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01/08/2012


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                O tom do autor é um facto capital. Através do tom adivinha-se para quem se está a dirigir: imaginemos uma assistência pouco reflexiva, uma multidão, uma pessoa superficial imprescindível de deslumbrar, aturdir ou agitar; ou então imaginemos um indivíduo desafiador, ou as pessoas que praticam a arte de tagarelar, que tudo acolhem, captam, adiantam-se, ainda que anulem tudo quanto foi escrito.
                Poder-se-ia dizer que algumas pessoas jamais pensam na resposta silenciosa do seu leitor. Escrevem para os seres ávidos de admiração.
                O homem, o poeta entregue à sua inconsciência encontra nesta a sua força e a sua «verdade», conta cada vez mais com a estupidez do leitor.

p.30

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                O conceito de «grande poeta» produziu um grande número de poetas menores do que seria razoável esperar das combinações da sorte.

p.32

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                Não ser poeta, escritor, filósofo segundo estas idéias mas como se eu tivesse de ser antes contra elas.
                Até mesmo não ser homem.

p.33

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                Um livro não é mais do que a síntese de um monólogo do seu autor. O homem ou a alma fala por si mesmo; o autor retira algo desse discurso. A eleição depende do seu amor próprio: compraz-se com tal pensamento se odeia o outro.
                O seu próprio orgulho ou os seus interesses deixam acontecer e aquele que gostaria de ser elege o que é.
                Eis uma lei inevitável.
                Se tivéssemos acesso a todo o monólogo poderíamos descobrir uma resposta exacta para esta questão, mais categórica e que pudesse estabelecer a crítica legítima diante de uma obra específica.
                A crítica quando não se limita a opinar segundo o humor, as predileções e os gostos – ou seja, quando não está a falar de si mesma, sonhando como se estivesse a discutir sobre uma obra concreta –, a crítica ao julgar estaria a comparar as pretensões do autor e o que foi realizado. Enquanto o valor de uma obra se funda na relação singular e inconstante entre uma obra e algum leitor; o mérito próprio e intrínseco do autor constitui a relação entre ele mesmo e o seu desígnio. Tal mérito tem relação com a distância a existir entre ambos: são as dificuldades medidas de acordo com o grau de complexidade para acabar com essa empresa.
               

17/02/2012

Impressões...

Montagem fotográfica obtida segundo indicações de Álvaro Lapa, a partir da sua fotografia realizada por Luís Palma, 1994.


ÁLVARO LAPA IMPRESSÕES DA LUSITÂNIA

ENDOVELICO (deus do fogo?) (incerto). Deus dos curas (quase). Deus das curas. Esculápios dos celtas? Em pleno Alentejo em plena Mesopotâmia o Santuário de Endovelico ficava alto. Des Deus Endovellicus! Um deus alentejano. Onde está, antigamente estava / Aquele templo sumptuoso e rico / Do Deus Cupido, e que então chamava / O romance vulgar Endovellico[1]. Corresponda a Apolon ou não corresponda.

                S’Miguel da Mota. Alandroal 1890 ido. Homens animais etc. Pedras escavadas em forma de pia. Restos dum deus. Restos dos cultos. Era um E. Muito muito bom. Very very Gwell. Um monte santo.

                (Entrava o porco. Ou a porca. São deuses ctónicos. São deuses médicos.) Baudelaire não aproveitou. Um outro hemiplégico veio a curar-se. Que parece cão. Via nos sonhos. Sonhos da Terra. A Tenríssima curandeira. Segundo determinação avernal. Com inscrições versificadas. E todo o outeiro era sagrado. Misturas de arqueologia e de história. Que significa «segundo o que se Prometeu». Segundo o Yi-King. Espírito da música.

