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11/08/2018

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É cada vez mais raro, mas pelos visto ainda acontece, eu encantar-me com um livro praticamente desconhecido. É o caso deste Baile da Graça – Narrativas Irregulares do escritor Bastos Guerra. Um livro que até teve uma segunda edição, o que é sempre louvável num tempo em que o comum da tiragem andava na casa dos milhares. É claro que é o mesmo tempo da maria cachucha em que se roga outorgar que havia expedientes para os ‘brasis’, apenas dois é claro: São Paulo e Rio, e as províncias ultramarinas – e que as tiragens também cobririam essa vasta geografia. Pois claro que havia, mas parece-me que isso só engrandecia o número de analfabetos e de iletrados de toda a estirpe. E quanto à suposta cobertura geográfica apostaria que se fosse consultar uma pauta aduaneira à cata dessa alfandegária estatística teria um choque. Adiante. 
Uma das curiosidades tipográficas deste livro é um retrato em negativo do autor com a segunte legenda: "Retrato do autor, em negativo, como convém numa época super-abundante em exposições, comemorações e literaturas coloniais"
Pelo que me é dado a entender não se sabe muito acerca deste autor. Não encontrei nenhuma entrada no Dicionário de Autores Portugueses que lhe fizesse referência. Porém admito que este Dicionário que possuo não é o melhor, digamos antes, o mais completo… E eu não estando aqui a fazer nenhuma tese não me sinto obrigado a um rigor que me impelisse a ir consultar outros que me estão menos à mão. Estou a falar por falar, como que dizendo: «ólha lá esta curiosidade que encontrei num alfarrabista». Não sei o local onde o autor nasceu, nem onde morreu, e para o efeito desta exposição não acho isso particularmente grave. Mas tive acesso àquele circunlóquio de parêntesis que lhe data a vida (1906-1965). E sei ainda que, tirando uma viagem de comboio ao Porto, quase todas as narrativas do Baile da Graça (e nada indica que se passassem no Bairro da Graça) contêm referências a ruas, cinemas, teatros e eléctricos que indiciam que o autor era um vivente e escrevente da capital. Foi também por este livro, publicado em 1935, que fiquei a saber que Bastos Guerra tem publicado um outro livro, de 1933, o de estreia, com o título “Cem Por Cento Falado: Contos bem-humorados” editado, em Lisboa, pela Livraria Guimarães Editores. E que teria também na calha, quatro outros, já com os títulos devidamente estabelecidos, que eram: Escala Cromática (Versos), A Batalha do Pacífico (Novela), Compasso de Espera (Contos), e Cinco Cidades – Paris, Bruxelas, Berlim, Copenhague, Rio de Janeiro – e que não sei se alguma vez chegaram a ter letra de forma. O que sei é que o Baile da Graça alia a tal série de narrativas curtas, shorts stories em calão actual, e que são uns textinhos bastantes espirituosos, sem serem picarescos, mas prenhos de uma rugosidade ilustrativa da época com umas soluções tipográficas e uns ‘àpartes’ requintados: cuja ideia de um ‘entrefácio’ será porventura a «mais bem» esgalhada e talvez um expediente inédito em língua portuguesa. É certo que, este conluio tipográfico e ‘àpartes’, não chegam a ser tão geniais, nem numerosos, como as que se encontram no Shandy do Laurence Sterne. Mas que à falta de melhores termos direi que são arrojadas e incomuns: isto atendendo, também, ao local e ano de publicação.


Dedicatória de Bastos Guerra ao próprio...
No Baile da Graça, Bastos Guerra, enfado do seu quotidiano, vai encontrar uns episódios à Recambole dando ênfase a personagens, a objectos e a situações com que se cruza. As descrições, quase sempre em tom confessional, surgem sempre num meio (e isto de certa forma é muito contemporâneo), sem princípios nem fins, as suas curtas narrativas ilustram sobretudo o lado cómico-caricato, e concomitantemente trágico, de quem tem de se amanhar com uma inata infelicidade magnética que atrai, particularmente, uma vasta horda de absurdos. E assim é de absurdo em absurdo, como quem salta de bailarico em bailarico, que estas narrativas são engendradas. Deixo-vos com alguns exemplos que achei mais pungentes: 
RAR

Um aviso ao Bibliófilos...

