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15/10/2017

"TRÊS AMERICANOS



Donde vêm?
De toda a parte.
Para onde vão?
Para o dinheiro."

Eça de Queirós, “Notas Contemporâneas”, pag. 407, Livros do Brasil, Lisboa.

...

“Em Portugal há só um homem – que é sempre o mesmo ou sob a forma de dandy, ou de padre, ou de amanuense, ou de capitão: é um homem indeciso, débil, sentimental, bondoso, palrador, deixa-te ir, sem mola de carácter ou de inteligência, que resista contra as circunstâncias. É o homem que eu pinto [Os Maias] – sob os seus costumes diversos, casaca ou batina. É o português verdadeiro. É o português que tem feito este Portugal que vemos… “

Eça de Queirós,”Notas Contemporâneas”, pp. 405-6, Livros do Brasil, Lisboa.

30/09/2017

SOBRE O TURISMO…

“ - agora que percorrer o mundo já não é, como no século XV, empreendimento de grande confusão, alarido e dano. Com todos os nossos mares aclarados, nenhum tenebroso, e divertidos hotéis boiantes para os atravessar, providos de adega, de inglesas sensíveis, - milhares de sujeitos, constituindo já uma classe, possuindo já um rótulo, globetrotters (trotadores do globo), trotam, assobiam, dão vivamente a volta ao Mundo, com a facilidade, se não a filosofia, do fino De Maistre dando a volta ao seu quarto. Mas estes sujeitos trotam, «para se dissiparem, não para se acrescentarem», segundo a forte expressão eclesiástica – e no seu trote contínuo através dos continentes vão assobiando, porque não vão pensando."

Eça de Queiroz, “Notas Contemporâneas”, pág. 363,Livros do Brasil, Lisboa.

SOBRE VOTAR…


“Depois, a presença angustiosa das misérias humanas, tanto velho sem lar, tanta criancinha sem pão, e a incapacidade ou indiferença de monarquias e repúblicas para realizar a única obra urgente do mundo «casa para todos, o pão para todos», lentamente me tem tornado um vago anarquista entristecido, idealizador, humilde, inofensivo… Anarquismo mesmo vago; tristeza, mesmo filosófica; idealização, mesmo escondida não compõem um bom cortesão.”

Eça de Queiroz, “Notas Contemporâneas”, pp.359-360,Livros do Brasil, Lisboa.

17/08/2017

Biopolítica...

"(...) o escritor, há cem anos, dirigia-se particularmente a uma pessoa de saber e de gosto, amiga da eloquência e da tragédia, que ocupava os seus ócios luxuosos a ler, e que se chamava «o Leitor»: e hoje dirige-se esparsamente a uma multidão azafamada e tosca que se chama «o público».
(...) a ideia de leitura, hoje, lembra apenas uma turba folheando páginas à pressa, no rumor de uma praça."

Eça de Queiroz, “Notas Contemporâneas”, pág. 96, ed. Livros do Brasil, Lisboa.
 
"Quem lê hoje Homero? Quem lê Dante? Qual de vós, qual de nós leu a «Odisseia» e «Os Sete diante de Tebas», e Sófocles, e Tácito. e o «Purgatório», e os dramas históricos de Shakespeare, e até Voltaire, e até Camões? Decerto têm-se opiniões sobre o «nosso estilo de Tácitos», e a «ironia de Aristofánes»; mas essas sentenças transmitem-se, já feitas, para uso da eloquência, um pouco apagadas e cheias de verdete, como os patacos que vão de mão em mão."

Eça de Queiroz, “Notas Contemporâneas”, pág. 93, ed. Livros do Brasil, Lisboa.

14/08/2017

“Meu Querido Mês de Agosto”...


“Quando chego a Portugal, depois de um ano de Inglaterra – além de tanta, tanta, coisa que estranho – há uma coisa que me deslumbra, e outra que me desola: deslumbra-me as fachadas caiadas, e desola-me a população anémica. Que figuras! O andar desengonçado, o olhar mórbido e acarneirado, cores de pele de galinha, um derreamento de rins, o aspecto de humores linfáticos, a passeata triste de uma raça caquética em corredores de hospital: e depois um olhar de vadiagem, de «ora aqui vou, sim senhor, de madricice, olhando em redor com fadiga, o crânio exausto, e a unha comprida, para quebrar a cinza do cigarro, à catita.”

Eça de Queiroz, “Notas Contemporâneas”, pp. 38-9, ed. Livros do Brasil, Lisboa.