                Há uma encantadora historieta acerca de Confuncio. Uma vez o seu discípulo preferido ouvia-o tocar e ficara cheio de medo e disse-lhe: «O mestre hoje tem pensamentos de assassino.» Isto sucedia enquanto Confuncio observava uma aranha a tecer a teia à volta duma mosca, e por isso ele expressava o que via por movimento das cordas. A habilidade de seguir a música do mestre era tão grande que lhe entendia a emoção; mas não conseguia compreender a causa e apenas percebia que havia pensamentos de assassino misturados. Não era capaz de determinar era se esses pensamentos eram do assassino de homens ou de moscas. Música da terra. Música das transformações. Ocos dum órgão numa sala gigante sob o outeiro ouve-se os martelos. Soa por indigível. Ouvia-se nos sonhos. A voz própria boca de ninguém lábios de Yin ave de arribação. Ou uma pombinha ofertada a Endovellicus. Brûle san satyre. Que Gauguin leu «Mais depuis mon arrivée à Paris la vie que je mène est si peu gaie!» Vivam os canibais. De outro hemisfério. Leite de Vasconcelos. Olhando o Paraíso. Eu ouvi dizer – disse o galego Zoar – que é preciso cruzar os braços sobre o peito e as costas do doente, não sei se isso adianta para as crianças. Um paraíso barroco com o Minho. Floresta de folhas verdes como luz. Lago de Sol. Carne de papel.

Álvaro Lapa
In ‘A Phala’, n.º 39, Setembro, Assírio & Alvim, Lx, 1994.



[1] Braz Garcia Mascarenhas

11/02/2012

Pare, Escute e Olhe!...

M. S. Lourenço 
M.S. LOURENÇO «Ler não é olhar é ouvir»

    Embora o fim do culto da leitura tenha sido previsto já em 1962 por Marshall Mac Luhan no seu estudo sobre a decadência da Imprensa intitulado «A Galáxia de Gutenberg», o numero de filósofos da cultura que desde então profeciam o desaparecimento do livro e da leitura nunca deixou de aumentar. A designação genérica de «Pessimismo Cultural» tem sido justamente adoptada para caracterizar esta profecia, cujas origens no entanto foram formadas pelo Pessimismo Cultural de Nietzsche e de Oswald Spengler.
     Há na verdade um conjunto crucial de experiências que tem que ser interpretado e é justamente na constituição dos conceitos necessários à sua teorização que tem que residir o nosso primeiro esforço. Nos países industrializados, portanto herdeiros e actuais portadores da cultura de Gutenberg, foi introduzido o dever escolar, por meio do qual o analfabetismo se torna legalmente impossível, como sendo a pedra sobre a qual o edifício da Cultura deve assentar. Neles a rede de bibliotecas públicas e de instituições privadas às quais o público tem acesso não tem parado de crescer neste século. Também o número de livros portáteis e acessíveis em preço, de publicações periódicas quer especializadas quer de interesse geral tem-se gradualmente tornado também acessível e, nestas condições, o instrumentário de leitura nunca foi tão fácil de alcançar como no nosso fin de siècle. É perante este conjunto   de factos que a emergência do fenómeno do analfabetismo secundário, nos países com esta tradição cultural, constitui uma dificuldade teórica difícil de enquadrar e muito menos de explical satisfatoriamente.
     Duas posições são in limine possíveis. Em primeiro lugar é possível seguir o padrão de pensamento acima descrito como pessimista, e decidir que na verdade se chegou ao fim do culto do livro e da leitura e que estamos já no limiar da era de uma grande plebe televisual, a qual se caracterizará pelo culto de imagens visuais simplificadas, transmissíveis por um monitor de televisão ou de computador. Embora este pareça ser o actual curso dos acontecimentos, ele não tem no entanto o carácter de um desenlace fatal. A esta é possível contrapor uma segunda possibilidade segundo a qual o que está a terminar é apenas uma forma de leitura, a qual de resto só foi prevalente desde a invenção de Gutenberg. E como seria completamente absurdo começar por datar a Cultura apenas a partir da invenção de Gutenberg, é igualmente absurdo julgar que o fim do culto do livro e da leitura significa também o fim da Cultura.
     A invenção de Gutenberg tornou possível a forma de leitura a que poderíamos chamar «leitura visual», a qual consiste na impressão de que ter os olhos em contacto com a página escrita é a condição suficiente da leitura. Mas esta impressão, tal como a generalidade das impressões visuais, não é correcta, uma vez que a página impressa, quer de poesia quer de prosa, constitui apenas um conjunto de indicações, o qual de maneira nenhuma se pode identificar com a totalidade da mensagem a transmitir pela obra de arte literária. A página impressa está para a obra de arte literária na mesma relação que a partitura musical está para a     
obra de arte musical. E assim como só a realização sonora de uma partitura pode definir a obra de arte musical, assim também só a realização sonora de um texto impresso pode determinar o contorno definitivo da obra de arte literária.
     Assim torna-se necessário fazer uma nova reflexão sobre o acto de leitura até se chegar à ideia de que ler não é ver, mas é antes e acima de tudo OUVIR, de modo a que a leitura visual dê lugar definitivamente à leitura musical. Gostaria a título de ilustração mencionar alguns exemplos, os quais podem tornar esta tese ainda mais inteligível. Em Poesia existe uma gravação de Yeats de alguns dos seus poemas líricos. Para mim a experiencia musical inesquecível permanecerá sempre a leitura que Yeats faz do seu poema «I shall rise and go to Innisfree» onde talvez pela primeira vez fui conduzido à ideia de que o poema impresso «I shall rise and go to Innisfree» é apenas uma parte de todo o poema, a totalidade do qual só nos é apresentada através da realização sonora feita por Yeats.
     A divisão em si artificial entre Poesia e Prosa não conduz a uma relativização desta ideia, no sentido em que só em Poesia é que a literatura musical pode ter lugar. Existe também em disco uma gravação de uma leitura de James Joyce de um fragmento do capítulo de «Finnegans Wake», conhecido por Anna Livia Plurabella, em que a qualidade musical da leitura é de tal maneira esmagadora que se torna irrelevante colocar a questão de saber se afinal se classifica o texto como Poesia ou como Prosa, uma vez que é com certeza Música.
     Resta considerar o género de prosa narrativa, conto ou romance, em que a linguagem se move nos aparentes limites do   quotidiano. Este género pareceria à primeira vista inacessível a um tratamento musical da sua leitura: mas Thomas Mann provou justamente o contrário ao gravar a leitura da sua pequena narrativa «O Acidente Ródoviário», onde mais uma vez se torna irrecusavelmente óbvio que a narrativa impressa só narra uma parte da totalidade da história: só a voz e a elocução de Thomas Mann são capazes de reproduzir a totalidade da pequena obra de arte.
     Assim a palavra e o som podem ser postos em correspondência, de modo a que o significado intencionado pela obra de arte literária possa ser agora expresso pela massa sonora a que dá origem. O veículo do sentido deixa de ser apenas a palavra impressa para incluir também a sua realização sonora. Para se poder exprimir o conteúdo musical que jaz depositado na mancha impressa é necessário abandonar o preconceito, infelizmente tão enraizado, de que entre a fala e o canto existe uma contradição insuperável. Devemos justamente à Segunda Escola de Viena, e a Alban Berg em particular, ter-nos libertado deste preconceito e ter-nos deixado finalmente ver que entre a fala e o canto existe, ao contrário, uma progressão de possibilidades.

