Mostrar mensagens com a etiqueta Literatura de Cordel. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Literatura de Cordel. Mostrar todas as mensagens

05/04/2012

É Quaresma serra a velha...



PARA-LOGO

Meu amigo Leitor, Leitor querido,
Não posso ser mais largo, nem comprido;
Esta obra jacosa aqui te entrego,
Usa de compaixão com o pobre cego:
Gaba-lhe este papel, dize que é bom,
Inda que lhe não aches tom nem som:
Bem vês quem quer que és, que esta obrazinha,
Para dar mil vinténs foi armadinha:
Põe em comprares já todo o cuidado,
Não fique o meu sentido hoje frustrado;
Se queres ver o fim que o papel tem,
Não te demores mais, dá cá vintém.
Bem o
                                                               Vale.

DESENGANO DOS RAPAZES

Aos vinte e dois de Março,
     Dia que vem na folhinha,
     Por sinal que á quarta feira
     Sempre cai êste tal dia.

Dia grande dos rapazes,
     Festa neles muito antiga,
     Com que as decrépitas velhas
     São por eles perseguidas.

Neste dia, como digo,
     Ajuntou-se a comitiva
     De galegos, e rapazes
     Para a função já sabida.

E lá pelas sete horas,
     Quando já anoitecia,
     Foi-se tudo alvoraçando
     Para aquela acção festiva.

Mas vindo uma certa velha,
     Tão velha, que tem de vida
     Mil e sete centos anos,
          E oitenta e seis por cima.

Em todos eles fenece,
     Mas nos mesmos se eterniza,
     Sendo Feniz de si própria
     Quando renasce da cinza.

Passa sim, mas não acaba,
     Morre porém ressuscita,
     Tantas mais vezes renasce,
     Quanto mais da morte avisa.

Quieta e mui socegada
     Modesta, grave, e pacífica,
     Tão humilde, que a si mesma
     É por pó que se decifra.

Magra, por cuja razão
     Parece inda mais antiga,
     Velha enfim tão descarnada
     Que se vê posta na espinha.

Agarrarão-lhe os rapazes
     Cheios de imensa alegria
     Tomaram-na entre dentes,
     Entraram a querer parti-la.

Agora pagará velha,
     Um, e outro lhe dizia,
     O trazer por este tempo
     Tão doidas as raparigas.

Pois quando a Quaresma chega,
     Porque a velha assim se apelida,
     Há tal que não larga o manto
     Até ser da Páscoa o dia.

Mas como me não importa
     Falar das alheias vidas,
     Do vexame desta velha
     Continuarei a notícia.

Agarrada, como disse,
     Esta tal santa velhinha
     Todos queriam serrar
     O vinte que a dividia.

Opôs-se a velha á sentença,
     Dizendo que ela não vinha
     Dar ao Mundo mau exemplo,
     Que uzava de boa vida.

Que quem a seguisse a ela
     Melhor a razão veria,
     Se podia dar reformas
     Não ocasionar ruinas.

Que era justa, e regulada
     Pelas normas mais precisas,
     Que inculcava penitências
     Nas demonstrações fingidas.

Finalmente, que ateimava,
     Ainda que serrassem viva,
     Observar a mesma fórma,
     Pois sabia o que fazia.

E como assim persistisse
     Sempre na mesma porfia,
     Gritaram, serre-se a velha,
     Corta-se-lhe o fio á vida.

E se para outro bairro
     Havia ser conduzida,
     Trouxeram-na mui contentes
     Para a Praça da Alegria.

Ajuntaram-se os galegos
     Dos duzentos das cantigas,
     Largaram sacos, e cordas
     Por ver da velha a folia.

As moças das colarejas
     Grandes, e mais pequeninas
     Só por entrarem na dança
     Deram que fazer nas gigas.

Outros basbaques tamanhos
     Como paus de virar tripas,
     Por verem da velha o buxo
     Tiveram alguns descaídas.

Ajuntou-se deste modo
     Toda esta comitiva
     Por quererem ver a velha,
     Não tendo a velha já vista.

Esperavam impacientes
     A serração prometida,
     Entrou-se a fazer-se escuro,
     Levantou-se a rapazia.

Principiou a tormenta
     Com chuva tão grossa, e fria,
     Que entrou a chover na gente
     Bancos, escadas, e pipas.

Começou-se a amotinar
     Com xocalhos, campainhas,
     Entraram a tocar a fogo
     A quanta lenha caía.

Entrou a serra a serrar
     Aquela que serra o dia,
     Um olho a velha ferrava,
     Outro olho aberto tinha.

Acabou de dividir-se,
     Quando as doze se cumpria
     Da meia noite da noite,
     De que enche a quarta na quinta.

Porem como se não fosse
     Fosse verdade, ou mentira,
     Partiu-se a velha partindo,
     E ficando sempre unida.

Mas inda naquele estado,
     Da gente mal pressentida
     Ouvi dizer se escondera
     E se puzera em fugida.

E pera deixar o susto
     Tão quebrada, e tão moída,
     Para arrastar um só passo
     Um’ hora lhe era precisa.

Dizem muitos, que abalara,
     Porém é certo que ainda
     A têm visto na Ribeira
     Por entre as celhas metida.

É certo sim, que escrevera
     Para o pontal de Cacilhas
     Que ia lá morar este ano,
     Mas que para o outro vinha.

Pois dizem que lá estivera
     D’outras vezes escondida,
     Onde tornava a inteirar-se,
     Melhorando das feridas.

Com que, por mais que lhe façam,
     Escusadas são profias,
     A velha há de cá tornar
     Para o ano o mesmo dia.

Acabou-se todo o conto,
     Dem-lhe gasto, e corra a sina,
     Passem-me o dinheiro ao cego;
     Pois que é cego não fia.