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07/08/2015

«COMO SE FEZ O LUÍS DE CAMÕES»...


COMO SE FEZ O LUÍS DE CAMÕES


Dum velho engaço do meu avô roubei dos dentes
O prego que na terra conquistaria os continentes

E por trás da escola no tempo do recreio grande
Tirei-o das meias onde o levava – tipo sande.

Na parede afiámo-lo para que espetasse fundo
E c’o calcanhar da bota desenhei o mapa-mundo

Do alto da canalhice lembro-me de rimar com cu
A caravana que passava em campanha pela APU

Eu matutava – Moscovo, Jamaica ou Índia?
Tomando cidades por países que confundia

E enquanto me decidia a escolher o meu país
Quem já por ali arava terreno era o grande Luís

Chutava as pedras para limpar o círculo na terra
E as botas ensebadas não chegavam à Primavera

Cuspia na mão porque afinava a pontaria
Cuspia no chão porque a terra também bebia

Estava o Luís a unir os furos do prego cravado de pé
E eu a empurrar dali um puto que pertencia à pré

Quando me voltei acenando com a eureka da América
Vi o Luís agarrado ao olho dizendo que ressaltou numa pedra

Oh grande merda! Chamou-se professora e ambulância
Da coça e castigo ganhei amnésia advento da circunstância

E foi assim que o Luís ficou um Camões tal e qual
Repetente até no país que era sempre Portugal.



No Jogo das Nações, desenhava-se no chão um grande círculo, simbolizando o globo universal. Dividia-se este círculo em nações, tantas quantos os jogadores intervenientes. A ordem para cada jogador jogar, era também a distância a que ficavam da linha traçada no chão. Começava-se sempre no território ao lado, fosse da direita ou da esquerda.
Por cada espetadela, traçava-se uma linha conforme a inclinação do espeto. O anexado escolhia a parte restante e saía do jogo quando no seu território já não lhe cabia um pé. Por sua vez o jogador quando perdia apagava todo o território conquistado, retornando à fase inicial. Ganhava quem conquistava o Mundo todo”

29/06/2015

«PROTESTO»...

São como flores fanadas os fúteis alfarrábios,
estagnados e doentios como a água adormecida,
do senhor dom artista que não quis colar os lábios
contra os seios da vida.

O homem que vende livros na velha padiola
expõe o romance da sua vida nessa espécie de montra
e grita contra os romances onde a vida estiola
em maciezas de lontra.

E em todos os cantos e recantos da rua
gritam contra os versos mornos, versos mansos, versos falsos,
as mulheres bem vestidas que ganham a vida nuas
e os garotos descalços.


Sidónio Muralha, “Antologia da Poesia Portuguesa 1940-1977” vol.I, [Org.] M. Alberta Menéres e E. M. de Melo e Castro, p. 93-4, Moraes Editores, Lisboa, 1979.

11/08/2014

SONETO CONTARELO DE COMO SE FAZ UM ROMANCE HISTÓRICO



SONETO CONTARELO DE COMO SE FAZ UM ROMANCE HISTÓRICO


Dois ou três agoiros
Um puxar à lágrima
Uma cena de esgrima
A morte dada aos toiros

O privado duma vida
Caído na via pública
Uma amostra bíblica
Rei suicidado é regicida

Uma querela provinciana
Dá em intriga palaciana
Com Neo-realismo à fratelli de Rocco

Mais pitada de Barroco em rococó
Alguém já traz a Questão Coimbrã
Ui, que me deu uma cãibra.