1) “O meu receptor de T.S.F. tem dois fios: um de ligar à corrente, outro de ligar ao retrato da minha velha tia Eufrásia. Dei essa aplicação ao segundo fio não porque as ondas hertzianas mostrem predilecção pela imagem da bondosa senhora. O caso é simples. Como não sou pessoa de exibicionismos, prescindi da antena exterior. O segundo fio serve de antena. Ora o retrato da tia Eufrásia está prêso à parede por dois camarões. No camarão do lado esquerdo há uma pequena fenda, onde se encaixa às mil maravilhas o contacto do fio-antena. A tia Eufrásia, virtuosa e falecida relíquia do tempo da mala-posta, colabora na eficiência da rádio-difusão.(…)”. Pág. 23.

Uma folha especialmente tipografada para dedicatórias com a observação: (Obs. – Para facilidade das transacções em segunda mão, a página pode ser cortada pelo filete.
2) “O vendedor considerou, ao entregar-me o recibo: «– Pode gabar-se de possuir um aparelho muito selectivo.» Respondi, rubro de prazer: «– Favores!» e, a partir dêsse momento, não perdi nenhum ensejo de elogiar, em conversa, a singular qualidade – embora ignorasse em absoluto o que queria dizer selectivo. Depois comecei a compreender: a selectividade consiste em preferir um certo número de estações e desprezar tôdas as outras. Pelo menos é o que sucede com o meu receptor. Não é como os vulgares aparelhos que vogam submissamente, ao sabor das ondas… Não! O meu receptor tem inclinações, é susceptível de simpatias e antipatias.(…)”. Pág. 29.
3) “(…) O mau piropo traduz audácia e a audácia é respeitável. O bom piropo revela amor e o amor é ridículo, dissolvente e perigoso. Criação abstracta, com a qual só lucram os folhetinistas, os editores e as parteiras, ninguém acredita nêle. Uns não o tomam a sério. Outros vão mais longe: combatem-no em nome da moral, embora, por contemporização certamente, apregoem, em nome da mesma moral, os benefícios do aumento da natalidade.” Pág. 44.
4)”O Diabo tece-as; e realmente teceu-as, na incarnação de Lily, caixeira da livraria defronte.
Essa pequena, chegada recentemente da província, não sabia nada de nada. Valia-lhe o nome para atender os compradores, que saíam sempre satisfeitos. Quando algum perguntava: «que tal é êste livro? Já leu?»
– ela respondia invariavelmente:
– Lily.” Pág. 48

5)”Os dicionários são verdadeiros acumuladores de palavras, de pó e de tédio. Junto aos débeis romances de capa amarela. Parecem atletas de feira, feios, suados e exibindo grosseiramente os bicípedes. Às vezes, os livros foram dispostos ao acaso na estante. De maneira que nos aflige ver a Colmeia de Sonhos filiforme colectânea de versos, encostada ao Novíssimo Dicionário Integral – tal como uma vagoneta perto de um guindaste monstro ou uma casota de cão ao lado de uma moradia apalaçada.” Pág. 58.

6)”As Escadinhas da Saúde são um fóco de doenças; o Chiado, sob forma de estátua, acocorou-se na Rua Garrett; e a coluna vertebral do Bairro Camões chama-se Conde de Redondo.
Santa Bárbara dista uma légua da Rua da Fé; na Praça dos Restauradores há apenas dois restaurantes; os Anjos ingressam no Registo Civil; Ferreira Borges incorpora-se em Infantaria 16; a Travessa da Palha, contra tôdas as aparências, nunca se atreveu a desembocar no Largo da Abegoaria; mas Alexandre Herculano, sem se importar com as aparências, vai desaguar na Praça do Brasil.
Andrade Corvo corta ao meio Fontes Pereira de Melo e as Picôas acabam com êle, decepando-lhe a cabeça; S. Paulo anda arredio do Bêco dos Apóstolos e absolutamente separado de S. Pedro de Alcântara, que por sinal não é em Alcântara; entre o Largo da Graça e a Praça da Alegria medeia uma enorme distância; a Rua das Pretas não pertence ao Bairro das Colónias; D. Pedro V – quem diria! – empurra Luiza Todi para o Bairro Alto.
Ruas do Arco há duas. A segunda é do Cego, para distinguir. Ruas de S. Mamede também há duas; uma é onde é, a outra é ao Caldas. O Bairro da Liberdade não tem nada que ver com a Avenida do mesmo nome. A Praça de Camões não é no Bairro Camões. O Parque Eduardo VII faz vida aparte do Bairro de Inglaterra.
D. Estefânia cohabita com Pascoal de Melo e é muito frequentada pelos cadetes da Escola Militar. No Bairro dos Actores não foi incluída a Calçada do Sacramento. A Rua do Salitre anda de rixa com a Rua da Fábrica da Pólvora: pelo menos não convivem. A Rua dos Remédios existe em Séca – e em Méca a Rua da Sociedade Farmacêutica. A Rua Capêlo é uma rua vulgar, calçada de basalto. A Rua Capelão, naturalmente por se tratar do aumentativo, entrou no folk-lore e está juncada de rosmaninho e de outros ornatos não menos típicos.
Na nomenclatura das ruas lisboetas só se depara com dois pormenores acertados: D. Pedro V está mais alto que D. Pedro IV e a Rua dos Correeiros é a estação preferida das mulheres de trottoir.” Pp. 62-64.