M.S. Lourenço
In ‘A Phala’, n.º 23, Abril/Maio/Junho, Assírio & Alvim, Lx, 1991.

01/02/2012

«Exemplum»

Eu acho que é cânone... Mas é capaz de ser uma minolta... de qualquer forma foi o Arnaldo Saraiva que a tirou em 1980 no Porto.


HERBERTO HELDER Por exemplo

                Ajudai-me potências lexicais, morfologias, sintaxes, tradições e memórias do dito, conversa do mundo. É fútil escrever: ilegível – e construir uma teoria lógica da ilegibilidade, uma tradição também, memória, «contexto», como eles designam, e decorre tudo isso do ilegível equívoco das transposições: transpor do instável e incontrolável para o estatuto controlável; com o pouco das cabeças quer entender-se a sensível cadeia das coisas que transitaram, representadas, traduzidas, apresentadas, das correntes da terra para as correntes do poema. Que recurso é este, que desentendimento, se não é só lateralidade, periferia, onde está o coração vivo e central? Rimbaud chega a Paris, o corpo é grande e os gestos não alcançaram ainda o tamanho do corpo, a voz para fora não possui ainda a melodia própria mas a voz interior já se casou com a razão do tempo, que poeta! O inadvertido Cros põe-se a inquirir: porquê tal palavra em vez de outra, e este ritmo porquê?, e aquela imagem? E o adolescente prodigioso, comendo sopa, não diz nada. Taciturno! Era um conversador péssimo. Talvez fosse possível explicar por aproximações, fornecendo imagens de imagens, metáforas de metáforas, criando um novo poema à margem do poema criado; toma-se isto por explicação? Talvez Cros o tomasse, mas Rimbaud, ele, não era explicador de coisa nenhuma: ardia, e lá estavam com perguntas sobre o fogo: se era de lenha, se de gás, se aquilo era papel queimado; e enquanto ele devorava a sopa não viam que se tratava do próprio, indefectível, simples, indeferível, ali à mesa, tão alto consumido das suas labaredas. Compreendem-se formas assim, há qualquer pequeno motivo para o grande motivo, essas formas podem ser mudadas? As linhas para onde pretendem transpor a ilegibilidade rimbaldiana, de modo a conduzi-la a uma vagarosa e minuciosa legibilidade, são as mesmas, sempre, para toda a poesia, e nessas linhas não se encontra escrita a música miraculosa nem a revelação nem o superlativo encontro das coisas nem a inteligência súbita do mundo. São formas ilegíveis; lê-las é a maneira única de ler: são as únicas legíveis para essa maneira única de ler. Claro, a metáfora extrema que é a realidade, a mais funda, a realidade fundada, fundamental, é uma imediata trama de conexões em nome, pois ao princípio era a acção do nome, o fiat lux faz a luz, o nome esclarece a coisa que alimenta o nome. As incroyables Florides rimbaldianas são as Floridas de uma cartografia assegurada pela aparição, a iluminação. Leia-se iluminadamente.
                Au fond ce que dit Rimbaud n’a pas de sens; je veux dire: de sens vers nous. Son but est prochain, immédiat, égoïste. En écrivant il ne travaille qu’à se débarrasser de son innocence. (Jacques Rivière)
                Disseram: não encontramos dificuldade em entrar nos poemas. De facto não encontravam. E eram desconhecidos circunstanciais, não tinha nada nas algibeiras biográficas, semióticas, psicanalíticas, ideológicas, simbólicas, nada, não eram acrobatas teóricos, vinham de longe, dotava-os apenas um talento virgem, a virtude de manejar perguntas que em si mesmas achavam respostas.
                Hermético. Coisa imemorial, esta, uma coisa insistida para arrumo de casas, anda-se pelos quartos, alguém tropeça nos móveis, cuidado, uma visita guiada. O hermetismo é um bónus à insolvência leitora. Explica-se. Não se explica a atenção mas a desatenção. Generosamente. Já foram tão abundantes que explicaram tudo. As explicações eram tão miúdas no seu delírio que a gente se inteirava na incalculável reserva e engenhosidade dos recursos ignorantes. A ignorância é muito mais brilhante que a ciência. Sabe muitíssimo mais.