RAR

27/01/2014

Título pró visório


E este solo é grama
E esta só é gramática
E este não limpa os ângulos
E este purga num bacio
E este suja as pegas
E este diz: faz logo ritmos
E esta é uma má ‘triz
E este um leo pardo
E este animal de dó acção
E este vende micro copos
E este esteta copos não tem
E este é um acaba lista
E este cortou os impulsos
E este é um és tá tu to bem
E este é arisco etílico
E este um plano tónico
E esta é fêmea efémera
E este macho machuca
E este ri actual
E este ri corda
E este é, se vero
E este é um rigor morto
E este está na idade da vontade
E este tem vontade de ir da idade
E este amado ali aleija
E este é o Mohamed de Alijó
E este via a via viável
E este nunca se viu com outra
E este esbarra os ares
E este só pára nos bares
E este é o novo que vê o cú da galinha no ovo
E esta dobrou o finado pró morto ficar vincado
E a este a musa pôs-lhe as antenas
E este confia no que vem de Atenas
E este é só
E esta é sã
E esta diz que amou
E este diz que não amuou
E este ignora que é ignorado
E este signore é do signo aquário
E este admite demitir-se
E este de meter-se submete-se
E esta é uma franga
E este um ex-frangalhado
E este diz: subi num pulo
E este diz que é desci pulo
E este queixa-se da lida
E esta de que não é lida
E este professor diz: já avaliou?
E este ex-professor diz: Jávali!
E este lavra
E este, palavra!
E este viu a filha em acção
E este não tem filiação
E este quer vingar-se
E este já não vinga
E este quebra o barulho
E este parte o baralho
E este tem louvores
E este tem dores
E este perdeu-se no deserto
E este perdeu-se na dissertação
E este é do comércio
E esta é de comer no cio
E este mica um livro cómico
E este tem comics em micas
E este abusa das palavras inocentes
E este usa palavras que mataram
E este não cede um milímetro da fórmula – milionário
E este é dos que cede sempre, ó pra ele tão sedentário!
E este que veio à boleia de Wyoming
E este estuda os índios Pottawotomie
E este à noite lê o Ginsberg
E este deita gin na carlsberg
E este que leste?
E esta a Leste!
E este vende galos de Barcelos aos ingleses
The cock, the cock! The portuguese cock!
E este esteriliza sentimentos nos dias cirúrgicos
E este no fundo tem mantimentos pró fim do mundo
E este ouve os livros no ipod
E este ouve gritos mas não acode
E este é de arrebatamento pueril
E este afia a língua no esmeril
E este cobre-se de façanhas
E este quer cozer faianças
E este hesita por um instante
E este foi Aki e traz uma estante
E este coça o cú
E esta faz o Sudoku
E este mole é aqui que verga
E este duro é daqui que parte
E este é mestre em mídias de arte
E este sendo nada não está à parte
E este é do universo universitário
E este parece que saiu de um aviário
E este é o arruma dor que faz rima:
Mais um pópó pró pó!
E este tem encontros do 1º grau na prima
Fica na família não tenhas dó!
E este está preso na rede social
E este tem 60 e um curso profissional
E este só diante de um juiz diz: Juro!
E este vai ao banco renegociar a taxa de juro
E este ao Lobo Antunes rouba as letras de médico
E este desde pequeno que não toma o remédio
E este encenador incinera a cena
E este confunde-me com alguém e acena
E este dos programas da televisão entope
E este faz lembrar os telegramas: STOP!

RAR


03/10/2013


CHILE
a Salvador Allende

Ergam esse belo morto estendido sobre a porta de nogueira.
O preço do cobre subiu já de três cêntimos e meio a libra.
O ferro,
sempre o ferro; o dólar; as botas. Uma caldeira, uma caldeira,
                - gritou ele –
uma caldeira de alcatrão fervente –gritou ele – para que afogue
                nela as mãos – mãos estúpidas
com chagas dos cravos – elas não aprenderam ainda a
                enrolar-se à volta de um pescoço. Ergam-no
mais alto ainda ergam o belo morto sobre a porta de
                saída[1]. Destino
o mais amargo dos destinos: fazemos deslizar os heróis por baixo da história
                envergonhadamente
neste comboio bem aferrolhado, cheio de beatas, de cestas dos pescadores,
                vazias
com as bandeiras mil vezes enroladas para que ninguém lhes veja
                as cores
depostas em terra, sobre as pranchas, amarrotadas, travestidas
nessas trouxas que levam os mendigos enfermos, - e dentro,
                uma pedra. Em cima, sentados,
os três cães cegos e a guitarra vermelha, a guitarra de peito
                feito de Pablo Neruda.

                Atenas, 12 de Setembro de 1973

Yannis Ritsos com tradução & notas de Luís Nogueira in «Fenda – Magazine Frenética nº1», Coimbra, 1979.



