20/02/2018

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"Coimbra, 17 de Abril de 1943 – E agora queria dizer-lhe uma coisa…
– Faça favor.
E lá contou que há dois anos, numas termas sulfurosas, encontrara um sujeito de Lisboa que lhe falara com muito entusiasmo dos meus livros.
– Sim, senhor. Isso é curioso…
E fiquei-me a pensar para dentro que os escritores em Portugal são como as raparigas feias nos bailes: passam a noite a sonhar com os mil admiradores que poderiam ter, e a contar pelos dedos os heróis que na realidade as tiram para dançar."

Miguel Torga, “Diário II”, pág. 171, Coimbra.

13/02/2018

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Coimbra, 26 de Maio de 1942 – Mais um livro. Mais uma tonelada de energia perdida, que, gasta na minha terra a saibrar monte, dava pelo menos um milheiro de bacelo planteado. Mas pobre de quem tem uma chaga! Pobre de quem tem a mísera condenação de ser poeta, e de o ser aqui…”
Miguel Torga, “Diário II” 3ª ed. Revista, pág. 35, Coimbra Editora, 1960.

Coimbra, 27 de Maio de 1942 – Lá foi o livro para as quatro ou cinco pessoas a quem ainda, por amizade melancólica, ofereço as minhas coisas, sem a esperança duma linha sequer a dizer – cá recebi. Se eu lhes enviasse salpicões ou perdizes, era um caso – vinha uma carta a correr; mas mando versos… De resto, tanto me faz, como me fez. Com quem eu e todos os que escrevem temos de as jogar não é com a inveja ou com a indiferença dos do nosso tempo. É com uns implacáveis mas impessoais senhores do futuro, que dizem sim ou não sobre uma obra, tanto lhes dando que o autor tivesse em vida lâmpadas acesas em Meca como círios apagados em Jerusalém.”
Miguel Torga, “Diário II” 3ª ed. Revista, pp. 35-36, Coimbra Editora, 1960.

08/01/2018

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“Na casa ao lado era a corte da cabrada. Diante deles os cabritinhos abstiveram-se de tocar nos úberos maternos por discreção ou natural reserva, em contra dos cordeiros. Mas aproximaram-se de Luzia a lamber-lhe a fímbria da saia com a língua vermelha e estreita como malagueta enquanto outros olhavam para ela estarrecidos. Ao cabo dum instante, porém, familiarizados, romperam a todo o largo do estábulo em saltos e gambérrias de acrobatas incipientes. E eram encantadores como figuras de presépio com o seu pelame às malhas, o rabito alado, os botins luzentes, e no focinho um ar de esperteza e graça.
– Êstes bichinhos são os meus amores – disse ela. – Compreende-se o apêgo dos poetas antigos à vida pastoril. Na criação há lá nada mais vivo, diabólico, dinâmico que um chibato? Repare como são mais interessantes que os meninos embrutecidos por séculos de civilização, que acima de tudo tem o efeito de destruir no instinto, tenaz e sistemàticamente, o que possui de belo e autónomo. Não se sujam, não trazem ranho, não contraem doenças, não precisam de parteiras nem de médicos. Onde o espírito chegou… estragou...”

Aquilino Ribeiro, “Quando Ao Gavião Cai a Pena”, pp. 31-2, Livraria Bertrand, Lisboa, s/d.

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“E olhe, pus de parte o circunstancial e episódico, senão tínhamos relato minucioso e estirado à Marcel Proust.”
Aquilino Ribeiro, “Quando Ao Gavião Cai a Pena”, pág. 23, Livraria Bertrand, Lisboa, s/d.

 
“Dois pavões arrastavam pelas carvalhas esqueléticas suas capas de asperges episcopais, soltando o miado de tigres assanhados.”
Aquilino Ribeiro, “Quando Ao Gavião Cai a Pena”, pág. 27, Livraria Bertrand, Lisboa, s/d.

30/12/2017

31 de Dezembro...

Wenceslau de Moraes, 1903

“Quando uma creança nasce, entra no seu primeiro anno de existencia… de publicação, dá-me vontade de dizer. No seguinte anno do calendario, entra no seu segundo anno de existencia. O dia do anno novo é, pois, de certo modo, um anniversario impessoal, o anniversario de toda a gente. De maneira que, por exemplo, o menino nascido no dia 31 de dezembro, entra no dia 1.º de janeiro no seu segundo anno; a mãe dirá que tem dois annos, e nós… que tem dois dias. Em geral, quando um japonez nos diz a sua idade, convém descontar-lhe um anno, pelo menos, reduzindo assim a cifra á nossa maneira de contar.

