14/01/2019

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Paris, 14 de Janeiro de 1938 Ponho-me a pensar nos cinco milhões de homens que formigam nestas ruas. A pensar que, embora todas estas avenida, estas praças, estes monumentos sejam criações suas, o homem perdeu aqui, mais do que noutra parte, as rédeas da sua personalidade, consentindo que a criatura domine o seu criador. Não posso dizer ao certo por quê, mas a impressãao que se tira desta enorme multidão é de que não se trata de gente mas duma grande levada que as próprias ruas canalizam. Tem-se a impressão que a cidade actuou nela como um forte raio X, reduzindo-a a uma transparência humana que toca pelo irreal.

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 61, 1941, Coimbra.

10/01/2019

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Actividade Esquisita
Não conheço muitos editores, quero dizer, tenho alguns amigos que são editores. Não sei, em boa verdade, como funcionará a maioria das outras casas editoras. Falo por mim. Com mais de uma década de actividade, ganha-se uma particular visão das palavras escritas que nos rodeiam. Do que aspira ao livro. O livro como ponto de chegada e, depois, o texto multiplicado como os pães do milagre. A metáfora podia ser a da ampulheta em que o produto sólido se pulveriza para descer à base. E a ampulheta é o editor, virando e revirando conforme cada edição. Mas, se o mecanismo é sempre parecido, a substância jamais se repete.
Primeiro capítulo. É verdade que todo o editor aspira a publicar os livros dos autores da sua preferência. Quer tê-los consigo, constituir a sua família. Mas nem sempre é assim. Muitas vezes são os livros que vêm ter com o editor. Alguns procuram-no há séculos, à espera da janela que dá para a rua. Fernando Rojas, Ramon Llull, Walt Whitman ou Novalis quiseram e tiveram em mim essa oportunidade. Com mais ou menos coerência, o editor vai organizando o seu catálogo. No final, ele pode ser visto como um grande cadáver esquisito surrealista. Com inesperadas intromissões, acrescentos, fugas para outras ou novas colecções, os acrescentamentos e as obliterações dos que desaparecem por «esgotamento».
Mas, no quotidiano, o editor é permanentemente bombardeado por um número impressionante de aspirantes a novos escritores. Poucos imaginarão quanto se escreve nos silêncios deste Portugal. Há uma imensidão de pessoas a mexer nas letras e nos sentimentos. A arquitectar poemas e histórias. Depois, enviam as suas obras para as editoras. Ou aparecem pessoalmente.
Guardo algumas histórias curiosas destes encontros. Desde o senhor idoso que traz os seus originais num saco de pó de talco, que o nervosismo e o sopro transformam num indescritível nevoeiro que cresce por todo o escritório, até damas envoltas em perfumes tão caros quanto insuportáveis. Uma outra senhora que envia vinte contos «para compensar o trabalho de ler o seu original». Outro que está no hospital, quase a entrar para a sala de operações, e quer saber com urgência se os seus textos têm, ou não qualidade. Há aquele que chega a trazer 4000 páginas manuscritas para publicação, e o outro que tem a certeza de que haverá, pelo menos, 100 000 pessoas determinadas e ávidas do seu texto, que seguramente «vai vender… que nem pãezinhos». Depois, há os que oferecem «todo o dinheiro que seja necessário» para ver o seu livro lá fora, e também os mais prepotentes, que julgam fazer-nos o maior favor do mundo possibilitando-nos a edição do seu livro que os acompanha há décadas e, quanto a eles, «uma verdadeira obra-prima».
No segundo capítulo aparecem escritores que até já publicaram noutros lados e acumulam uma desconfiança generalizada de que os editores são oportunistas que vivem à custa dos autores. Que falsificam as tiragens. Que é impossível que o seu livro não tenha vendido dezenas de milhar de exemplares, pois pelo menos, todos os seus amigos o compraram. Desconfiam da eficácia da promoção que lhes é feita. Convencem-se de que é o próprio editor a boicotá-los, porque o seu livro não se vê nas livrarias. O pior é que nem disfarçam o ressentimento íntimo de que o editor os explora; «fartando-se de ganhar dinheiro à custa do seu talento».
Neste exemplo caberia Miguel Torga que, até ao fim da vida, persistiu em ser senhor pleno da sua obra, evitando dar lucro editorial a terceiros. Disse-me mais do que uma vez: «Os editores, não me largam. Eu bem sei o que eles querem. Querem ganhar dinheiro à minha custa».
Finalmente, «os mistérios gloriosos». O maior prazer do editor. Senti-o mais de uma vez. A primeira vez foi no metro, nas mãos de um desconhecido em leitura atenta. Um livro que eu sabia ser bom e transportava indecifravelmente uma secreta história editorial que jamais aquele acidental leitor conheceria. Depois, o gozo de cheirar livros frescos de tinta, novos, acabados de chegar da tipografia. Vê-los nas estantes de gente que apreciamos. E surpreende-los expostos, inesperadamente, em montras de países estrangeiros. E receber uma ou outra carta a testemunhar quanto um determinado livro foi importante na sua vida. Ele há tanto mistério a envolver cada livro! Mas isso é já substância para outras histórias.”
Manuel Hermínio Monteiro. In “Ler – Livros & Leitores”, n.º 35, Verão de 1996.