                O sabido dos poemas era decerto bastante menos que o sabido dos explicadores, era igual ao que sabiam os cúmplices, os cúmplices sabiam entrar neles e andar e conspirar lá dentro com móveis e imóveis. Porque os entendiam exactamente dentro, entendiam-se com eles, por dentro, os cúmplices, rápida entrada na casa, portas abertas, desenvoltura pelos corredores adiante. Parece que só se pode dar razão ao entendimento imediato com razoes habitadas sempre por essa luz cardeal primeira, e essas razões são apenas parcimoniosos auxílios à inocência sabedora: escoras, apoios, razões da razão.
                Não cabe a um poeta «explicar-se», talvez não cabe a ninguém esse contrabando de uma zona para outra, pertence tudo completamente à zona de origem; nem existe legalidade nenhuma em deslocar os poemas deste lado para aquele lado, a poesia não é uma agência de transportes.
                Que um poema é ilegível numa pauta de legibilidade ou que pelo contrário é nela legível assemelha-se bastante à arrogância e violência políticas do poder de uma forma sobre todas as outras. O mais directamente legível nos poemas – sofram-no estes tempos de literalidade conversada – pode ser o menos legível na poesia.
                Os poemas são instantâneos, aparecidos. Não há chaves porque não há fechaduras. Os poemas estão lá. Reclamam apenas a soberania do seu território.
                Não se pede (pedir-se-ia antes que tivessem a astúcia de entender a espécie de entendimento pedido) que tornem aberto o fechado; os poemas hão-de permanecer fechados após todas as desocultações e hão-de ser abertos para quem neles entre como numa casa oferecida.
                Àqueles que os acharam assim, uma casa habitavelmente fácil, quis mover-se como gentileza protocolar a algumas pequenas curiosidades, disposição das dependências, os materiais, as vistas, as vantagens, circunstâncias da electricidade, do gás, da água, o funcionamento. Convidou-se por exemplo para assistirem à arrumação, à «montagem», um pouco como se assiste a uma montagem cinematográfica. Isto é uma moviola. Que não – responderam. Responderam que se assiste logo mesmo sem assistir, que essa montagem é inerente aos poemas, às coisas que estão neles, às coisas do mundo relacionadas em relações de poema, que a montagem é a sua coerência, o modo insubstituível e irrecusável de serem assim. Eram argumentos peremptórios. Vinham do coração do poema, vinham para fora, para onde era visível. Cá estavam os interlocutores providenciais de Mandelstam, os destinatários, vozes da voz, ouvidos do ouvido. Ao menos agora concordava-se com o mundo, o mundo concordava.
                Quando acabou de ler o manuscrito de Une Saison en Enfer, a atónita Viúva Rimbaud – como ela mesma firmava a correspondência – inquiriu do filho qual o significado daquilo que lera. Arthur respondeu que significava literalmente e em todos os pormenores o que lá estava. Bom. Ajudemos um pouco esta espécie de viúvas: para cada autor o significado de cada poema é literal. Se as viúvas puderem – que diabo!, alguma coisa hão-de elas poder –, encontrem essa literalidade. Suspeito de que nunca a encontrarão, porque ou se entende tudo como coisa óbvia, digo: a literalidade do autor coincide com a literalidade do leitor, ou não existe socorro para acudir à viuvez. Merda. Basta de conversas à beira-mar quando o mar está aí, invitation au voyage, o mar espera o bateau ivre.

