05/07/2019

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Coimbra, 5 de Julho de 1946 Na tipografia, a ver trabalhar lado a lado máquinas impressoras, desde o velho prelo renascentista até à última rotativa americana. O prelo já só tira provas; mas dele em diante o número de folhas vai subindo até ao infinito. Não são, porém, as características de rendimento que, a meu ver, separam significativamente os vários modelos e espelham a constante trajectorial de toda a criação humana. A ideia de Gutenberg não mudou profundamente na sua essência, porque, ao fim e ao cabo, estamos sempre diante de aparelhos de imprimir caracteres em papel, e o maior ou menor número de exemplares conseguidos numa unidade de tempo diz respeito apenas a um aperfeiçoamento de articulações. O que me parece ter realmente interesse na comparação destas realizações é a arquitectura aparente de cada uma. O prelo pode ser comparado a uma capela românica, sem nenhum ornamento e sem qualquer desvio da intenção original. Há uma simplicidade genial na sua estrutura, que lhe dá uma beleza recolhida e perene. Mas já na máquina seguinte esta singeleza se perdeu, e qualquer coisa de flamejante perturba a serena criação da primeira. No último modelo, então, estamos caídos no barroco integral, pasmados e ajoelhados perante um número infinito de rodinhas, de parafusos, de aspiradores, de cilindros e de fios. No colosso que há-de vir, nem vale a pena falar, de tal grandeza será o delírio…
Quanto aos operários que manobram estes engenhos, os que movem o prelo estão numa espécie de fraternidade imediata com ele, que lembra a pureza das relações com Deus na tal sé de arco redondo, onde o corpo se sentia pelo menos tão seguro como a alma. No gótico já pouco desta comunhão se mantém. O espírito sobe, mas a carne desce. E é pouco mais o que acontece na máquina seguinte. Uma vez que foi possível aplicar-lhe uma polia, o impressor começa a pairar naquele movimento como a sombra de um defunto. Na rotativa actual, é de ver, o homem perdeu inteiramente o pé na realidade, e, à semelhança da posição do crente nas igrejas setecentistas, é já só aos ornamentos que os seus olhos ficam atidos. Basta-lhe carregar num botão, para que a sua desumanização comece.
Por ter esta ânsia de chegar ao seu barroco imaturamente, é que a civilização mecânica corre o perigo de se perder ou de perder a humanidade. Matam a cabeça e o corpo equipas de sábios a conceber um Spitfire, e ainda ele está no estaleiro já se precisa dum Meteor! Exactamente o que aconteceu com o cinema, que, de sofreguidão, se devorou. Parte da humanidade não tinha acabado sequer de abrir os olhos para a maravilha (e em Portugal a maior parte das pessoas nem diante dos olhos a tiveram), e já a maravilha estava na sua decadência!
A máquina é dos mais perfeitos milagres do nosso tempo. Se não fosse ela, que oporíamos nós à Grécia, nós que não fomos capazes de uma filosofia nova, de uma arte nova, de uma plenitude espiritual e física que se lhe comparem? Mas, como todos os milagres, tem o seu perigo: o de a gente pôr neles uma fé tão cega que não fique lugar para a presença céptica da razão que os fez.

Miguel Torga, “Diário III”, pp. 178-180, 1954, Coimbra.

24/06/2019

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Coimbra, 24 de Junho de 1947 Acabar com a ideia da morte. Integrarmo-nos na natureza, para que, aos horrores das penas temporais, não juntemos ainda o castigo das eternas. O homem é, ao cabo e ao resto, um animal. Sofra pois como animal, e não como deus.

Miguel Torga, “Diário IV”, pág. 45, 1953, Coimbra.