06/01/2019

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“Nasci em Fresno, na Califórnia, em 1908, e frequentei as escolas oficiais da cidade até aos dezasseis anos, altura em que passei a trabalhar nas vinhas e pomares da região. Sempre contei entre os meus colegas de turma rapazes e raparigas portugueses – açorianos, como vim mais tarde a saber, pois parece que poucos portugueses da Metrópole emigravam para a América. Ainda hoje estou para saber porquê. Frank Silveira foi um grande amigo meu e excelente jogador de baseball. Elvira Martins era uma morena muito bonita, cheia de vida e com uma linda voz – se bem que na Emerson School apenas cantasse canções populares americanas e não o fado, que tanto aprecio e ouvi pela primeira vez em Lisboa, em 1949, na Adega Machado. Há português no grande escritor americano John dos Passos, e haverá por certo vários outros notáveis escritores e artistas portugueses na América que não conheço. Foi longa a minha aprendizagem de escritor – e o certo é que durante anos receei que se prolongasse para sempre –: dos meus treze anos, quando comprei uma máquina de escrever, expressamente decidido a tornar-me escritor de profissão, até aos vinte e seis, quando publiquei o meu primeiro livro, The Daring Young Man on the Flying Trapeze and Other Short Stories. Agora, aos sessenta e três anos, sinto-me feliz por dizer que continuo escritor de profissão, que acredito no acto de escrever (mais profundamente do que nunca, colocando essa profissão acima de todas as outras – onde mais poderia acaso coloca-la?) e que continuo a ganhar a minha vida com a pena, se me é permitido empregar tão velha e pretensiosa expressão. Escrevi nos géneros mais diversos – histórias, ensaios, novelas, romances, entremezes, peças de teatro, poemas e canções (música e letra) –, mas creio que sou sobretudo conhecido pelas minhas primeiras histórias e pelas peças de teatro, especialmente The Time of Your Life. Não fiz quanto quisera com o que escrevi (esperava, por exemplo, mudar para melhor a própria raça humana, e nem eu nem nenhum outro escritor teve qualquer influência real e aparente na raça humana em geral), mas sinto-me bastante satisfeito por ter sido um trabalhador honesto e dedicado e por ter escrito até à data 44 livros. E se talvez apenas quatro se encontram realmente vivos na hora actual, já não é nada mau, nem me lamento; antes dou graças a Deus. My Name is Aram é um desses quatro livros.
William Saroyan”
William Saroyan, “O Meu Nome é Aram” Editorial Verbo, col.«livros RTP / Biblioteca Básica Verbo /89», Lisboa, 1972.

03/01/2019

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Em suma, na imensa maioria da sociedade portuguesa não se formou um carácter cívico em harmonia com a vida moderna e fez-se todo o possível para destruir o carácter cívico antigo. Desta deficiência educativa, o sentimento de vida nacional não evoluiu normalmente e resulta um sentimento, desvirtuado em parte, em parte incompleto.”
Manuel Laranjeira, “Pessimismo Nacional”, pp.28-9, Contraponto, 2.ªed., Lisboa, 1985.

Porque afinal todos os actos do povo português não são actos de quem agoniza, são actos de quem não sabe, não são escabujos de povo exausto, são actos todos derivados da sua profunda ignorância. Pois que queriam que fizesse um povo que nem sequer sabe ler? Queriam talvez que esse povo fosse resolver a questão social? Queriam talvez que ele se interessasse pelos vastos problemas da filosofia social e se apaixonasse pelos transcendentes ideais da justiça, tal como a concebe e teoriza o homem moderno?”
Manuel Laranjeira, “Pessimismo Nacional”, pág. 37, Contraponto, 2.ªed., Lisboa, 1985.