Herberto Helder
In ‘A Phala’, n.º 69, Abril, Assírio & Alvim, Lx, 1999.

31/01/2012

Franco nas respostas que são perguntas...

António Franco Alexandre. Fotografia de Manuela C.

QUATRO PERGUNTAS E 5 RESPOSTAS A PROPÓSITO DE OÁSIS

                Parece um livro muito diferente dos anteriores. Parece-me mais explícito e dramático. Por outro lado, o título Oásis, sugere o deslumbramento de quem atravessou desertos. É um livro biográfico no sentido mais intenso da palavra?

                Não é nem mais nem menos biográfico que outro poema qualquer; ou são todos ou não é nenhum. O que talvez seja é mais obviamente narrativo: os meus poemas, mesmo os mais líricos, tendem sempre a ser fragmentos de narrativa são mais extensas, e mais explícitas e dramáticas, como tu dizes. Mas há vários personagens, várias vozes, e não me interessa identificar-me especialmente com nenhuma delas. Quanto ao resto, o livro poderia chamar-se Anti-oásis, o oásis é nele uma figura sobretudo negativa, não é? É o lugar da humidade viscosa, mortífera. Mas duvido que o contrário do oásis seja o deserto.


                O poema é longo com ritmos e vozes distintas, as estrofes, que quiseste bem intervaladas, revelam uma pulsão irregular e bastante sincopada. O poema surgiu impositivamente como monólogo inadiável, ou resulta da junção de diferentes poemas ligados por uma idêntica emoção?

                Foi primeiro pensado, de um modo genérico e formal, e depois escrito continuamente, progressivamente, durante cerca de um ano. Fui escrevendo, improvisando «dentro do tema», e alterando o que tinha escrito, sempre «de trás para a frente»: quando cheguei à última linha, tinha acabado. Mas a estrutura tripartida, simétrica, os paralelismos, estavam fixados à partida, e alguns «episódios» visualizados (mas não escritos). Foi como escrever um conto. A palavra «monólogo» desconsola-me, porque embora tudo o que se escreva tenha necessariamente também a forma da reflexão interior, a intenção é que se sintam claramente as «vozes distintas».


                O eu é neste poema arrebatado e central. Mas eu é aqui também carne, o corpo anatomicamente exposto: olhos, boca, mãos, coração, sangue, carne, corpo, lábios. Este livro indicará uma mudança na tua poesia?