11/05/2015

O que já não é tão actual é o povo sustentar-se de sardinha (que atingiu preços gurmé)... E "povo" ter desaparecido para dar lugar ao termo estatístico: população...



“Aproxima-te um pouco de nós, e vê.
O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos, as consciências em debandada, os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direcção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido. Não há nenhuma solidariedade entre cidadãos. Ninguém crê na honestidade de homens públicos. Alguns agiotas felizes exploram. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos são abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta em cada dia. Vivemos todos ao acaso. Perfeita, absoluta indiferença de cima a baixo! Toda a vida espiritual, intelectual, parada. O tédio invadiu todas as almas. A mocidade arrasta-se envelhecida das mesas das secretarias para as mesas dos cafés. A ruína económica cresce, cresce, cresce. As quebras (ler: depressões) sucedem-se. O pequeno comércio definha. A indústria enfraquece. A sorte dos operários é lamentável. O salário diminui. A renda (rendimento disponível = à poupança) também diminui. O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo.
Neste salve-se quem puder a burguesia proprietária de casas explora o aluguel. A agiotagem explora o juro. A ignorância pesa sobre o povo como uma fatalidade. O número das escolas só por si é dramático. O professor é um empregado de eleições. A população dos campos, vivendo em casebres ignóbeis, sustentando-se de sardinha e de vinho, trabalhando para o imposto por meio de uma agricultura decadente, puxa uma vida miserável, sacudida pela penhora: ignorante, entorpedecida, de toda a vitalidade humana conserva unicamente um egoísmo feroz e uma devoção automática. No entanto a intriga política alastra-se. O país vive numa sonolência enfastiada. Apenas a devoção insciente perturba o silêncio da opinião com padre-nossos maquinais.”

Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, “Farpas 1” em Maio de 1871.

20/04/2013

Aparentemente é sobre a aparência de parte de uma farpela...




I


A.     E. STURMM, ALFAIATE[1]


Lisboa, Abril.

