se lhe pudesse dizer o que a sua dispersão me aflige, me desanima…
Para mim o artista é uma espécie de animal obstinado, com antolhos, que anda a gemer a vida inteira à roda de um poço, sem ver mais nada, sem acreditar em mais nada, sem lhe doer mais nada.

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 100, 1941, Coimbra.

Western Spaghetti...


29/07/2018

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Coimbra, 29 de Julho de 1942 – Cada vez mais doente e mais só, a lutar contra este Portugal como um insecto contra a parede do frasco onde foi encerrado. Encho-me de coragem, faço das tripas coração, e subo um centímetro pelo muro acima. Mas escorrego e caio. Não há esforço nem garras que vençam isto. O frasco é de vidro grosso, e absolutamente liso.”
Miguel Torga, “Diário II” 3ª ed. Revista, pág. 36, Coimbra Editora, 1960.

26/07/2018

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Gerez, 26 de Julho de 1943 A máxima desilusão destas curas senti-a eu hoje ao ouvir um velhote dizer isto:
– Quando aqui vim pela primeira vez, as moscas mordiam-me nas pernas; agora mordem-me na careca.

Miguel Torga, “Diário III”, pág. 13, 1954, Coimbra.

22/07/2018

Domingo...



Fotografia de Ramón Gomez de la Serna quando editou cinco livros seus. Revista Buen Humor, 1922.
     
     “Ozori era o mais elegante entre todos, e recorria à elegância para seduzir Luma.
      Pôs o traje dos domingos. Quanto mais incivilizado for um povo, mais existe o traje dos domingos, a bengala dos domingos, a alma dos domingos.”

Ramón Gómez de la Serna, “Seis Novelas Falsas, Antígona-Editores Refractários, p.103, 2002. Trad. José Colaço Barreiros.

11/07/2018

Kehre, khere... Querias?...


Coimbra, 11 de Julho de 1944 É preciso dar uma volta a esta minha poesia ou desanda tudo numa choradeira de funeral. A depuração lírica que tentei não bastou, como se viu. Os motivos foram-se diluindo no regato da emoção, e qualquer expressão pura, que será o êxtase dado numa palavra. Na rua tudo a desfazer-se em água, por exemplo, e eu por dentro da janela a escrever – Chove! A exaltação foi dando lugar em mim a uma morrinha subjectiva, e os grandes motivos de inspiração olham-me de soslaio, desconfiados. Parece que nem o sol me aquece, nem o frio me regela, nem as flores me entram nos olhos. Sem falar nos semelhantes, que devem ler estes versos como eu leio os Haikai japoneses.
Se eu ao menos tivesse paz neste lirismo doméstico, vá que não vá. Mas não tenho. Acabo o poema, e fica-me o coração cheio de fome. Os meus braços nasceram para abranger fraternidades largas, sentimentos profundos, emoções fortes e naturais. Em certos momentos apetece-me, realmente, o sorriso dicreto e ecreto de uma violeta. Mas são pequenos desvios ou distracções na rota aberta dos meus passos.
Bem sei que esta carnificina que me rodeia concorreu largamente para a repressão dos meus sentimentos universais e cósmicos. O choque foi tão brutal, morreram-me tantas esperanças à nascença que. Como um caracol acossado, naturalmente fui fazendo da minha concha o meu mundo. Foram muitas derrotas junta, muitas desilusões seguidas. A minha sensibilidade não estava preparada para enfrentar uma catástrofe tão dura. Criado literàriamente à sombra e Prousts e de Joyces, a arte era para mim um descampado lúdico e pessoal de quermesse. Embora todo o meu ser tivesse protestado desde o início contra esta visão, paradisíaca e privativa, da beleza, a verdade é que nunca tive forças para rever inteiramente a minha posição. Ia cantando as minhas dores e as minhas alegrias, sobretudo as primeiras, às vezes a pensar nas dos outros, mas sem fazer finca-pé nessa solidariedade. Todos os Gides me tinham ensinado que os homens se dividiam em artistas e não artistas, e que os dois grupos não se podiam encontrar na vida. Nem o facto de eu ter certas ideias política me valeu. A lição era peremptória. Tanto quanto possível, o homem e o artista deviam viver dentro de mim em compartimentos estanques. Veio então a guerra. Não a que se contempla agora com os olhos esbugalhados, mas a que ninguém quis ver, e que começou por levar latinidade e cultura dentro de bombas incendiárias às palhotas selvagens da Abissínia… E o sofrimento de milhões de irmãos poderia ser a redenção, se não fosse o peso excessivo de ódio e crueldade que trazia. Espontâneamente, todo eu fui chamado para o campo da comunhão humana, para o terreno chão onde se encontram todos os que sabem que viver é sobretudo amar e ser amado. Mas o cântigo de fraternidade cobriu-se de lágrimas e manchou-se de nódoas de sarcasmo. Escrevi uma Lamentação, quando queria escrever uma libertação. Mas na alma de um poeta nunca se apaga de todo a luz duma esperança. A onda de sangue não foi capaz de submergir em mim uma sede contínua de amor universal. E eu sinto cada vez mais urgente a necessidade de pôr de acordo a minha poesia com a minha razão e o meu instinto.
Rampa e O outro livro de Job eram ferozes de mais, havia neles uma espécie de maceração desumana, de grelha em fogo onde a alma e o corpo se queimavam de desespero, e onde só cabia um homem de cada vez. Tributo e Abismo são tentativas vãs para sair dessa polé de tortura.
Os poemas líricos do Diário foram o primeiro vislumbre de uma beleza objectiva e serena. Mas não chegaram. Perderam-se pelo caminho, mudaram de sinal, e os grandes problemas, que continuavam à espera, vão encontrar na Lamentação uma terra carregada de desânimo e amargura.
E não é isso que eu quero, nem o que a vida quer. Basta de agonias e de masturbações! O mundo luta pela sua redenção, que está perto. Cantem os poetas esta nova manhã!

