26/03/2019

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“E nos países ocupados pelos Alemães organizaram-se após a guerra grandes operações de caça aos colaboracionistas e traidores da pátria e outros que tais e às mulheres que tinham andado a dormir com alemães cortavam o cabelo e um prisioneiro de um campo de concentração voltou para casa de cabeça rapada e foi a um bailarico com uma amiga da sua irmã a que os cidadãos locais tinham cortado o cabelo porque tinha andado enrolada com os ocupantes alemães e dançaram junto e encostaram as cabeças uma à outra e as outras pessoas acharam a sua atitude pouco apropriada e quase repugnante.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 137-8 , Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

21/03/2019

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O tiroliroliro

A Mãe voltou à carga com o tiroliroliro. Quando se trata do complexo de inferioridade lusitano, a Senhora não perdoa. «O menino trauteie lá a cantiguinha tonta», pediu, sorridente. «Qual cantiguinha tonta?» Fingi-me de parvo para fugir com o rabo à seringa. Os Andresen-Hastings tinham trazido de Cascais dois casais portugueses que eu não conhecia, estávamos todos a louvar a beleza nautural do Gerês, o fim de tarde sereno não convidava a polémica. A Mãe insistiu.
«A cantiguinha tonta. Está farto de saber. Lá em cima… Como é que é o resto?»
«Está o tiroliroliro, Freddy», acudiu Andresen-Hastings que não entendeu a manobra de diversão. «Desta vez lembrei-me melhor de uma coisa do que tu», acrescentou divertido. Tive de fazer a vontade à Senhora e cantarolei, no meu melhor português

Lá em cima está o tiroliroliro
Cá em baixo está o tiroliroló
Juntaram-se os dois à esquina…

«Chega», interrompeu a Mãe. «Vocês não acham extraordinário?», perguntou virada para as visitas.
Ficaram todas a olhar para ela, sem perceber. Eu sabia onde ela queria chegar, mas achei preferível não interferir. Seja o que Deus quiser,1 pensei com os meus botões.
«Cante lá outra vez. Só os dois primeiros versos», comandou a Senhora. Obedeci.
«Então?», perguntou ela. Senti nos olhares embaraçados perpassar a suspeita de que a Mãe estivesse gagá. «Já imaginaram como seria esta cantiga se tivesse sido inventada por um inglês?», perguntou ela. «Eu digo-vos», continuou sem esperar resposta. Seria assim:

Up Here is the teeroleeroleero
Down there is the teeroleerolaw

«E em espanhol?», acrescentou para esfregar vinagre nas feridas. «Também vos digo:

Aqui arriba está el tiroliroliro
Aliá abajo está el tiroliroló

Continuam a não achar nada de esquisito? Então eu explico-vos. O inglês e o espanhol olham o mundo de cima para baixo; o português olha o mundo de baixo para cima. Não é realmente extraordinário?»
Eu e os Andresen-Hastings (ela é francesa) ficámos embaraçadíssimos. Os quatro portugueses não. Riram-se muito, cumprimentaram a Senhora pela sua perspicácia e começaram a enumerar coisas de marca estrangeira – desde aparelhos electrodomésticos a bolachas digestivas – que tinham deixado de comprar assim que elas haviam passado a ser feitas cá, sob licença. «A qualidade piora logo imenso», disse uma. «A qualidade e a produtividade são os nossos calcanhares de Aquiles», sentenciou outro, rolando entre os dedos o copo de Black Label.
Confesso que fiquei espantado por se fabricar tanta coisa em Portugal. A fiel Margarida tinha-me convencido de agora vinha quase tudo de Espanha.”

A. B. Kotter, “Bilhete de Colares”, Visão, 22 Setembro 1994, p. 97.

1«Close your eyes and think of England» no original (N. do T.).



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12/03/2019

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“Alguns filósofos diziam que a ordem do mundo corresponde aos mecanismos do discurso que tem os seus símbolos mutáveis mas simultaneamente dados e que a bem dizer o ordenamento dos símbolos não dá grande sentido e que tudo não passa de um jogo e de um acaso e de anarquia e processo e desconstrução e intertextualidade etc. mas que o símbolo por si só é no fundo um portador de sentido embora não saibamos bem qual. Mas outros filósofos diziam ainda que os símbolos dos quais o discurso e o mundo são construídos carecem de sentido e que com a ausência de significado desaparece o sujeito e a própria realidade e que a história não passa de um movimento ininterrupto e informe que nada exprime e que tudo é ficção e simulação. E que a decadência do humanismo tinha entrado num beco sem saída precisamente porque tinha conseguido o que tivera a conseguir e tinha imposto os valores que lhes eram próprios a liberdade e o individualismo e o pluralismo e a transparência etc. E que os humanistas estavam a colher os frutos da sua própria sementeira um mundo individualista e interactivo e positivo e translúcido e operacional que se extingue com a sua própria simulação e cuja resolução final é a troca da realidade pela hiper-realidade. E alguns matemáticos diziam que a realidade era uma ilusão e que na realidade tudo não passava de uma construção matemática no cérebro humano que interpreta as frequências vindas de uma outra dimensão qualquer e que esta transcende o espaço e o tempo e que o cérebro é um holograma que reflecte o Universo que por seu lado também é um holograma. E em 1993 uma velha senhora que outrora tinha sido nazi convicta legou o seu cérebro a um laboratório em Copenhaga para que as imagens nele armazenadas fossem projectadas aos seus netos e netas porque nunca tinha sido capaz de lhes relatar a sua vida.

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 130-1 , Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

01/03/2019

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Coimbra, 1 de Março de 1933 Continuam as matanças de gatos, à mocada, cá na república. Uma selvajaria. Só quem assiste a isto pode avaliar o que é um homem primitivo. Não há Universidade que nos tire da idade da pedra lascada

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 10, 1941, Coimbra.

28/02/2019

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“O doido mais perigoso que encontrei era um tipo que se fazia passar pelo volume XVI do «Dicionário Otto». Implorava aos amigos que o abrissem e procurassem o que dizia o Dicionário na palavra «operária de cartonagens»; se não lhe fizessem esse favor ficava perdido. Só a camisa de forças era capaz de lhe dar alguma alegria. Nessa altura sentia-se feliz e dizia que já não era cedo para entrar no prelo, e exigia uma encadernação moderna.”

Jaroslav Hasek, “O Valente Soldado Chvéĭk”, pág. 42, Portugália Editora, Lisboa, s/d. Trad. Alexandre Cabral. Capa de Paulo Guilherme.