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07/02/2014

«DE OMBRO NA OMBREIRA DO SURREALISMO»...

DE OMBRO NA OMBREIRA
DO SURREALISMO
Vitor Silva Tavares

Em nacional português teríamos chegado tarde a tudo, surrealismo incluído, não tivera havido faiscante premonição a tal modo de usar: num jacto de psiquismo discursivo Almada esgalha A Engomadeira dois anos antes (estamos em 1917) de Apollinaire apor o hífen à designação pioneira «sur-réalisme» para o «drama» Les Mamelles de Tirésias.

Arqueólogos, cuidado: a esta luz o próprio André Breton – pára-raios e constitucionalista – chega tarde ao surrealismo!

Capítulo escavações temos entre nós um caso toupeira expedicionária: vai-se à antologia O Surrealismo na Poesia Portuguesa que Natália Correia estampa europa-américa em 1973 e lá surge a inaugurar uma tal Soror Violante do Céu, nada em 1602 e sugada de vez pelo apelido em 1939, Nihil obstat.

Matéria de arautos & trombeteiros, faz-se constar Agostinho de Campos (!) e já agora – pare, escute e olhe – Jorge de Sena, mas a coisa apura em António Pedro, que manifesta «dimensionismo» (!) em 1935 e até fardara surrealista londrino em 36. Também vale.

Ou não. E não, porque o Primeiro Manifesto de 1924 (que manifesta a cosmovisão conceptual e as estradas da intervenção) o surrealismo se entende unicamente acção de grupo, proposição revolucionária que se cumpre em colectivo e dispensa (expulsa) frenesis umbilicais, génios domésticos. Atenção: por enquanto, nisto, nem bufa de Estaline.

Mas teremos de virar folhas e calendários, ultrapassar de Espanha e Segunda Mundial para, agora sim, chegarmos a António Pedro como polarizador, na passada esperta, de um primeiríssimo grupo de iniciados, ou isso. 1947: passe de mágica no círculo do circo cercado e ei-lo primus inter pares – já era mania pessoal, vê-se até na fotografia.

(IN SE RIR FOTO)


Primo que fosse, ou se colasse colaterasse, serve à maravilha para arquivistas do tarde e do cedo.

Que é sempre tarde. E é cedo sempre. Independente do cadáver adiado e da sua circunstância histórica, o real movimento do espírito humano não cultiva relações com cronómetros e calendários, as ondas magnéticas vertiginam por espaços e eras, sem atrás, sem à frente, sem baixo, sem cimo, sem ida e sem volta. O que é que pois importa, nesta irradiação, sublinhar-se primeiro como certificado de valor ou louro de efeméride se de cada «novidade» na anedota dos ismos se desenha apenas o jeito da farpela, o ademane?

Adiante. Temos por assente que Breton e correligionários, saídos da negação pura e dura de dadá, não asparam o surrealismo como estética, mais uma, apesar dos impulsos instrumentais – psiquismo onírico, celebração mágica, discurso sem censura racionalista – e dos modos operatórios da criação artística aqui alavanca (uma delas, e nem por isso aglutinadora) para mudar a vida, mudar mesmo, e transformar, transformar mesmo, o Homem: assim o afirmaram revolução – com ética interventora e revólver dialéctico, pum pum.