Miguel Torga, “Diário III”, pp. 70-73, 1954, Coimbra.

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The Papermaker from Kings&Kongs on Vimeo.

09/07/2018

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Leiria, 9 de Julho de 1939 Berlengas o dia inteiro. Vide Raul Brandão, página 195 de Os Pescadores. (Para que raio há-de a gente estar para aqui a presumir).

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 99, 1941, Coimbra.

07/07/2018

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Roger Vailland
“Nada é mais oposto ao libertino do que aquilo a que chamamos o femeeiro ou pinga-amor.
Tal como a vítima do amor-paixão, o femeeiro é escravo de uma obsessão. Qualquer que seja a «pessoa do sexo», a perspectiva vagamente entrevista de um consentimento basta para provocar nele esta mobilidade dos humores, esta fermentação glandular, esta subversão orgânica total que metamorfoseia a maior parte das espécies animais em vésperas de acasalamento e que arranca as enguias aos pântanos das estepes para as núpcias fabulosas que decorrerão no mar dos Sargaços.
Mesmo quando julga possuir, o femeeiro é possuído. Isto porque a sua perpétua sofreguidão o inclina para o mais fácil. Os trabalhos de aproximação que impõe o cerco da virtude exasperam a sua impaciẽncia. Como aqueles conquistadores que só atacam as nações minadas por lutas intestinas, ele toma apenas as praças fortes que desejam ser conquistadas.
O libertino, pelo contrário, escolhe. É a ele que convém o epíteto difícil que a linguagem corrente outorga às virtudes obstinadas. Ele é tanto mais difícil quanto o seu gosto está mais completamente educado. É na severidade da sua escolha que reside a virtude que lhe é própria.”

Roger Vailland, “Esboço Para Um Retrato do Verdadeiro Libertino”, pp. 16-17, &etc, Lx, 1976. trad. Vitor Silva Tavares.