[1] N. T. Erguer o morto sobre a porta da saída… Costume funerário na Grécia insular de Ritsos e em algumas zonas mais pobres do país, como a Macedónia. Costume ainda em muitos países subdesenvolvidos, é ao mesmo tempo indicador da suprema miséria (ou despojamento) e da suprema dignidade que só readquire com a morte aquele a quem tudo foi negado em vida. Daí: “Ergam-no mais alto ainda…” como diz Y. Ritsos.

26/08/2013

...




14

sobre a expulsão do ditador islâmico
há a dizer o seguinte

os políticos ocidentais
como sempre inspirados
mobilizaram as suas redes sociais
sempre inpirados pela Epístola I
de S. Paulo aos Romanos

a salvação de Deus
será enviada aos gentios
e eles a entenderão,
28, 28

ajudaram
outros islamitas
a revoltar-se
e a expulsar o ditador

o dono do café Farol
no porto do Suez
queixa-se desde então
«julgam que podem
fazer o que querem
agora até às raparigas
fazem o que está mal
já nem sequer hiyab a tapar
a sem-vergonha»

Walid o muezim
e os amigos
fazem ronda nocturna
 vão de moto
em demanda do mal

Walid
esfaqueou Ahmed
quando o viu
beijar a namorada
num recanto do parque
e Ahmed reagiu
aos insultos

ora graças a deus
esfaquear já não parece tão mal
como a bárbara lapidação

ainda desconhecem
outros castigos simples
que não oferecem dificuldade

o método por exemplo
que os jovens católicos
usaram no Porto
para eliminar Gisberta
a herege

Alberto Pimenta, in “de nada”, pp.43-44, ed. Boca, 2012. 



21/08/2013

Quinta-Feira 2...




TER RAZÃO ÀS QUINTAS-FEIRAS

Se Vossas Excelências não se importam,
Excelentíssimas entidades superiores,
eu hoje,
que é quinta-feira,
gostava de ter Razão.
Sei perfeitamente que morrerei um dia
e que só na minha rua o vão saber.
Por isso se Vossas Excelências realmente não se importam
eu hoje, que é quinta-feira,
precisava muito de ter Razão.
De sete dias da semana pedir um para viver,
não é muito, convenhamos.
A não ser…
Ah! é verdade, a não ser…

Eduardo V. da Fonseca, “Tempo dos Manequins”, p. 14, ed. do autor, plaquete composta e impressa na tipografia frasco & companhia, Póvoa de Varzim em Janeiro de 1957. Capa de A. Matos.

06/08/2013




Esta porta não existe no mundo
Mas na memória de alguém.
Os que querem entrar
São travados
Pelos que vão a sair.

Dez anos podem não deixar marca
Um olhar pode apontar a eternidade.
Não há «Perdão!»
Que soe mais melancolicamente.

A porta ali está ainda
Só virando a cabeça e revendo o passado
Se distingue claramente
Que é uma porta
Que leva à Divina Comédia.

Existe num vazio.
Podia estar num lado qualquer.

Zheng Min, in: "Chinese Literature", Winter 1994 op. cit. de Alberto Pimenta in: “A magia que tira os pecados do mundo”, Cotovia, 1995.

05/08/2013

Diz aquele poema do 'mancho as noites e troco os dias'!...


Nada na mão
algo na v’rilha
remancho as noites

e troto os dias
entre tabaco
viris bebidas
fraco mas forte
de muitas vidas.

(Que eu já dormi
co’as duas mães
e as duas filhas
que vão à missa
com três mantilhas.)
Bebo contigo
cerveja, whisky
p’ra que se veja
mais rubra a crista.


                               Alexandre O’Neill

16/07/2013

«ERA O INVERNO DE 69»...


MIGUEL MARTINS


Era o Inverno de 69.
Havia notícias como há sempre,
e suponho que fizesse frio.


A parentela acorria,
acotovelava-se ao redor da cama,
fingia estar feliz, ou talvez estivesse,
sabe Deus porquê. (Ao mesmo tempo,
abrigava-se da chuva.)


Nunca fui tão pequeno, nem tão pouco
parvo. A partir de então, industriaram-me
nas artes e ciências de estar vivo,
excepto a respiração, que é oferecida:


comer, roubar, fugir,
ser intramuros e existir na gleba,
e desistir
silenciosamente.


Sim. Foi, para mim, o Inverno dos Invernos.


E não há meio de acabar.