Quanto ao comandante de grupo lusitano cheira-nos que afeiçoou ele o surrealismo cheirado via Canal da Mancha ao figurino de bailarico minhoto – e terá sido por consequência, afeito folclore de vanguarda, que o Secretário de Propaganda Nacional, depois Secretário Nacional de Informação (não é de hoje, pois não, a camuflagem da propaganda em informação), todo entregue a modernismos para não mais se sentir só, lhe chamou um figo, lhe abriu salões para expor, pagou catálogos, fez a festa, lançou foguetório e deixou outros a apanhar as canas. Ou nem isso. Porque outros – havia outros – tomavam de assalto a SNBA de Eduardo Malta e, verdinhos muitos da António Arroio, pintavam-se alguns de vermelho tropical, tipo Portinari e muralistas mexicanos, naquela sua ideia deles de porem trombudos trolhas a almoçar de marmita ou a adjectivarem a fome – e oh se esta apertava – com os ossos todos à vista armada. Mas será este um outro filme, se não o mesmo. Porque a polémica «neo-realismo» versus «surrealismo» foi também, se é que não foi de sobremaneira, uma polémica política em tempos internacionais de brutal confrontação entre fascismos e antifascismos, e por cá em conformidade, entre quem colaborava ainda que a toca-e-foge ou não colaborava-de-todo com um regime ditatorial, claramente apoiante dos fascistas espanhóis e das potências do Eixo, que nem a «Política do Espírito» herdada do buliçoso Ferro lograva branquear. Impunha-se uma separação de águas ou territórios, de compromissos tácticos, de comportamentos. Não apenas, note-se, entre os dois lados deste fosso que o tempo forçava a preto-e-branco: pairando como pairava, já nas hostes neo-realistas, a treva do jdanovismo estalinista – que impelia o Mário Dionísio das «Fichas» a confrontar um António Vale que mais não era que o Álvaro Cunhal em embuçado pseudónimo – também no interior do que passava a ser o primeiro grupo surrealista havia quem, houve quem, desde logo se não antes lobrigasse o surrealismo de António Pedro como esturro reaccionário, ou fedor de cadáver-mais-que-esquisito da propaganda estadonovista, álibi d’arte prafrentex, lambidinho em subdesenvolvidas imitações dalinianas e logo convenientemente «onírico». Na literatura, o mesmo: serra d’Arga à vista, em proto-poema hortaliceiro. Estava muito bem assim.


COLAGEM – I

De uma entrevista concedida por Francisco Castro Rodrigues, homem do MUD e co-organizador do volume antológico Bloco (onde neo-ralistas e futuros surrealistas se ombreavam), à revista Abril em Maio, Abril de 2001:
CR – As teorias de António Pedro foram aquelas seguidas imediatamente.
AeM – Eram teorias dissolventes?
CR – Não diria tanto. Mas era: desliguem-se dos comunistas, desliguem-se desses antifascistas todos, e pintem, e façam as vossas obras. (…) Talvez viesse a saber depois que aquilo era o expoente dessa coisa que se chamou surrealismo. Vieram depois juntar-se ao Grupo Surrealista de Lisboa, em manifesta hostilidade a esses patetóides dos realistas, dos neo-realistas, porque ninguém falava ainda em realismo socialista, não se sabia o que isso era.


COLAGEM – II

Do artigo «Antes e depois de 1947», de Alexandre Pomar, inserto no «Cartaz» do Expresso, 2 de Junho de 2001:

Quanto à primeira fase do surrealismo nacional, o carácter de ruptura atribuído à exposição de Pedro e Dacosta na Casa Repe (1940) tem de ser prudentemente contabilizado com a aparição regular da sua pintura nos salões do SPN, desde 39, depois no SNI, em 45, e na SNBA em 46 e 47 (1.ª e 2.ª EGAP), associada entretanto à confusa produção de Cândido Costa Pinto, Por outro lado, é indispensável que ao vanguardismo de pedro em 34 se associe a sua militância fascista (é então comissário da propaganda do «Nacional Sindicalismo» e a ida para Paris é um «semi-exílio» solidário com Rolão Preto, como França ensinou), tal como importa referenciar na extrema direita as figuras de Dutra Faria e Ramiro Valadão, co-autores dos primeiros cadavres-exquis ditos surrealistas.


COLAGEM – III

De Mário Cesariny, in A Intervenção Surrealista (1966), dados referentes a 1947:
a)    Em Lisboa, António Domingues, Alexandre O’Neill, João Moniz Pereira e Mário Cesariny aderem ao surrealismo.
b)    Em Lisboa, Alexandre O’Neill e António Domingues afastam Cândido Costa Pinto do grupo surrealista em formação, ao mesmo tempo que chamam António Pedro a esse propósito.