Meu bom Sturmm. – A sua sobrecasaca é perfeitamente insensata. Ali a tenho, arejando à janela, nas costas de uma cadeira; e assenta tão bem nessas costas de pau, como assentaria nas do comandante das Guardas Municipais, nas do Patriarca, nas de um piloto da barra ou nas de um filósofo, se o houvesse nestes reinos. Quero, pois, severamente dizer que ela não possui individualidade.
      Se V., bom Sturmm, fosse apenas um algibebe, embrulhando a multidão em pano Sedan para lhe tapar a nudez – eu não faria à sua obra esta crítica tão alta e exigente. Mas V. é alemão, e de Conisberga, cidade metafísica. A sua tesoura tem parentesco com a pena de Emannuel Kant, e legitimamente me surpreende que V. não a use com a mesma sagacidade psicológica.
      Não ignora V. decerto, que ao lado da filosofia da história e de outras filosofias, há ainda mais uma, importante e vasta, que se chama a filosofia do vestuário; e menos ignora, decerto, que aí se aprende, entre tanta coisa profunda, esta, de superior profundidade: que o casaco está para o homem como a palavra está para a ideia.
      Ora, para que serve a palavra, Sturmm? Para tornar a ideia perceptível e transmissível nas relações humanas – como o casaco serve para tornar o homem apresentável e viável através das ocupações sociais. Mas é a palavra empregada sempre em rigorosa concordância de valor com a ideia? Não, meu Sturmm.
      Quando a ideia é chata ou trivial, alteia-se, revestindo-a de palavras gordas e aparatosas – como todas as que se usam em política.
      Quando a ideia é grosseira ou bestial, embeleza-se e poetiza-se, recobrindo-a de palavras macias, afagantes, canoras – como todas as que se usam em amor.
      Por outro lado, escolhem-se palavras de uma retumbância especial para reforçar a veemência da ideia – como nos rasgos à Mirabeau – ou rebuscam-se as que pela estranheza plástica ajuntam uma sensação física à emoção intelectual – como nos versos de Baudelaire.
      Temos pois que a palavra opera sobre a ideia, ou disfarçando-a ou acentuando-a. Vai-me V. seguindo, perspicaz Sturmm?
      Tudo isto se aplica exactamente às conexões do casaco com o homem.
      Para que talham os alfaiates ingleses certas sobrecasacas longas, rectas, rígidas, com um debrum de austeridade e ressudando virtude por todas as costuras? Para esconder a velhacaria de quem as veste. Você encontra em Londres essas sobrecasacas, nos meetings religiosos, nas sociedades promotoras da moralização dos pequenos patagónios e nos romances de Dickens. E para que talham eles esses fraques audazes, bem acolchoados e ombros, quebrados e cavados de cinta, dando relevo aos quadris – sede da força amorosa? Para acentuar corpos robustos e voluptuosos a que se colam. Você vê desses fraques aos Lovelaces, aos caçadores de dotes e a toda a legião dos entretenus.
      Disfarçando-o ou acentuando-o, o casaco deve ser a expressão visível do carácter ou do tipo que, cada um, pretende representar entre os seus concidadãos.
      Quem lhe encomenda pois um casaco, digno Sturmm, encomenda-lhe na realidade um prospecto. E nem precisa o alfaiate que aprofundou a sua arte, de receber a confissão do freguês. As ligeiras recomendações que escapam, inquietas e tímidas, na hora atribulada da «prova», bastam para que ele compreenda o uso social a que o cliente destina a sua farpela… Assim, se um cavaleiro de luvas pretas, com uma luneta de ouro entalada entre dois botões do colete, que move os passos com lentidão e reflexão, e, ao entrar, pousou sobre a mesa um número do Jornal do Economista, lhe diz, num tom de mansa reprovação, ao provar o casaco: «Está curto e justo de cinta» - V. deve logo deduzir que ele deseja aquelas abas bem fornidas, flutuantes, que demonstram abundância de princípios, circunspecção, amor sólido da ordem e conhecimento miúdo das pautas da Alfândega… Vai-me V. penetrando, bom Sturmm?
      Ora, que lhe murmurei eu, em mau alemão, ao provar a sobrecasaca infausta? Esta fugidia indicação: «Que cinja bem!» Isto bastava para V. entender que eu desejava, através dessa veste, mostrar-me a Lisboa, onde a ia usar, sinceramente como sou – reservado, cingido comigo mesmo, frio, céptico e inacessível aos pedidos de meias libras… E, no entanto, que me manda V., Sturmm, num embrulho de papel pardo? V. manda-me a sobrecasaca que talha para toda a gente em Portugal, desgraçadamente: a sobrecasaca do conselheiro!
      Digo «desgraçadamente» - porque vestindo-nos todos pelo mesmo molde, V. leva-nos todos a ter o mesmo sentir e a ter o mesmo pensar. Nada influencia mais profundamente o sentir do homem, do que fatiota que o cobre. O mais ríspido profeta, se enverga uma casaca e ata ao pescoço um laço branco, tende logo a sentir os encantos dos decotes e da valsa; e o mais extraviado mundano, dentro de uma robe de chambre, sente apetites de serão doméstico e de carinhos ao fogão.
      Maior ainda se afirma a influência do vestuário sobre o pensar. Não é possível conceber um sistema filosófico com os pés entalados em escarpins de baile, e um jaquetão de veludo preto forrado a cetim azul leva inevitavelmente a ideias conservadoras.
      Você, pondo no dorso de toda a sociedade essa casaca de conselheiro, lisa, insípida, rotineira, pesabunda – está simplesmente criando um país de conselheiros!
      Dentro dessa confecção banalizadora e achatante, o poeta perde a fantasia, o dândi perde a vivacidade, o militar perde a coragem, o jornalista perde a veia, o crítico perde a sagacidade, o padre perde a fé – e, perdendo cada um o relevo e a saliência própria, fica tudo reduzido a esse cepo moral que se chama o conselheiro! A sua tesoura está assim mesquinhamente aparando a originalidade do país! Você corta, em cada casaco, a mortalha de um temperamento. E se Camões ainda vivesse – e V. o vestisse – tínhamos em lugar dos Sonetos, artigos do Comércio do Porto.
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Eça de Queiroz, “Cartas Inéditas de Fradique Mendes – e mais páginas esquecidas” Lello & Irmão Editores, Porto, 1973.




[1] Esta carta curiosa, pouco explicável e que certamente o seu destinatário nunca recebeu, encontrava-se incompleta, entre bilhetes sem interesse, nos papéis de Marcos Vidigal, poucos meses antes da sua morte, me entregou, sabendo que eu preparava esta colecção e um estudo sobre Fradique. Não me consta, de resto, que haja ou que houvesse em Lisboa um alfaiate do nome de Sturmm. – E. Q.