Resumo: A poesia em 2012 [de A metafísica das t-shirts brancas], org. de Armando Silva Carvalho, José Alberto Oliveira, Luís Miguel Queirós e Manuel de Freitas, Documenta/Fnac, Lisboa, 2013.


07/07/2013

...


«BRAZIL NIHIL»

Vermelho
E negro
A camiseta do Flamengo
A secar no Stendhal.



RAR VIII/2012

16/05/2013

«Be taken...»

Vitorino Nemésio
SER LEVADO

Tivesse eu sido o que não fui,
Hoje era o mesmo projectado
António, Pedro, Lopo, Rui,
Quatro semblantes num só estado.

Mas serei, ainda que a morte
Me faça amiba, verme, pó:
Agulha a Deus, íntimo norte,
Resto de tudo uma alma só.

De eterno levo o tempo em frente
Como o boi leva o feno visto:
Mas ele é rês, e em mim vai gente:
Levado embora, existo, existo!

Vitorino Nemésio in "O Verbo e a Morte ",1959.

20/02/2013

«Pimenta à frente, e nus traseiros!... (*)»


(*) Foi a exclamação que tive ao deparar-me com o anúncio da nova exposição do Museu Leopoldo em Viena d'Austria... Após de há uns tempos atrás ter lido o poema do Alberto Pimenta que aqui reproduzo.

6

chama-se Tim
o homem
em exposição no museu
e adormece
depois do intervalo
do almoço

acorda-o
o vigilante
há um potencial comprador
que o quer ver
e ele acorda e
estende a língua

mas o interessado
não quer a língua
manda baixar as calças
quer ver o acabamento
da tatuagem das costas
que por morte do homem
é o que está à venda
com a pele das ditas

assim reza o contrato
talvez hoje ainda não
amanhã poderão ser milhões
para os artistas
Tim
o que forneceu
e Wim
o que adquiriu
grande gesto
aquela tela viva
que agora expõe no
L’
ouvre
mas ouvre o quê

a arte abriu
nos graffiti das cavernas
como abre
nos muros de hoje

nos museus
estão bens
da economia financeira
nem âme vivante

se além da pele
abrirem a cabeça destes dois
encontram um neuromealheiro
em forma de neuroporca
recém-parida

está bem
a arte de museu
foi até há pouco
carne à venda

por que não há-de sê-lo
outra vez

Alberto Pimenta, 
“De Nada”, pp28-29, Boca – palavras que alimentam, Lda., 2012.






info da expo: 


16/02/2013

Sena dizia: a «Poetaria»...


cinco

poetria
sempre a poetria
a delicada hora da poetria
de preferência antes de jantar
porque a seguir
poetria bebe do fino
e depois às vezes
não sabe o que diz

de qualquer modo
a poetria
a que embala
as donas de casa
e tem banca no templo
ou vice-versa

essa
faz parte dos ciclos
menstruais nacionais
até o ministério gosta dela
porque ela é boa
doce como o porco e
trata as alterações biológicas
como coisa do espírito santo

quem aprecia congelados
tem ainda o festival
da poetria
pode-se vir
há muitas disputas
em directo
e também em playback

ah
aquela vida de artista
solene e graciosa
viajando com a mala
cheiinha de poetria
e de mash-ups
mais um grande festival
promete muitos rabos e orelhas

alguém disse uma vez
que a poetria está a anos-luz
que é uma supernova
quer dizer
brilha muito
aos olhos de todos
mas na verdade
já não existe

de facto ela
ainda dá ares de existir
meia moribunda
porque a sua função
era ampliar o mundo
não
reduzi-lo ao tamanho de cromos

não
não é uma supernova
tem a vida artificialmente prolongada

o que nos momentos próprios
chegou a fazer faísca
agora só faz bocejar
como andar em topless
entre nudistas
tal e qual queridos

adorais a valeta
a dos outros
a doença terminal
a dos outros
a loucura
a dos outros
daí a vossa melancolia de classe
a vosso medo de não ganhar
maior que a vossa tristeza de perder

a nós outros
o tempo
passa-nos por cima

a vocês
parece que não passa
fica em cima como o de Proust
o que costuma acontecer
nessa posição
é sabido
e é vossa conquista

se restassem deste mundo
só os livros de poesia
os arqueólogos mais tarde
pensariam
que neste tempo
não aconteceu nada
a não ser afiar os cabos das facas

