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07/08/2015

«OS SAPATOS»...

1
Enfio os mocassinos do meu tempo nos pés
e piso a senda lenda dos meus antepassados.
Hoje, sou eu que passo o cabo das tormentas nos cafés
quando vomito a Índia nos lavabos.

Se Egas Moniz foi herói
duma bravata bonita
eu sou quem paga o resgate
da história que me limita

A linda Inês dos meus olhos
foi reposta em seu sossego
não há hidroenergia
que ressuscite o Mondego
não há barragem que estanque
o nosso caudal de medo
não há sonho que levante
o sonho que é hoje infante
na ponta de um pesadelo.

Ai flores     Ai flores de lapela
flores de plástico e feltro
filigrana caravela
que estás cada vez mais perto
filha de Vasco da Gama
dado como pai incerto.

Partem tão tristes os pés
de quem te arrasta consigo
tão andados     tão modernos
tão vazios de sentido
tão queimados deste inferno
que têm as solas gastas
e o caminho puído.

Partem tão tristes os pés
de quem te arrasta consigo:
passeiam
     andam
          desandam
               param
                    perseguem
                         persistem
                              caminham
                                   calculam
                                        correm

doem     detêm     desistem.
Partem tão tristes os tristes
tão fora de chegar bem!

2
Lá vem o teddy-poeta
que não tem nada a dizer
filho família do mar
que lhe morreu ao nascer
parasita das palavras
que tem no banco a render
e se gastam, como a voz
dum povo que vai morrer.

Lá vem o tédio-poeta
que não tem nada a perder:
Vem numa hora de bruma
depois do café com leite
depois do banho de espuma
que lava o sal e o cheiro
a fingir que se levanta
dum leito de nevoeiro.
Chega de Alcácer Quibir
com escorbuto na alma
e morre, mas devagar,
neste mar-asma de calma.

JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS, “Resumo”, pp. 40-2, Lisboa, 1972.

05/06/2015

"OPORTOnidade"...


O TURISMO


Visitar este país
até à última gota:
O porco e o Porto    a bola e a bolota
o que é como quem diz
itinerar a derrota.

Tudo tem lugar no mapa
Paris    Washington    Moscovo
Em Itália    vê-se o papa
em Lisboa    vê-se o povo.

Welcome  Bienvenus  Salud  Willkommen  Viva
a sífilis saúda-vos    saúda-vos a estiva
desta carga de heróis em carne viva
nociva mas barata;
vindes matar a sede com a uva
beber o sumo de ócio que nos mata.

Desemborcais nos cais    desembolsais demais
mas não sabeis
as coisas viscerais    as coisas principais
deste país azul
com mais hóteis do que hospitais
talvez por ser ao sol    talvez por ser ao sul.

Aqui ao pé do mar    bordamos a tristeza
as toalhas de mão    as toalhas de mesa
que levais para casa            Souvenir
deste povo sem pão
que se cose a sorrir.

Aqui ao pé do rio    gememos a saudade
nosso fado submisso    nossa água a correr. 
Canção de mal devir        Souvenir    Souvenir
deste povo de trégua
que se canta a morrer.

Aqui ao pé do vento    forjamos o lamento
dum país que se vende a peso nos prospectos
tanto de sol ardente    tanto  de cal fervente
e uma nódoa de céu nos chailes pretos.

Aqui ao pé do fel    gritamos o segredo
do que parece fácil neste país de luz:

É apenas a fome.

É apenas o medo.

É apenas o sangue.

É apenas o pus.


José Carlos Ary dos Santos, “Resumo”, pp. 73-4, ed. Autor, Lisboa, 1972.