Roger Gilbert-Leconte, Roger Vailland, René Daumal et Robert Meyrat

06/07/2018

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Vila Nova, 6 de Julho de 1936 Aqui tenho à mesa de cabeceira o último livro ainda a cheirar à tinta da tipografia. Não há dúvida nenhuma que o concebi, que o realizei, e que, depois disso, com os magros vinténs que vou ganhando por estes montes, consegui pô-lo em letra redonda – a forma material máxima que se pode dar a um escrito. E, contudo, olho esta realidade que eu tirei do nada, que bem ou mal arranquei de mim, com o mesmo desânimo com que olho uma teia de aranha. E não é por saber de antemão que o livro vai ser abocanhado ou ignorado. Não obstante a lei natural que aconselha a que não haja homem sem homem, é preciso que a santa cegueira do artista lhe dê a força bastante para, em última análise, ficar só e confiante. Ora eu tenho, como artista, essa cegueira. O meu desalento vem duma voz negativa que me acompanha desde o berço e que nas piores horas diz isto: Nada, em absoluto, vale nada.

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 24, 1941, Coimbra.

05/07/2018

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Leiria, 5 de Julho de 1940 Estes ingleses, quando fazem uma das deles e depois a contam nos Comuns, parecem o Fernão Mendes Pinto: «E com muitas ave-marias e muito pelouro nos fomos a eles e em menos de um credo os matámos a todos».

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 160, 1941, Coimbra.

02/07/2018

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Figueira da Foz, 2 de Julho de 1944 Tive hoje a tentação de entrar pelo mar dentro, a pé, a ver até onde ia o meu poder. O mito de Moisés – um dos mais belos criados pela humanidade – apertou comigo, e foi por um tris que me não afoguei, trágica e ridiculamente com dois pés de barro. Ou quereria eu, realmente, suicidar-me?

Miguel Torga, “Diário III”, pág. 68, 1954, Coimbra.

Restauro & Encadernação 1...








27/06/2018

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“O estudante é um ser partilhado entre um estatuto presente e um estatuto futuro claramente distintos, cuja fronteira será mecanicamente transposta. A sua consciência esquizofrénica permite-lhe isolar-se numa «sociedade de iniciação», desconhecendo o seu futuro e encantando-se com a unidade mística que lhe oferece um presente ao abrigo da história. (…) Embora a sua tardia crise juvenil o oponha um tanto à família, aceita facilmente ser tratado como criança nas diversas instituições que regem a sua vida quotidiana.”

AAVV, “Da Miséria no Meio Estudantil”, pág. 27, Antígona Editores Refractários, Lisboa, Maio 2018.


“O estudante (…), na sua qualidade de ser ideológico, chega tarde demais a tudo. Todos os valores e ilusões que constituem o orgulho do seu mundo fechado estão já condenados como ilusões insustentáveis, desde há muito ridicularizadas pela história.
Recolhendo um pouco dos sobejos de prestígio da Universidade, o estudante ainda se sente satisfeito por ser estudante. Tarde demais! O especializado ensino mecânico que recebe está tão profundamente degradado (em relação ao antigo nível da cultura geral burguesa1) quanto o seu próprio nível intelectual no momento em que a tal ensino acede, e isto pelo simples facto de a realidade que domina o conjunto destas coisas – o sistema económico- reclamar uma fabricação maciça de estudantes incultos e incapazes de pensar. Que a Universidade se tenha tornado uma organização – institucional – da ignorância, que a própria «alta cultura» se dissolva ao ritmo da produção em série dos professores, que todos estes professores sejam uns cretinos, de tal modo que a maior parte de entre eles provocaria a algazarra de qualquer público de liceu (...)”

AAVV, “Da Miséria no Meio Estudantil”, pp.29-30, Antígona Editores Refractários, Lisboa, Maio 2018.
1Não nos referimos à cultura da Escola Normal Superior nem à dos Sorboniqueiros, mas à dos Enciclopedistas ou de Hegel.