                O personagem mais evidente, às vezes eu e outras ele, é de facto um bocado excessivo, enfático, apesar de andar sempre rodeado de pequenas vozes irónicas ou controladoras. E tem uma irritação, que eu partilho, para com as belas imagens do corpo, toda a fantasia lírica do corpo, que é instrumento de sujeição dos corpos. O sangue, a carne, o veio de hipocondria, são maneiras que ele tem, um tanto brutais, de lutar contra a sedução da imagem. O oásis é também isso, a imagem bem acabada, pelicular.

                Dizem-me sempre que mudo muito, de livro para livro; mas parece-me que a questão, e a linguagem, já estava no Sem Palavras Nem Coisas, e até antes. Eu não penso os meus livros como colectâneas de poemas, mas como poemas completos, necessariamente diferente uns dos outros, até porque de diferentes «géneros». Não posso escrever da mesma maneira um diário de viagem (Visitação) ou o retrato de um amigo (Os Objectos Principais), e assim de seguida.


                Leio o primeiro verso «recebe-me coração espesso de sangue» e o fim do poema: «o coração das folhas para sempre». Este Oásis é um poema de amor? De dissolução? Ou de sobrevivência? Ou principalmente «o verbo que se fez carne»?

                É a carne a fazer-se verbo, não é? Não sei bem. Os primeiros versos são uma invocação, talvez essencialmente uma invocação ao Poema, simbolizando pelas alusões a uma canção de Camões, a um poema de Pessoa… Quando acaba está onde começou, na promessa do poema, que é tudo isso que dizes, amor, dissolução, sobrevivência; se calhar nem chega a haver poema… Entretanto há um passeio por Lisboa, com um companheiro importuno, um diabo menor.

                Por que não me perguntaste nada sobre a presença da música, que é constante, mesmo obsessiva; não se nota? Esse é um dos problemas da leitura que me inquietam, porque há passagens que receio fiquem aberrantes para quem não ligue à alusão musical. Por exemplo todas as frases em inglês são letras de canções, ou títulos. E há ainda um objecto muito importante, o trombone. É preciso pegar num trombone e sentir o inverosímil e maravilhosamente necessário que é fazer música com uma prótese assim. E as conotações históricas do instrumento, umas fúnebres, outras mefistofélicas, outras…, interessam muito. Não quer dizer que todas as alusões ou referências sejam emblemáticas. Formalmente, desejaria cada vez mais fazer poemas como quem faz música, o que não quer dizer «escrever musical».

Entrevista a António Franco Alexandre
In ‘A Phala’, n.º 31, Outubro/Novembro/Dezembro, Assírio & Alvim, Lx, 1992.

20/01/2012

Para o e-leitor...

RICARTE-DÁCIO DE SOUSA «Um acto de amor e posse»
     Cem anos não tinham passado sobre a data de publicação da Bíblia de Guttenberg (1455) já os documentos chegados aos nossos dias apontavam para a existência, no decorrer do séc. XVI, de coleccionadores da letra impressa, a erguerem pacientemente as primeiras bibliotecas particulares.
     Poderemos salientar na época a livraria reunida pelo humanista alemão Willibald Pirkheimer (1470-1530), amigo de Dürer, cujos livros viriam mais tarde a pertencer à família inglesa dos Duques de Norfolk, e os três mil volumes de Jean Grolier de Servières, Visconde d’Aiguisy, Tesoureiro-mor e Embaixador de França (1479-1565) e talvez o maior bibliófilo de Quinhentos.
     Coleccionar é um acto de amor e posse. Exige discernimento e cultura e é incompatível com a ligeireza. Bibliofilia e bibliomania não são, logicamente, uma e a mesma coisa.
    Lembro-me com nitidez da entrevista concedida pelos escritores Roger Stéphane e Bernard Pivot, para um dos seu famosíssimos programas «Apostrophes» da televisão francesa. Stéphane, célebre autor do livro Portrait de l’Aventurier (1.ª ed. 1950) com capítulos inovadores e pioneiros sobre T. E. Lawrence, André Malraux e Ernest von Salomon, ao ser interpelado sobre os seus «amores» das primeiras edições, respondia: «Claro que sim. Amo as tiragens originais, mas atenção, só adquiro as raridades dos escritores que admiro». Neste ponto entra em cena a cumplicidade com o texto que lemos, a corrente estabelecida entre nós e o outro, e o rasgar de horizontes que podem modificar a perspectiva da vida.
     A bibliofilia poderá nascer nesse instante, na tentativa extrema de captar, através do objecto, no qual está inserida uma aventura do espírito, a sensação de partilha. O objecto em si (pelo menos na 1.ª edição) tem um formato, uma qualidade de papel, um aspecto tipográfico a traduzir certamente o consentimento ou a escolha do autor. Muitas vezes as tiragens reduzidas e o grau de raridade aumentou com os anos e a nossa vontade de posse, essa, centuplicou com o refrear do desejo!