Wenceslau de Moraes, “Cartas do Japão”, pág. 166, Imprensa de Portugal-Brasil, s/d, Lisboa.

20/12/2017

Alusão à quadra...


“Desejando dar um resumo dos ultimos factos, alludo apenas á quadra em que me encontro, pela qual, em lares inglezes ou inglezados, vai fructificando a arvore do Natal, pendendo a ramaria ao peso das almofadas para alfinetes, das bolas de vidro prateado, das bocetas com confeitos e de outras bugigangas; a mais, um cheiro a cêbo, intoleravel, emanando do classico plum-pudding... Refugio-me no meu albergue, entricheiro-me; e, se alguem vier aqui convidar-me para alguma festa... dou-lhe um tiro!... “

Wenceslau de Moraes, “Cartas do Japão”, pág. 159, Imprensa de Portugal-Brasil, s/d, Lisboa.

18/12/2017

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“E agora uma nota derradeira: Ha dias, um jornal do Japão dava a seguinte noticia aos seu leitores:

            “Entre os sete  estudantes chinezes, chegados a Tokio ultimamente, conta-se um descendente, do sexo feminino, de Confucius.”

            Não vos parece, leitor, extremamente emocionante o caso d’estas noticias actuaes, referidas aos parentes de um homem que viveu ha vinte e quatro seculos, e que já ia contando antepassados remontando a uns mil annos atrazados?… No Extremo-Oriente, em verdade, não desperta isto muito espanto. Aqui, pelo amor da tradição, pelo respeito dos avós, pela religião do lar, a memoria perpetúa a linhagem das familias. Pelo contrario, no Occidente, os tempos tudo apagam; a vida de hoje afoga-se amanhã no esquecimento. Imaginem como seria recebida uma noticia n’estes termos, lida nas folhas europeias: – “Uma prima de Socrates acaba de chega a Torres Vedras, onde vem aprender a lêr pelo methodo de João de Deus…?” – Desatava toda a gente às gargalhadas!…, Ai, pobres mortos, os nossos pobres mortos, os mortos do Occidente!...”

 

Wenceslau de Moraes, “Cartas do Japão”, pág. 147, Imprensa de Portugal-Brasil, s/d, Lisboa.

14/12/2017

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Ex-administrador do Facebook diz que redes estão a destruir o funcionamento da sociedade




Ana S. Ferreira

12 Dezembro 2017 às 20:54

 

Ex-administrador do Facebook diz que redes estão a destruir o funcionamento da sociedade

Chamath Palihapitiya, ex-diretor executivo da rede social Facebook, admitiu sentir-se "tremendamente culpado" por ter participado na construção de uma ferramenta que está agora a "destruir a forma como a sociedade funciona".

Palihapitiya, que foi também foi vice-presidente do departamento de utilizadores do Facebook até 2011, ano em que saiu para criar a sua própria empresa de investimento em capitais de risco na educação e na saúde, disse acreditar que o "os ciclos de retro-alimentação a curto prazo, impulsionados pela dopamina que criamos, estão a destruir o funcionamento da sociedade". São desprovidos de qualquer "discurso civil", com "informações erradas e inverdades".

Como vice-presidente, Palihapitiya tinha a função de gerir e aumentar o número de utilizadores da rede social. "No fundo, todos sabiam que algo mau poderia acontecer". E o problema, acrescentou, "não é americano nem está relacionado com as mensagens patrocinadas pela Rússia. É global".

Na palestra, feita no mês passado na Stanford Business School mas só agora noticiada pelo site especializado em tecnologia "The Verge", Palihapitiya pediu à audiência que descansasse das redes sociais: "Encorajo-vos, todos, a interiorizar a gravidade do problema", disse. "Se alimentarem a besta, ela irá destruir-vos".

"Vocês não se apercebem, mas os vossos comportamentos estão a ser programados", avisou, defendendo que as redes sociais estão a "danificar as bases fundamentais de como as pessoas se comportam e se relacionam".

Admitindo que não tem uma boa solução para resolver o problema, assume que ele próprio não usa a sua página de Facebook. Sem papas na língua: "Eu não uso esta merda e não permito que os meus filhos usem esta merda". Contudo, não deixou de realçar que o Facebook tem pontos positivos e garantiu que o dinheiro que lhe pagaram pelo trabalho que fez na empresa irá ser usado no apoio a causas mundiais.