«Fundador» do grupo lisboeta por usurpação transformada em direito natural, e assim uma espécie de gauleiter do surrealismo-de-montra do Palácio Foz, António Pedro devia exalar ainda, em majestático, o fascínio de um cilindro sedutor (leia-se José-Augusto França, que em recentes Memórias lhe presta sentida homenagem e lhe despe a fardeta negra), daí decorrendo que, perorando pulsões narcísicas sem mais ímpeto ou furor, atrai ao primeiro milho da «subversão artística» uns tantos moços sedentos de ardências outras das da epopeia futurista quanto mais da saga coitadinha de gaibéus e trolhas. E se uns por aí se ficaram, breve deslizando como O’Neill ou Dacosta (que já «pegara fogo» ao atelier de António Pedro em 1944, segundo Cesariny), outros, em clara agonia do mau cheiro, bateram com a porta e foram, literalmente, apanhar ar. O ar que houvesse disponível nos interstícios do pestilento país do respeitinho, dos padres e das polícias.

         Decorre uma saraivada de manifestos, abaixo-assinados, poemas-colagens e por colar, objectos recuperados, cadáveres-esquisitos, picto-abjeccionistas, provocações – o mais intenso, o mais dinâmico, o mais inventivo e interventivo que pulsou entre nós o surrealismo-enquanto-tal, único.


* * *

Enredos e equívocos em malha apertado eis que se chega (47) ao palco do JUBA onde doutores mui curiosos de saber o que era afinal isso do surrealismo ouviram os distintos baptizados e estancaram-se com o mesmo ponto de exclamação sendo depois brindados pelos «outros» com um gato dentro duma caixa de sapatos «tudo rapaziadas» miopou póstumo o Luiz Pacheco enquanto o trolha lá ia melhorando o rancho e a pide refeita do cagaço da vitória dos aliados garantia o emprego o emprego com o novo alento da guerra fria já que os capatazes locais do zé dos bigodes excomungavam de reaccionários todos (por causa do ex-fascista Pedro?) esses rapazes suspeitamente esquizofrénicos e esotéricos e sebosos de caca cuspo e ramela que tendo lido embora e adaptado conforme o Segundo Manifesto da tentação marxista repegavam Rimbaud e Artaud e outros videntes e empanzinavam-se (no papel) de carapaus fritos e pratos de sopa numa recusa telhuda de explicações para a História dos sábios e de carreiras artísticas com vista à enxúndia bancária e assim se estampavam com o nariz na porta dos suplementos culturais e das casas editoras que lá iam cumprindo em elevado espírito de missão & melhor consciência comercial o papel de oposição ao regime, oh Posição.

Esses rapazes que lá fora – ah, lá fora – conseguiam, malgré tout em português, rir de tudo.

* * *
COLAGEM – IV
     De Mário Cesariny, in A Intervenção Surrealista, dado o referente a 1951: Alexandre O’Neill publica: Tempo de Fantasmas, primeira recolha de versos. Apresentando, diz estar o surrealismo «reduzido, como merece, às alegres actividades de dois ou três aventureiros». Os surrealistas respondem com o folheto: Do Capítulo da Probidade.

Propriamente dita (não contando a zona de transição entre uma atípica influência neo-realista – batuta Pinheiro Torres? – e os primeiros bosquejos experimentalistas), a aventura surrealista «ortodoxa» de Alexandre O’Neill pouco mais dura que o amor de um estudante: máximo quatro anos e as colagens d’A Ampola Miraculosa (1948), somando sim senhor – entre penúrias, angústias, vagabundagens, paixões de cair à cova –, uns tantos objectos-esculturas, alguns cadáveres-esquisitos e abaixo-assinados, cartas e repentes poemáticos. Tudo o que vem a escrever e publicar depois (incluindo Tempo de Fantasmas) não o considera ele «surrealista» – e disse.