Não; não é necessário recorrer à hipótese inconsciente da degenerescência colectiva, nem a factores antropológicos, mais duvidosos ainda, para explicar o pessimismo nacional. Este nosso doloroso mal-estar ainda não é o paroxismo duma raça decadente, ainda não é o crepúsculo dum Povo. O nosso pessimismo que dizer apenas isto: que em Portugal existe um povo, em que há, devoradas por uma polilha parasitária e dirigente, uma maioria que sofre porque a não educam e um minoria que sofre porque a maioria não é educada.”
Manuel Laranjeira, “Pessimismo Nacional”, pp. 40-1, Contraponto, 2.ªed., Lisboa, 1985.

02/01/2019

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Veneza, 2 de Janeiro de 1938 Ora até que enfim, Veneza! Mas esta velha namorada está gasta. Não há corpo de mulher que resista às noitadas de vinte gerações.

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 55, 1941, Coimbra.

01/01/2019

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“E em 1999 os amish venderam doze vezes mais moinhos (de café) e velas e batedores de claras etc. do que era costume porque as pessoas temiam que o BUG DO MILÉNIO paralisasse os electrodomésticos e o fornecimento de energia eléctrica. Os sociólogos diziam que o medo de avaria dos sistemas electrónicos que pusesse fora de serviço as televisões e os micro-ondas e as caixas de multibanco era fruto de um milenarismo subconsciente e recalcado e algumas pessoas presumiam que iria tratar-se de um momento fatídico na história da civilização ocidental que levaria ao caos e a convulsões sociais e outras coisas que tais e haveria de permitir à sociedade ocidental libertar-se da ditadura tecnológica e entrar numa nova era que seria harmónica e espiritual e mística. E nalguns países os governos imprimiram reservas de dinheiro e no Canadá o governo organizou exercícios de evacuação de populações e em Inglaterra e na Dinamarca os cidadãos armazenaram reservas de açúcar e farinha na banheira e na Finlândia os farmacêuticos esgotaram os stocks de iodo cuja utilização era recomendada no caso de uma catástrofe nuclear e os Finlandeses temeram que o BUG DO MILÉNIO pusesse fora de serviço os sistemas de segurança nas centrais nucleares russas. Os sociólogos diziam que o BUG DO MILÉNIO fazia parte da lógica do imaginário social da era moderna e que no século XX o mal tinha assumido a forma de algo infinitesimal e que as pessoas já não tinham medo das coisas grandes e complicadas como a locomotiva etc. mas dos átomos e vírus e genes e priões. E os psicanalistas diziam que o BUG DO MILÉNIO no fundo desempenhava na vida da sociedade o papel do parricídio que haveria de permitir o prazer e a luxúria à nova geração tecnológica.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 114-15 , Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

31/12/2018

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Coimbra, 1 de Janeiro de 1943 – Outro ano. Toda a gente excitada, e, de conhecido para conhecido, esta senha:
– Boas entradas!
– Igualmente! – responde o contemplado.
E lá segue cada qual o seu caminho, com o supersticioso pé direito à frente, não vá o demo tecê-las.
A estafada e monocórdica ária de sempre, que apenas moi os ouvidos de que é por condenação um rói-migalhas, e passa o tempo a reparar nas inocências do homem, e a registá-las.
Ano Novo! Os torcegões que a realidade sofre nas nossas mãos, a ver se conseguimos disfarçar-lhe a crueza! A imaginação colectiva aos sobressaltos, na grata ilusão (na triste ilusão) de que a coisa vai começar agora, – agora que o ano é novo, a idade é nova. No fundo, todo o passado é um erro para cada um de nós. E como ninguém é capaz de aceitar corajosamente os erros e de fazer deles um roteiro de sinceridade, contorna-se o problema desta ingénua maneira: recomeçar. Sem nos querermos convencer de que nada pode deixar de ser como é, porque continuamos os mesmos e, só errado, o caminho é bonito e nos apetece. Recomeçar uma, duas, cinquenta vezes, e chegar à meta com este lamento hipócrita na boca: – Ah, se eu voltasse aos vinte anos e soubesse o que hoje sei!
Que me lembre, apenas Raúl Brandão teve a grandeza e a lealdade de escrever que repetiria o calvário da vida sem lhe alterar o itinerário. Isto sim, isto é de quem entendeu a fundo que a existência não deve ter soluções de continuidade, nem ser prevista. Deus me livre de saber que por certo beijo que roubei em rapaz a uma cachopa da minha terra receberia a bofetada que recebi! A coisa foi maravilhosa por ter sido um jogo, um atrevimento, um risco, e motivar aquela réplica inesperada e ardente!
– «Se eu soubesse…»
Mas como felizmente ninguém pode voltar atrás, nem saber antes de saber, vai de recomeçar vida nova cada novo ano. Cada novo ano que passa a velho logo que se fazem 365 tolices…”


Miguel Torga, “Diário II” 3ª ed. Revista, pp.102-104, Coimbra Editora, 1960.