as vossa leituras
são a ver o mar
mas a vossa poesia olha o mundo
como um ecrã de televisão
com um grande vazio de árvores

os pássaros quando aparecem
pousam no chão

com Schubert no ouvido
uma elegia
ao pássaro em cima do rochedo
podia vir a calhar
com os ecos uns dos outros

era bom
que o pássaro voasse

o problema é esse mesmo
ele não levanta voo

quando passar este tempo
de sombra total
do corpo e do espírito
vocês partirão
sem haver no cais
a despedir-se
nem terão já a quem acenar
com o vosso lenço de papel
manchado
de tinta de choco

o que nos divide é um véu espesso
não
não podemos ser amigos


Alberto Pimenta,
in “De Nada”, Boca – palavras que alimentam Lda., pp. 73-76, 2012.

12/02/2013

«QUARTA-FEIRA DE CINZAS»...


Sonolências de palhaços,
Desvirgadas a chorar,
Olhos lentos, longos, lassos,
Serpentinas aos pedaços
Sonhos parados, cansaços,
Olhos de morta a cismar

– Pedaços de coisas mortas,
Esquecidos pelas portas –
Olheiras densas, cansadas,
Olhos de noites perdidas,
Serpentinas esmaiadas,
a baloiçar molemente,
E um frouxo riso murchando
Na boca de toda a gente.

António Pedro
in “Antologia Poética de António Pedro”, p.5,  Angelus Novus Editora, Braga, 1998.

06/02/2013

Novidades 50kg...


Título:  Bombo.
Autor: Rui Azevedo Ribeiro.
Editora: Edições 50kg
Local: Porto
Ano: Janeiro de 2013.
ISBN: 978-989-97891-3-5
Depósito Legal: 354145/13
PVP: €5
Tiragem: 100 exemplares

Pormenor de Bombo pág. 6

19/01/2013

«Este é o meu nome»...


No início não havia
mais que uma raiz de lágrimas          isto é, o meu país
e a distância era o meu cordão. Desatei-me
e no verdor árabe afundou-se-me o sol.
A civilização é uma maca, uma padiola,
                                                                              a cidade
                                                                              rosa pagã,
                                                                              tenda:

Assim começa ou termina o relato.
A distância era o meu cordão. Juntei os meus vínculos
eu, cratera astral,
e escrevi a cidade
(quando a cidade era uma caravana atracada e os seus lamentos
                                                                              fúnebres eram as muralhas da Babilónia),
escrevi a cidade

como ressumbra o alfabeto,
não para turvar as feridas
não para ressuscitar as múmias
antes para reviver as diferenças…          O sangue
une a rosa ao corvo          Para reduzir as pontes
e lavar os rostos tristes
exangues pelos séculos .
Escrevi a cidade

qual profeta que caminha até à morte
                                                               quero dizer, o meu país
o meu país eco
eco, eco…

A letra ba tirou o véu da cabeça
a xim é um montão de cabelos, fenece, fenece.
O álif, a primeira letra, fenece, fenece.
Ouço soluçar a ha.
enquanto a ra, como o crescente lunar,
afunda-se nas areias e com elas se funde,
fenece, fenece,
sangue coagulado que subitamente flui no deserto das palavras.

Sangue que tece desastres e trevas
Definha, desaparece,
esgotada já a magia da tua história!
Concede-nos o vosso perdão e a vossa graça,
ai, chifres das gazelas,
redondos olhos dos antílopes…

Vacilo, a cada instante te vejo, país meu,
                numa imagem.

Agora levo-te à minha frente, entre o meu sangue
e a minha morte: és rosa
                ou sepulcro?

Vejo-te, uma fileira de crianças arrastam
as suas entranhas, escutam e obedecem,
prosternam-se diante dos cadeados, mudam
de pele com cada golpe de chicote… Rosa
                ou sepulcro?