   Por vezes as ironias e as leis de mercado, vingam-se na posteridade do mau passadio que o poeta suportou no seu tempo, e de forma implacável exigem o dízimo acumulado! Recordo o caso de Benjamin Péret, num viver (quase sempre) endiabrado e de risco, com mil carências permanentes e cujas primeiras edições (nas tiragens especiais) valem fortunas, estando apenas ao alcance de milionários. Um exemplar da tiragem especial, papel do Japão, do au 125 du Boulevard Saint-Germain, Paris, 1923, com desenhos de Max Ernst, chega facilmente aos dois mil contos! Muitas das suas «plaquettes» são autênticas obras de arte.
     Alguns dos companheiros da prodigiosa aventura surrealista foram grandes bibliófilos. Aragon. Eluard e Tzara. E o próprio André Breton possuía preciosidades (escolhidas a dedo) do Romantismo, e ainda traduções francesas (raríssimas) do Romance Gótico inglês dos fins do séc. XVIII.
     Na nossa terra falava-se nos quarenta mil volumes de Afonso Lopes Vieira. Ainda existem? Onde Param?
     Coleccionar pode levar ao desatino egoísta e feroz, e em certos casos limites, o desequilíbrio mental não anda longe. No séc. XIX português existe um exemplo medonho. Agostinho Vito Pereira Merello, espantosos bibliómano, reuniu, dezenas de anos a fio, sumptuosas biblioteca, na qual possuía peças únicas, e entre elas, o manuscrito inédito do poema de «Santa Maria Egipsiaca» atribuído a Sá de Miranda. Esta personagem, quando ilustres investigadores (Teófilio e Carolina Michäelis) lhe pediam para ver a obra, respondia: «Gosto tanto dela que não a mostro, seja a quem for!!!» Só depois da sua morte foi possível editá-la!
     Talvez a solução esteja no conselho do homem que mais admirei nestas lides, Pascal Pia, grão-senhor dos livros antigos: «O ideal, dizia ele, seria possuir três exemplares do que amamos. Um para o acariciar. Outro, para trabalhar. E o terceiro para emprestá-lo aos amigos, e é preciso que o mereçam!»

Ricarte-Dácio de Sousa
In ‘A Phala’, n.º 23, Abril/Maio/Junho, Assírio&Alvim, Lx, 1991.