29/12/2018

Nada de badana...



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"AMAZING NAILS
[MATRIMÓNIO]
As Amazing Nails são entidades histéricas que variam entre o disforme e as putas do Vaudeville. Vêm da Reboleira e da Damaia montadas em maridos e namorados semiusados com muito Tunning à mistura. As Amazing Nails discutem muito sobre a ética e a moral das relações mundanas. São o verdadeiro exemplo da rivalidade feminina. Já foderam todos os gajos do lado esquerdo das suas ruas e incluíram também o lado direito porque o gel quando nasce é para todos. Dominam os cem metros quadrados à frente do estabelecimento porque lá dentro não há ninguém. Primeiro afixaram um horário, depois afixaram um cartaz e agora só por marcações. O verde e o rosa dominam o Branding. Parece um Franchise de pastilhas elásticas, rebuçados e gomas. Recebem as visitas da Máfia Local, dos filhos, sobrinhos e afilhados. Dão-se a conhecer e conhecem os segredos de meio mundo. Particularmente alimentam-se de pastéis de nata, de abatanados e dos mexericos da Borderline drogada que vai meter achas na fogueira. De vez em quando há um Gelinho para fazer que implica um cigarro depois e um gancho na cabeça.
As Amazing Nails são o centro das atenções mas não estão no Spot. Ainda distam uns cinquenta metros da Rua. Da rua à praceta vai um mundo de distância, uma distância entre Cabo Verde e as ilhas Maurícias. Lá ao fundo da rua ouve-se o crioulo, aqui na praceta diz-se mal de alguma coisa. Aqueles cem metros quadrados à frente do estabelecimento, mijados de cão e com ervas a crescer por entre as pedras da calçada, parecem uma zona desmilitarizada. As ervas verdes condizem com o reclame, o mijo do cão não dá com nada em especial.
As Amazing Nails são tão más que chegam a ser boas. Eu bem ponho os óculos escuros e enfio os cornos no chão quando passo à frente delas mas no fundo, se a minha mãe deixasse, desposaria qualquer delas. Não que elas me quisessem. Masco pouca pastilha elástica mas sempre tenho uma motoreta para levá-las a um Dolce Vita qualquer. Não sei se tenho unhas para tocar estas harpistas mas o artista que há em mim deseja-lhes toda a sorte do mundo."
Tó Carlos, “Variações Bíblicas”, pp.43-5, Momo, Lisboa, 2018

28/12/2018

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“(…) os Americanos inventaram a Internet porque temiam que os Russos nalguma próxima guerra mundial pudessem reter quaisquer informações vitais para a liberdade e a democracia. E trezentos e setenta milhões de pessoas tinham acesso à Internet e podiam comunicar os seus pensamentos e desejos em liberdade e sem inibições. E algumas agências de viagens propunham através da Internet e por preços moderados excursões virtuais a países longínquos de acordo com os desejos pessoais de cada hipercidadão. E as mulheres podiam encomendar pela Internet o esperma de um dador anónimo e alguns laboratórios propunham o esperma de homens de qualidade superior como astrofísicos e engenheiros e jogadores de basquetebol etc. As mulheres podiam escolher o esperma de acordo com cento e cinquenta critérios diferentes nacionalidade de origem raça religião habilitações académicas preferências e passatempos pessoais profissão altura peso grupo sanguíneo cor do cabelo pilosidade circunferência dos testículos etc. e podiam por exemplo comprar esperma de um biólogo americano de trinta e seis anos e origem afegã de cabelo negro e olhos azuis ou o esperma de um engenheiro de aviação de quarenta e dois anos do Kansas de religião baptista e de origem holandeso-ucraniana ou o esperma de um xadrezista talentoso de dezassete anos e origem chinesa com testículos pequenos. Uma dose de esperma custava em média 1050 dólares americanos já com portes incluídos e as mulheres também podiam encomendar com ele uma gravação com a voz do dador do esperma. Na gravação dizia ORA VIVA! HOJE É UM DIA DEVERAS BELO COMO SE FOSSE FEITO PARA DAR UMAS PASSEATAS PELA NATUREZA. ESPERO QUE FIQUE CONTENTE COMIGO. E uma mulher que mandou vir a gravação quis saber se não poderia obter um desconto de dez por cento sobre o esperma porque o dador do esperma rolava os erres.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 108-9 , Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