17/06/2019

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Coimbra, 17 de Junho de 1946 A leitura do último volume do Journal de Gide fez-me pensar mais uma vez no conteúdo do meu Diário. Por que razão profunda eu o escrevo e publico, e que interesse confessional ele tem que possa atrair e lisonjear aquele público que se masturba na ilusão de ser em certas horas o confessor do artista? A ideia de um diário íntimo, de tripas na mão, é uma ideia romântica. Só uma mentalidade Byroniana pode conceber o absurdo de se julgar polo do mundo, fulcro de todos os conflitos que interessam o homem. Daí que nas próprias dores cuide resumir todas as dores possíveis, e descreva uma insónia sua como a catástrofe máxima da noite que decorreu. O masoquismo de Rosseau tem esta base. Ora se, apesar de tudo, um romantismo residual existe necessàriamente em cada artista (e emprego o termo, não como chancela de escola, mas como marca de qualidade), o certo é que ninguém responsável se coloca hoje numa posição tão ridícula.
Neste jornal de Gide, por exemplo, há um doseamento quase terapêutico do íntimo e do público, de maneira que nem o primeiro seja um estendal doméstico, nem o segundo uma lisa mistificação. Passadas pela oficina, as mazelas vestiram-se de uma túnica literária que as transfigura em motivos de arte e curiosidade.
No meu Diário creio que há muita literatura, também. É certo que nem sempre escrevi que sou intransigente, duro, obsecado, capaz de uma lógica que toca a desumanidade. Sei que nem sempre admiti que estava irritado com este camarada e com aquele amigo, e que há em mim uma manha de cavador que se sobrepõe ao desbragamento da confissão. Preferi às vezes pôr um poema onde devia estar um insulto, e em certas ocasiões acreditei mais no meu instinto sem provas do que na minha razão com argumentos. Enchi com frequência uma página de lamúrias, quando na verdade estava cheio de força e alegria.
Mas quem é que não conhece estas minhas misérias à saciedade, e sabe tão-pouco de artista que ignora a falta de sintonização do estado receptivo com o estado de criação? De resto, um diário não é necessàriamente um perpétuo mea culpa. Pode ser um simples memento, um exercício espiritual, um caderno de apontamentos, tudo que se queira. Que nele haja sempre um derrame de pecados e maceração, parece-me absurdo. Pela minha parte, não sou delator, nem meu, nem dos outros. Não tenho nada a esconder do leitor, a quem nunca vendo gato por lebre, mas quero ter mão em mim, evitando-lhe o espectáculo de uma exibição confrangedora. Há recantos do ser e da vida que precisam de silêncio. No diário de Amiel foi preciso mondar muito, e mesmo assim o que escreveu ficará sempre como um documento clínico, história patológica de um tímido, e não obra literária, aspiração de todo o criador.
Da minha pena de artista quero que saia apenas aquela intimidade que me parece ser suficiente para matar a justa curiosidade do leitor devotado, e me deixe ao abrigo de todas as bisbilhotices doentias.

Miguel Torga, “Diário III”, pp. 172-174, 1954, Coimbra.

15/06/2019

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Coimbra, 15 de Junho de 1945 O primeiro pedreiro que quebrou o arco, esse é que eu queria conhecer…
A conversa girava à volta do problema da criação, no seu aspecto individual e colectivo.
– Então mas a catedral não é precisamente uma prova irrefutável da arte por equipas? E Shakespeare e Camões e Goethe não se fartaram de construir sobre materiais carreados por outros?
– Embora. Entro na Sé Velha ou na Batalha, e digo: Aqui, o génio de tudo isto está na padieira da porta. Quem arredondou ou ogivou, esse é que tem a glória. Quanto ao Camões e aos outros, por cada cena que já estava imaginada antes deles, menos um valor. E tanto se me dá que me chamem individualista, como não. Enquanto não aparecer uma escola de ginástica que fabrique um Nijinski, em arte sou pelo dom e pela predestinação.

Miguel Torga, “Diário III”, pág. 101, 1954, Coimbra.

19/05/2019

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Coimbra, 19 de Maio de 1946 É quase inacreditável que eu tenha nascido aqui! – dizia-me
há tempos um artista amigo, diante dos casebres serranos da sua terra. E acrescentava: – Como isto me é estranho, hostil e incompatível com o hotel em que vivo!
E eu lembro-me de vez em quando daquelas palavras, mas para as aplicar precisamente ao contrário. Sentado a certas mesas, no meio de certa gente, e enrodilhado em certas situações, digo eu:
– É quase inacreditável que eu esteja aqui! Como me é estranho, hostil e oposto à choupana onde queria e devia viiver!

Miguel Torga, “Diário III”, pág. 168, 1954, Coimbra.

18/05/2019

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Coimbra, 18 de Maio de 1947 A maior desgraça que pode acontecer a um artista é começar pela literatura, em vez de começar pela vida. Cora-se de vergonha, depois, diante das ingenuidades impressas, que são cueiros sujos e pretendem ser livros. Só a experiência, a dor e o trabalho trazem a dignidade que uma obra literária exige. Mesmo que não se tenha génio, pode-se, então, ter compostura. E seja qual for a duração do que se escreve, uma coisa ao menos os vindouros poderão respeitar: a nobreza do que vão ler. Mas poucos sabem esperar pela hora da maturação. E antes desse livro curado pelo fumo da vida, vêem-se quase sempre meia dúzia de outros, infantis, imbecis, esquemáticos como o bê-á-bá. Penitet me – creio que é a fórmula do arrependimento.

Miguel Torga, “Diário IV”, pág. 41, 1953, Coimbra.

14/05/2019

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É bom ver "resgatado" de um certo esquecimento um dos elementos da tertúlia, ou "tortúria", do Café Gelo. Foi escritor e violinista em "orquestras" de navios cruzeiros. Ainda por cima com a fotografia dele (o que é raro!). A foto é do Eduardo Gageiro o livro é da editora Ponto de Fuga.

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12/05/2019

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“Toda a nossa actividade literária é de uma mesquinhez atroz. Nós não temos o direito de escrever. Falo de nós todos. Postos de parte os Tónios e as Marias dos imbecis, que nos fica? O romance de gabinete, essa porcaria «inteligente», essa masturbaçãozinha de impotentes. Ou então, o romancezinho «psicológico», em que se trata o homem com desprezo, se vem contar, com petulância, como é feito por dentro e dá entre nós um génio em cada cinco anos, esse romancezinho feminino que Proust, como «mulher» que era, põs em moda. Sim, que só mesmo uma mulher podia inventar essa coscuvilhice íntima, essas histórias, e històriazinhas cheias de pequenininhas observações, esses períodos longos e complicados como folhos e rendas de uma boneca. Contra mim falo, meu amigo, ah, contra mim falo. Mas não há outra saída. E todavia a hora é da ardência, do sangue!”