19/01/2012



HERBERTO HELDER PHALA DE MÁRIO CESARINY


     Há trinta anos os jovens gafanhotos caíram sobre a poesia radioactiva de Cesariny, comeram dela, fulguraram dela um instante como pequenas jóias uranianas. Carbonizou-os o fogo roubado. Jazem agora nos arrabaldes. Quem não assistiu nem suspeita. Pode fruir-se aqui uma lição rápida: o poder que mantém o universo de um grande poeta é inacessível – não está nas palavras mas entre elas, não está nos modos mas atrás deles, não está na claridade mas na obscuridade («Pour être vrai il faudrait être obscur». Flaubert). Eis o abismo entre mestre e discípulos: o mestre é a zona de radiações que os discípulos devassam em revoadas estudantes. As ciências naturais, espécies e espécimes colhidos, trabalhos de campo e casa, desnaturam-se nos fundamentos: não há nada para aprender. O autor, que propôs «alguns mitos maiores alguns mitos menores», só tem a inexplicável sabedoria de ser o dono deles e da sua aliança oculta. No âmbito profano da escolaridade, números e ordens são intransmissíveis. A floração atómica Cesariny ergue-se no deserto, não é paisagem para visitas guiadas, trânsitos, aulas, mapas. Não se ensina nem aprende nela nenhuma botânica democrática. É uma paisagem bárbara, entregue à escarpada biografia dos dias e das noites. Está ali, arboreamente explosiva e irreal como uma radiografia, negra à volta, inabitável na sua massa de luz.
     Com que linhas te coses? Com as dos meus poemas.
     Ora vejamos: vinte e cinco linhas, por exemplo, ou vinte e quatro, é linha a mais para coser um poeta. Ou a menos. Sempre a mais e a menos. «Aceita este risco supremo: renuncia a compreender aquilo que escreveu». Com uma linha assim cosem Emily Dickinson – que se cosera, ela, com as linhas de mil e seiscentos poemas. «O vento agarrou nas coisas do norte, / Acumulou-as no sul, / Dobrou depois o leste sobre o oeste (…)» – tudo enfiado numa agulha opondo magneticamente, não apenas as quatro partes cardeais, mas o poeta a si mesmo num prodigiosa costura celeste.
     Recapitulemos.
     Eles pensam.
     Prefiro o pensamento de que não há forma de dizer porquê e o como e o para quê. Talvez possamos recorrer à paráfrase, uma larga frase contendo em si, como coração, a intangibilidade do poema. Maneira de abraçar? Ele pede para ser abraçado? O mal é que a frase derivada, abraçadora, não aquece nem arrefece, não substitui. E então pergunta-se para que serve? Pois apenas serve aquilo que substitui. Se o poema fica, inamovível, sobra a paráfrase. Só interessariam as paráfrases a poemas desaparecidos, ardentes homenagens, louvor, invocações que restituíssem os belos corpos devorados. Seriam poemas em segunda mão, no entanto animados pelo sopro hínico. Os discípulos são autores em segunda mão, mas falta-lhes o espírito que restabelece a vida. As falas ecoam as falas escutadas – nelas está constantemente
a aparecer o que não desapareceu. Só as vozes da aparição conseguem louvar: louvam a cerimónia da sua aparição. Porque uma voz é isso mesmo, aparição.
     Há trinta anos, reiterando, Cesariny aparecia onde tentavam que desaparecesse. Agora aparece nas férias epigonais. Territorialmente desimpedida, esta poesia é tão absoluta e solitária que o comentário vai pouco, e dentro: é a última de nome religioso. E foi ele, Cesariny, quem o disse: «Assim acaba este estranho poema, o último de nome religioso escrito pelo Autor». O poeta cose-se com as suas linhas, religa tudo em nome escrito. Qualquer nome é o último, possui a força da renúncia, despede-se de si próprio. E compreende-se como primeira canção, a do fogo, misteriosa voz do mundo que o autor autoriza. Anda por aqui o Demónio, nesta música, ouve-se no fundo quando a leitura se torna mestra de si como de si era mestra a poesia: absoluta e solitária.
     É o que posso dizer, assistindo.
     Em quantas linhas, vinte e cinco, vinte e quatro, não coso nem descoso? Trata-se de entender, e faço pelo melhor: entendo o que não entendo, obscura coisa, esta, entender, prática do leitor religado. Também anda por aqui o Demónio, em tamanha audição. Que músicas para que ouvidos! As coisas do norte no sul, leste e oeste um sobre o outro. Dito em palavra pura. Quando se habita a poesia, condena o ofício às fogueiras acendidas em todos os lados do vento até o corpo se transmutar em diamante, um corpo que as luzes executam, como sanciona o étimo: luciferinamente. A pena capital, sofreu-a Cesariny, o canto desnorteado.
     Pois o norte é isso, um nome que procura, que descobre, com as suas inspirações boreais, uma versão de águas e terras juntas, elementos, complementos, um estilo de ficar australiano. O canto é uma desolação de ar e fogo. O poeta, servo e senhor dos pactos, sabe-o bem. Perguntem-lhe nos poemas. Mas nunca finjam que ele respondeu. Porque a sua metáfora, a alquimia baptismal, não é uma resposta aos outros, mas uma pergunta a si mesmo. E se há nela qualquer sedução, veja-se como vestígio daquela dança propiciatória, sempre hipnótica, difícil, ofuscante – exercida para a melhor posse dos talentos. É inerente ao capítulo infernal da comédia, um abuso no mais enigmático dos círculos: a beleza é monstruosa.

Herberto Helder
In ‘A Phala’, n.º 9, Abril/Maio/Junho, Assírio&Alvim, Lx, 1988.