Após o acne do achamento e a imediata sintonização com o novo espírito de rebeldia – que aliás ia ao encontro do seu pendor iconoclasta –, breve se enreda nas manigâncias e intrigas e conspirações grupais gerados pela bafienta erosão do tempo e do lugar, navega à bolina e a desnorte, cava um fosso com outras radicalidades porventura mais consequentes e parte enfim solto de obediências sacerdotais, nunca deveras assimiladas, rumo à autenticidade própria, ao auto-retrato, Certo que do surrealismo como ele o entendia « herdou certa tentação pela ambiguidade (fuga do real) e um formalismo que o leva, num ou noutro poema, a soluções de evidente mau gosto», ele o diz em 51 mas não é de levar à letra para todo o sempre, o poeta amuara. Outro, sem dúvida, é o sentido eu dá à vida ou à «vizinha» e se deixa ler no seu corpus poético, o regresso à base do «real», os escolhidos ou recuperados vultos tutelares (Tolentino, Bocage, Gomes Leal), o olhar (escarninho, lúcidomerda) sobre o ser Português no Portugal das três sílabas e dos três efes, também o percurso – em boa medida ditado pelo virtuosismo vocabular e pela agilíssima imaginação – que o conduz ao pãozinho da publicidade e lhe vem a contaminar, pungente embora no autocriticismo derisório, o aplicado rigor da oficina e a mundividência da inspiração.

     Caso arrumado, em surrealista (também como os outros) condenado a solitário? – Pois não senhor.
    
 Na «Biografia Cronológica de Alexandre O’Neill», estabelecida por Ana Maria Pereirinha nas Poesias Completas (ed. INCM, 1990), pode ler-se:


COLAGEM – V

1945-1950

Anos da «aventura surrealista», balizados por dois encontros fundamentais: em 1945 o encontro com Mário Cesariny, no café A Cubana, determinante para a formação dois anos mais tarde do Grupo Surrealista de Lisboa: em 1950 o encontro com Nora Mitrani. A partir deste último ganhará corpo o mito do amor puro, do «amor louco», nunca maculado pelo «sórdido amor mesa-de-família-cama-de-casal» contra o qual O’Neill se rebela num questionário acerca dos porquês da adesão ao Surrealismo inserido no catálogo da 1.ª exposição do G.S.L.

O'Neill com Nora Mitriani

     Cristalizado e imortalizado na beleza pungente de Um Adeus Português, na ternura infinita da elegia que são Seis Poemas Confiados à Memória de Nora Mitriani, será este o amor dorido do poeta. O homem real encontrará na vida outras concretizações do amor, todavia menos absolutas.

     Sublinhe-se: todavia e menos absolutas.

     Alexandre O’Neill projecta-se surrealista em Amor Absoluto.


À LAIA de P.S.

     Surrealismo, revolução surrealista, na feira cabisbaixa? Máxima liberdade para o Homem quando por cá se coarctava, para além da liberdade cívica, a própria livre expressão do pensamento e da vivência poética, também esta forçada em literário a camuflagens, alegorias, extrapolações simbólicas, audácias caligráficas? Que grandes transparentes iluminados em tal opacidade? Sendo como era a retaguarda, que vanguardas outras distintas das recreações do espírito e das guerrilhas do alecrim e da manjerona?

     Alexandre O’Neill – a sua agudeza crítica – nega-se a um surrealismo desde logo confinado a erupções de meneio artístico e sequer se presta a espectador ao postigo do abjeccionismo, proposição de Pedro Oom como paisagem adequada (empestada) a um impossível surrealismo cá: vejam a merda em que sufoca o sonhador espacializado. Com ele se deu o que se dá com os revolucionários sem revolução: acabam por se devorar, suicidados da sociedade – sendo os próprios a apresentar a certidão de óbito, fuligem de um incêndio onde, num breve encontro, puderam crepitar com outros.

     Os seus dentes todos, se desejavelmente «lavados e muitos» como os de Cesariny a rir «lá fora», foram, com o continuado tempo de fantasmas, ficando apodrecidos pela cárie da amargura. Vi-os eu com estes olhos a castigarem de cínica ironia – essa gabardina fingidamente protectora das chuvas ácidas que a muitos encharcavam, degradavam, no cinzento da pátria salazarenta e no depois do ledo engano que Abril abriu. Vê-los luzir seria terapêutico não fosse, no asséptico real quotidiano, penoso. Por ele. Por mim nós. Pelo dessorar de uma utopia revolucionária feita corpo visível noutras latitudes ou, em mais próximo e pequenino, por uma adeus (infinito) português que a língua – a literatura – por si só pode iludir mas lá travar não trava.


Prefácio de Vitor Silva Tavares in Alexandre O’Neill – Anos 70 Poemas Dispersos, Assírio & Alvim, 2.ª ed., Fevereiro de 2009.