Vergílio Ferreira, “Cântigo Final”, pág. 22, Portugália Editora, Lx, s/d. (escrito em Évora em 1956).

Da série as “traições” da Musa…


Coimbra, 12 de Maio de 1947

POEMA

Foi um poema casto que eu pedi
à minha Musa.
Um poema com bibes e meninas,
e ternura no meio.
Mas quando a imagem veio,
e eu, deslumbrado, a olhava,
a menina mais velha namorava,
e as outras, ao lado, aprendiam
a instintiva lição…
Minha Musa, o poema?
Este é o mesmo poema,
numa outra versão.

Miguel Torga, “Diário IV”, pág. 36, 1953, Coimbra.

05/05/2019

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Coimbra, 5 de Maio de 1947 Esta rapariguinha vem transtornada de Fátima. Tudo a deslumbrou. A multidão, o espectáculo e o lugar. Sobretudo o lugar. Sentiu verdadeiramente que havia nele qualquer coisa de sobrenatural, de divino.
E eu, então, falei-lhe de Roma. Contei-lhe que tanta emoção se sentia nas Catacumbas, como no Coliseu, como debaixo de um arco de triunfo. E visse o despropósito: nas Catacumbas, tinham vivido cristãos; no Coliseu tinham lutado gladiadores com feras; e sob o arco do triunfo tinham passado tiranos.
– Concebo a sua fé, e respeito-a, – acrescentei. – Mas para que um sítio qualquer fique carregado de uma electricidade emotiva, não é preciso que Deus ou a sua Mãe venham cá a baixo. O homem é muito capaz de uma façanha destas. Basta que um pastor ou um bispo se resolvam a criar um mito. Então, as pedras transformam-se em altares, e uma mangedoira no berço mágico de um redentor.

Miguel Torga, “Diário IV”, pág. 35, 1953, Coimbra.

02/05/2019

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“Mas com o desenvolvimento da sociedade de consumo e dos meios de comunicação a vida das pessoas na Europa ia ficando cada vez mais igual em todo o lado e alguns sociólogos e historiadores achavam que reflectir em conceitos nacionais era algo que estava ultrapassado e diziam que a característica mais saliente da sociedade ocidental desenvovida era o cosmopolitismo e que no fundo não existia nada como Alemães ou Romenos ou Suecos e que tudo isso não passava de autoprojecções sobre estereótipos e preconceitos sociais. Mas outros sociólogos não estavam pelos ajustes e diziam que com o desenvolvimento da sociedade de consumo e dos meios de comunicação as pessoas foram perdendo a maior parte dos pontos de orientação e que de um modo paradoxal a comunidade nacional se tinha tornado mais importante que nunca. E que os estereótipos eram imprescindíveis para a preservação da memória colectiva e histórica sem a qual a sociedade ocidental perderia a sua unidade porque a unidade não podia ser heterogénea. E que a memória colectiva era uma interacção de compromisso entre o passado e o futuro e que os estereótipos e preconceitos tinham a vantagem de envelhecer mais devagar que a história e as novidades tecnológicas etc. e que representavam a última área e ao mesmo tempo a mais activa em que se preservava a identidade social. Os etnólogos e os antropólogos diziam que a historicidade podia assumir duas formas e que uma era própria das sociedades que queriam manter-se na sua existẽncia simbólica e a outra das sociedades que vão buscar à história a acção e a energia. E que tradicionalmente a sociedade ocidental fizera parte do segundo grupo mas que no momento actual talvez estivesse a meio de uma transição para o primeiro. E os filósofos diziam que a aceleração da história que ocorreu no século XX conduzia à indiferença relativamente ao tempo e ao desaparecimento da historicidade na sua forma tradicional e se devesse aparecer uma nova forma de historicidade era preciso refrear a história e alguns deles exigiam que à Declaração Universal dos Direitos Humanos fosse acrescentado o direito do Homem ao tempo.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 138-9 , Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

16/04/2019

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Uma das relações mais famosas entre escritores e gatos, provavelmente a mais famosa, é a de Samuel Johnson e o seu gato Hodge... No século XVIII... Há uma estátua em Londres (Gough Square), onde não faltam sequer as ostras sobre a capa do livro... Pois, segundo James Boswell's Life Of Dr. Samuel Johnson, o gato Hodge de Samuel Johnson era mimado e alimentado a ostras...














14/04/2019

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Coimbra, 14 de Abril de 1939 – (…) Crio em volta de mim um tal gelo, um vazio de tal modo hostil, que só quem é do meu meridiano me estende a mão. Os outros, rosnam, rosnam, mas vão passando de largo.
Não presta, nunca deu nada esta Coimbra, mas só aqui pude até hoje ser poeta à minha rica vontade.

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 95, 1941, Coimbra.