As declarações de Palihapitiya seguiram-se às de Sean Parker, presidente fundador do Facebook, que, também no mês passado, criticou duramente a empresa por "explorar a vulnerabilidade da psicologia humana", criando uma "contínua alimentação da validação social".
 

10/12/2017

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“Os misteres de carpinteiro, de estucador, etc., são verdadeiros sacerdocios; devendo observar-se que durante a construção de um edificio e em certos estados de adiantamento da obra, os obreiros praticam certas mysticas ceremonias. Erros de construção, ainda os mais simples, dão origem a calamitosos resultados. No numero de taes erros, figura o chamado sakasa-bashira, viga às avessas. Os carpinteiros empregam escrupulosas attenções no assentamento das grandes vigas verticaes das casas japonezas, devendo collocal-as na sua natural orientação, isto é, taes como se conservavam como arvores, com a parte sêcca da raiz para baixo, com a parte junto da rama para cima. A’s vezes, dá-se o equivoco, assentando a viga… de pernas para o ar, como nós poderiamos dizer. O caso é dos mais graves. Acontece que o espirito da viga soffre atrozmente com aquella posição contrariada aos seus instinctos e por longo tempo supportada. Pela noute desabafa em gemidos, as fendas da madeira escancaram-se como outras tantas bôccas afflictas, os nós abrem-se como outros tantos olhos espantados. Contorcendo-se em desesperos, a viga estremece e abala a casa toda; fura pelas paredes, penetra nos aposentos, offerecendo-se à visão dos locatarios, adormecidos, em fórmas diabolicas. E notai que este fracasso redunda em constantes maleficios, traduzindo-se em infortunios domesticos, em zangas, em disputas, que só cessam quando o mal é conhecido e se chama um carpinteiro, que dá então à viga torturada a posição appetecida.”

Wenceslau de Moraes, “Cartas do Japão”, pág. 97, Imprensa de Portugal-Brasil, s/d, Lisboa.

08/12/2017

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“Ora, os touristes formam uma interessantissima classe,quasi uma casta, que poderá commover as almas bem dotadas, mas que antes de tudo provoca riso e mofa. A massa dos touristes é, na sua grande maioria, composta do cosmopolitismo endinheirado, marcado das taras de degenerescencia que particularmente ataca a gente rica: uns meios nevroticos, outros meios imbecis, outros meios loucos, outros meios scelerados, todas as mazellas emfim que impellem às grandes viagens sem intuito, ao movimento pelo prazer do movimento, quando a vida normal, na patria e na paz do lar, se torna intoleravel. “

Wenceslau de Moraes, “Cartas do Japão”, Vol.1, pág. 74, Imprensa de Portugal-Brasil, s/d, Lisboa.

01/12/2017

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Sobre as constipações...


“Pois é opinião corrente entre os mais eminentes eruditos que o cérebro não passa de uma multidão de animaizinhos, pequenos mas dotados de garras e dentes extremamente acerados, os quais se mantêm unidos na contextura que nos é dado divisar, como a imagem do Leviatã do Hobbes, ou como abelhas num enxame perpendicular sobre uma árvore, ou como uma carcaça coberta de vérmina, ainda conservando a forma e a silhueta do animal de origem; que toda a invenção é produto da mordedura de dois ou mais destes animais, infligida em certos nervos capilares que procedem do cérebro, a partir do qual três ramos se disseminam até à língua e dois até à mão direita. Afirmam também que estes animais possuem uma constituição extremamente frígida; que o seu alimento é o ar que atraímos, o seu excremento a mucosidade; e que aquilo a que vulgarmente chamamos catarro, constipações e defluxos nasais não são mais do que diarreias epidémicas, a que aquela pequena comunidade é particularmente atreita, devido ao clima em que habita. Mais ainda, que nada menos que um calor violento poderá libertar estas criaturas da sua postura enganchada, ou dar-lhe vigor e disposição para imprimirem as marcas dos seus delicados dentes. Que, caso a mordedura seja hexagonal, produz poesia; a circular gera eloquência, caso a mordedura seja cónica, a pessoa cujo nervo é afectado deste modo estará na disposição de escrever sobre política; e assim por diante.”

Jonathan Swift, “Singela Proposta...”, pp.76-7, ed. Antígona, Lx, 2013.

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16/11/2017

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“De acordo com o moderno paradoxo. [antiquitas saeculi juventus mundi, na formulação de Francis Bacon (1961-1626), isto é, o mundo é mais antigo na era moderna de que o era na antiguidade, já que muitos mais anos decorreram entretanto.]”
Jonathan Swift, “Singela Proposta”, pág. 25, Antígona, Lx, 2013.