27/12/2018

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Recorda-se da história atribuída ao Dr. Abernethy (…) certa vez um ricaço avarento quis apanhar de borla uma consulta ao célebre médico. Arranjou conversa com êle e impingiu-lhe o relato da sua doença, como se tratasse duma pessoa imaginária. Suponha V. Ex.ª, disse o avaro, que os sintomas são estes; e agora, doutor, o que lhe aconselhava? Apenas uma coisa, volveu Abernethy: que fôsse consultar um médico.”
Edgar Allan Poe, “A Carta Roubada” op. cit in “Antologia dos Mestres do Conto Policial – série primeira”, pág. 27, Portugália Editora, Lisboa, s/d. Org. João Gaspar Simões.


26/12/2018

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 “No ano de 2047 o amor-paixão parecerá, segundo toda a verosimilidade, tão antiquado como o cristianismo. «Amo-te» deixará de ter esse odor confessional, esse bafio de bruxaria medíocre.”
Roger Vailland, “A Roda da Fortuna”, Pág. 173, Editora Ulisseia, Lisboa, 1961.

25/12/2018

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Eu amo os mortos. Amo-os dum modo especial. Mas não tanto como os não nascidos.”
William Soroyan, “Um Dia no Crepúsculo do Mundo”, pág.212, Editora Ulisseia, Lisboa, 1973. Trad. Marina Aparício e Fernando Lopes.

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Marselha, 25 de Dezembro de 1937 Viajar não é bem como diz a Agência Cook. Aquela honrada companhia de mostrar o mundo é, sem saber, uma espécie de agẽncia funerária de uma prematura morte com guia e tudo. Viajar, num sentido profundo, é morrer. É deixar de ser manjerico à janela do seu quarto e desfazer-se em espanto, em desilusão, em saudade, em cansaço, em movimento, pelo mundo além.
Nesta hora, aqui deitado na cama dum Hotel Continental qualquer, a ouvir os passos de um milhão de pessoas na Canebière, que sou eu? Uma pura ressonãncia morta de uma vida longínqua.
Quando amanhã me erguer, ressuscitar, e for outra vez manjerico na minha terra, deste dia, desta hora, desta grande cidade, do que fui nela, que terei eu na mão? Nada, porque não foi nada aquilo que o Lázaro trouxe da sepultura.

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 50, 1941, Coimbra.

21/12/2018

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“E os comunistas ciaram uma língua especial a que as pessoas chamaram de pau e que se devia falar na nova sociedade até que se começasse a comunicar pela força da ideia revolucionária. Os linguistas diziam que a língua de pau servia o fim de curto-circuitar a comunicação na esfera pública e fora dela e assim apagar da consciência humana as estruturas linguísticas cognitivas. A língua de pau caracterizava-se por nela as palavras entrarem num complicado sistema de conotações que remetiam para os mecanismos de poder da sociedade. Desta forma as palavras iam perdendo o seu sentido original que era substituído por um significado que era tanto mais lato quanto mais firmemente o orador estava ancorado na hierarquia política. E quando um comunista encontrava outro comunista dizia por exemplo COMO É QUE AVANÇAM AS COLHEITAS NO VOSSO CONSELHO? E o outro dizia CONVOCÁMOS OS AGRICULTORES PARA PARTICIPAREM NO CUMPRIMENTO DO PLANO DESTE ANO ou OCUPÁMO-NOS ENERGETICAMENTE DAS TAREFAS FINAIS ou OS CAMARADAS APRESENTARAM PROPOSTAS DE MELHORAMENTO. Inicialmente essa língua foi utilizada sobretudo para falar do trabalho e das decisões políticas do Estado mas com o passar do tempo as pessoas aprenderam a falar nela de tudo do tempo das férias de programas televisivos ou do facto de a mulher se ter posto a beber e não querer ir às reuniões da associação de pais.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 106-7, Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

19/12/2018

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Porto, 19 de Dezembro de 1943 Cá ando a arrastar os sapatos nestas calçadas graníticas. Um bonzo a cada esquina, mau gosto por todo o lado, mas é o Porto, a nossa cidade mãe, com cornos em lira e jugos lavrados de fantasia.