Feriste-me de morte, mataste as minhas canções
                És revolução?
                ou matadouro?
Vacilo, a cada instante te vejo, país meu,
                numa imagem…

Ali, com a tua história assassinada às costas,
vais perguntando à luz de choça em choça:

                «Disseram-me que tenho uma casa
como a minha casa em Jericó,
que tenho irmãos no Cairo
que a fronteira de Nazaré
está em Meca.
                Como é que se transformou o conhecimento
em grilhões
e a distância num cerco de fogo, em vítima?
Por isso rejeita o meu rosto a história?
Por isso não vejo nenhum sol árabe
no horizonte?»
Ah, se tivesse conhecido a comédia, a farsa!
(Podes chamá-la de sermão do califa, podes nomeá-la
vésperas ou Carnaval).
Têm dois maestros de coro:
um afia o gume à guilhotina
outro rebola no pó. Se tivesses conhecido
a farsa…

Como? Por onde resvalas-te
entre a nuca do decapitado e a lâmina da guilhotina? 

Adónis, in "Éste es mi nombre", pp.29-35, Allianza Editorial, Madrid, 2006
versão da tradução Castelhana de Frederico Arbós Ayuso por RAR.

31/12/2012

Pormenor de 'Cornadas' de Rui Caeiro in "Ruindade".

Pormenor de 'Cornadas" de Rui Caeiro, in "Ruindade".

Título: Ruindade.
Autores: Rui Caeiro, Rui Pires Cabral, Rui Pedro Gonçalves, Rui Miguel Ribeiro e Rui Azevedo Ribeiro.
Editora: Edições 50kg
Local: Porto
Ano: Dezembro de 2012.
ISBN: 978-989-97891-2-8
Depósito Legal: 372713/12
PVP: €7,50

27/12/2012

HERMES JÁ NÃO INTERPRETA...


9.

Para quê, perguntou ele, para que servem
Os poetas em tempo de indigência?
A torre, o cemitério, o devaneio,
Tudo existia já, mas cada coisa
Desconhecia as outras, nada então
Albergava um projecto nem sequer
Um desígnio amoroso. Eram apenas
Coisas: pedras, doenças e paisagem
Cuja condição viva se traduz
Pela exalação da humidade
E por alguma quase imperceptível
Elevação do peito. Sossegado
Parecia o mundo.
p.15

16.

     Ele conhecia
A Grécia pela ardência, pelo toque.
E ocultava de todos o terrível
Esplendor da mão da escrita,
O que lhe enchia as noites de ilusão,
Fazendo-o crer, fazendo-o derramar
Sobre o papel um chamamento como
Se chama um prisioneiro, suplicando
Que nos faça algum sinal.
p.22

17

Para que servem poetas se não podem
Nem delirar, se os textos do delírio
Serão tomados pelo seu contrário?
A bela rapariga dos cabelos
Cor de violeta, Atenas, onde está?
Quem escavará o monte até aos ossos
Para que dele ressurjam esses que
Nos deixaram sozinhos?
p.23


20.

E veio outra miséria, em interlúdio:
A miséria da interpretação
Que tudo trai. Os textos, os tão belos
Carregavam os sacos dos soldados
Como pães doces, abolorecidos,
Alimentavam quem? Persas, de novo.
Persas vindo do Norte, equivocados
Com o som do poema, com a ira
Formosa do poema.
p.26

23.

A terceira miséria é esta, a de hoje.
A de quem já não ouve nem pergunta.
A de quem não recorda. E, ao contrário
Do orgulhoso Péricles, se torna
Num entre os mais, num entre os que se entregam,
Nos que vão misturar-se como um líquido
Num líquido maior, perdida a forma,
Desfeita em pó a estátua.
p.29

Hélia Correia, “A Terceira Miséria”, Relógio D’Água, Lisboa, 2012.

16/12/2012

...

Entre o chio e a queda do pano, o sobressalto,
a antiquíssima verruga dita umbigo,
atávico regresso ao menos que um,
ao estrondo desmemoriado do silêncio.

Eram a sanguessuga e a toalha de rosto,
mas o poeta creu-as a gestação e o big-bang,
teve medo, tem sempre, e carcomiu-se
rente à folha A4, sua covardia.

O poeta é um feto assustado, um logro
rasteirando a sua espécie,
espécie de coisa, mais confusa que as reses,
e os ruídos são o seu Demónio.

Anseia, nostálgico, pelo silêncio que não lembra,
sossobra, passo a passo, a tudo o mais,
escrevinha, pouco lúcido, a derrota,
tosquia-se e morre com palavras nas mãos.

Miguel Martins