7) “– (…) Ia dizer isso mesmo e dar-lhe um exemplo. Numa das noites de Carnaval (na Gronelândia também há Carnaval) mascarei-me de «Sonho de uma noite de verão» e encaminhei-me para um dancing (na Gronelândia também há dancings). Seduziu-me uma beldade que por lá andava, vestida de Pierrette e despida de convenções. Convidei-a para dançar. Empreguei a fundo o meu reportório de galanteios. Ficou insensível e pediu-me quinhentas libras por uma noite de amor.
– Eis tudo?
– Eis tudo.
– É o que se pode chamar uma aventura extra-curta. Mas compreendo a sua renúncia, perante uma exigência dessa ordem.
– Não tão excessiva como parece à primeira vista. Bem vê: era uma noite polar, uma noite de seis meses… “ Pág. 71.

Baile da Graça – Narrativas irregulares editado pela Livraria Editora Guimarães & C.ª, Lisboa. Em 1935.
8) “Alexandre Barata, astucioso e resoluto «detective», recebe uma comunicação telefónica de D. Noémia Cordeiro, senhora da sua estima e consideração e excelso ornamento da vila de Tôrres Vedras. (…) Dez minutos depois, o meu dez-cavalos rodava a caminho de Tôrres Vedras. Adoro essa vila de azeite e vinagre, mas desta vez levava-me lá um móbil mais forte que o interêsse turístico. Puxei para a frente o boné de quadrados – eu uso um boné de quadrados para quebrar a monotonia dos óculos redondos – e deixei-me absorver pelas minhas deduções.
Em primeiro logar, o barómetro acusava uma baixa pressão na Islândia e fortes aguaceiros por altura dos Açôres. Descida de temperatura na Península Ibérica. Logo, o crime fôra cometido a sangue-frio e antes do romper de alva, o que era confirmado pela hora matinal da comunicação telefónica. Visionei tudo. Judite estava no quarto, dormindo o seu sono inocente e casto. Não houvera arrombamento – D. Noémia teria dado conta e sofreria também as consequências – donde resultava que o criminoso se introduzira pela janela, que era térrea.
Ora eu conhecia o local: só um homem com mais de um metro e oitenta de altura poderia galgar o peitoril de Judite. Como teria reagido a donzela? E como penetrara o criminoso? Com o pé direito ou com um «pé de cabra»? O «pé de cabra» não era necessário: um simples empurrão bastava para fazer girar os caixilhos. Portanto, o assassino entrara com o pé direito. E, portanto, era supersticioso.
As minhas deduções estavam já neste pé, mas eu fui mais além.
Ao que parecia, a jóven não gritara. O bandido fizera-a calar por um de dois processos: ou pela mordaça, ou pela gorgeta, que é também um meio excelente de fazer calar as pessoas. Inclinei-me para a mordaça – e bati com a cabeça no pára-brisas. Afigurou-se-me indiscutível que fôra empregada a mordaça. A seguir, o malfeitor apertara a glote de Judite: era poliglota. Obrigara a paciente a deitar a língua de fóra: era médico.
Soltei um urro de triunfo. Tinha a chave do trinco do enigma! Conhecia os sinais do bandoleiro: um médico poliglota e supersticioso, com um metro e oitenta de altura. E, sem sombra de dúvida, um especialista de garganta.Pp. 82-84.