Miguel Torga, “Diário III”, pág. 124 1954, Coimbra.

12/12/2018

Namasté!...


NAMASTÉ

Ia eu escorreitamente e eis que tropeço
estatelando-me na calçada portuguesa.
Vi estrelas e depois passarinhos
que logo se puseram a andar
ao chegar uma gaivota zen budista.
Hi, I’m Jonathan Livingston Seagull, disse-me.
E eu: Malditos turistas vêm para cá e não aprendem
a língua do Ramos Rosa.
Eu sei-a diz-me prontamente
sou o Fernão Capelo Gaivota e tu
agora tens de escolher se ficas aqui a este nível
ou se regressas para continuares a trabalhar com o Bando.
Enxoto-a com um Aqui há gato! E um Something is fishy!
em inglês não vá ela do Rosa só perceber a ponta dos espinhos.
Mas apareceu-me logo em substituição
uma referência Hollywoodesca.
I’m Morpheus and in this hand I have a red pill
that takes you to the Lá-Lá-Land and in the other
a blue one that takes you back to your day-by-day life.
Fodasse esta calçada portuguesa está repleta de turistas!


RAR

10/12/2018

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“No final do século as pessoas queriam manter-se jovens e dinâmicas mas também ser política e sexualmente correctas ao mesmo tempo o que significava não seduzir mulheres nem sorrir para elas de uma forma lúbrica nem coisa que o valesse nem contar piadas de Judeus e de Alemães e de homossexuais. E algumas mulheres apresentavam queixa contra os seus superiores por estes terem tido uma conversa de conotações eróticas ou lhes terem proposto levarem-nas a casa e no acto terem feito uma cara moralmente dúbia e em 1997 um advogado americano teve de pagar quatro milhões de dólares à secretária por lhe ter despejado no decote uma mão-cheia de bombons de chocolate. E em 1998 alguns americanos quiseram destituir o seu presidente que mantinha relações pouco correctas com uma estagiária e lhe apalpava os seios e lhe enfiava charutos cubanos na vagina e ela fazia-lhe sexo oral por exemplo quando ele estava ao telefone com um representante governamental e os Americanos entretanto bombardeavam o Iraque e os Iraquianos diziam que era para desviar as atenções do comportamento sexual pouco correcto do seu presidente.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pág. 97, Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

07/12/2018

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“Os jovens consideravam que era necessário voltar às raízes da sabedoria e que a sociedade industrializada e a escolaridade obrigatória tinham alterado a relação do Homem com o verdadeiro conhecimento. E diziam que o que dantes qualquer criança sabia hoje já só era do conhecimento de meia dúzia de especialistas e que antigamente as crianças conheciam diversas plantas medicinais e sabiam fazer armadilhas para apanhar coelhos e fazer bolas de erva fresca entrelaçada e enrolar cigarros com folhas de morangueiro e bochechar a boca com uma decocção de urtigas para não lhes darem uma seca em casa. As pessoas mais velhas por seu lado diziam que o que dantes só meia dúzia de especialistas tinha conhecimento hoje qualquer criança sabia por exemplo a raiz quadrada etc. Mas os jovens consideravam que a raiz quadrada de nada servia e passaram a viajar para a Índia e para o Nepal para se familiarizar com a sabedoria oriental e diziam que a moral cristã escravizava as pessoas e que as pessoas na Europa só sabiam contar as árvores ao passo que os Indianos viam a floresta. E não queriam viver num mundo violento e miserável e poluído e partiam para zonas desabitadas na América ou na Escócia ou em França onde fundavam comunas e fumavam haxixe e marijuana e copulavam e entoavam cânticos e ensinavam aos filhos como viver em harmonia com a natureza e defendiam as tradições e tamborilavam em pandeiretas e dançavam à volta de fogueiras e apregoavam ideias.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 94-5, Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

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04/12/2018

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“No final do século as pessoas nos países democráticos começaram a ficar com a impressão de que a democracia e a sociedade de consumo de certa forma também contribuíam para o eclipse da memória e diziam que o excesso de informação era tão perigoso como a censura comunista e que as pessoas estavam alheadas das tradições e das raízes etc. e que a sociedade de consumo tendia inevitavelmente para o esquecimento devido ao seu hedonismo. E que a longo prazo o excesso de informação acabaria por ser ainda mais perigoso que a censura comunista porque não provocava uma reacção e a vontade de resistir mas o cansaço e a resignação.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pág. 93, Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.