9) “Os prefácios vulgarizaram-se de maneira atroz e representam verdadeiras armadilhas ao público. Nos prefácios, o autor, ou alguém por êle, procura criar no leitor uma expectativa favorável, sugestioná-lo àcêrca do mérito da obra. Isto é uma cobardia, uma cilada, um guet-apens.
Em conseqüência, resolvi suprimir o prefácio. Ainda pensei em remetê-lo para as últimas páginas. Ponderei logo a seguir que, nêsse caso, já não seria prefácio mas posfácio e ninguém se daria ao trabalho de o folhear sequer.
Estava naturalmente indicado um expediente médio, ou seja: o entrefácio.
Assim o entendi e fiz executar.
Inserto a meio do livro – numa altura em que o leitor já apreciou metade e, portanto, não é fàcilmente sugestionável – o entrefácio impõe-se como um processo honesto e digno de ser adoptado por quantos pretendem ter um contacto explicativo com o público.
Esta «Advertência» serve de entrefácio à 1.ª edição.
Mas não seria justo que os leitores da 1.ª edição – precisamente o mais fiéis, os mais dedicados, os mais merecedores da minha simpatia ficassem privados do prazer de saborearem a prosa que eu aditar a esta obra, em futuras edições (as quais, decerto, não se farão esperar) Para lhes não frustrar tão legítimo regalo espiritual, publico já os entrefácios à 2.ª edição e à 3.ª edição.
Cumpro simplesmente o meu dever. Não agradeçam.” Pp. 96-97.

10) “
Entrefácio à 2.ª edição

ou

Uma leitora

que me faz perguntas

Devo-lhe três cartas, mais polidas que a suas unhas de mulher civilizada, três cartas que antes parecem escritas com o polissoir do que com qualquer vulgar for life.
Póde mandar a factura – contra o reembolso da minha gratidão.
Porquê só três cartas, três simples fôlhas de papel? Gostaria que me enviasse cinquenta (não esquecendo os correspondentes envelopes), completamente em branco. Gostaria, não só porque o papel é excelente, mas ainda porque assim ficaria dispensado de responder às suas embaraçosas perguntas.
Começa por perguntar-me como escrevo. Como escrevo?! Sentado, evidentemente. Sentado a uma secretária em que há de tudo: rosas do Japão, o Anuário Comercial, o correio chegado de manhã e os jornais recebidos à tarde. Para dizer toda a verdade – V., querida leitora, merece que eu a tome por confidente – rectifico que não tenho rosas do Japão na secretária. Falei nelas para mostrar que não desdenho os pormenores requintados. E as rosas do Japão teem um nome bem soante que quadra à maravilha com a decoração do meu gabinete de trabalho. Guarde para si êste deslise de sinceridade. Não o repita a ninguém – sob pena de comprometer irremediàvelmente a minha reputação.
De pé, só poderia escrever nas paredes. Confesso que nunca senti atracção por semelhante género de escrita, nem quero difundir por êsse meio as minhas convicções cívicas, o meu amor à pátria, a minha repulsa pelos adversários ou os meus conhecimentos, aliás profundos, de anatomia e fisiologia.
No entanto, é-me muito agradável deparar com uma criança ou um adolescente garatujando nas fachadas das casas. Enternecem-me as obscenidades e o seu traçado primitivo, a gis ou carvão. Por duas razões: por tratar de um sintoma da progressiva diminuição do analfabetismo; e porque essa criança (ou êsse adolescente) será, quando crescer e aparecer, um consagrado autor de revistas, repletas da não menos consagrada «boa graça portuguesa».
Talvez seja uma falha do meu passado. Realmente nunca escrevi nas paredes! Por isso mesmo nunca serei consagrado autor, expressão com que se designa quási sempre a paternidade legítima de oitenta e seis traduções, quarenta adaptações e vinte e oito imitações – e a paternidade, absolutamente ilegítima, de dois ou três originais alheios.
Admitâmos, porém, que escrevo sobre o joelho, como V., querida leitora, imagina. Isso significa precisamente que não faço os meus contos com uma perna às costas! Uma posição exclui a outra e V., com certeza, não desejaria ver-me em horríveis contorsões, pouco propícias ao bom exercício das faculdades intelectuais.
Se tenho ilusões? Não. Perdi-as há muito. Sempre contei com o pior e sempre estive convencido de que são efémeros os bens dêste mundo. Ainda no berço, no período da amamentação, eu já sabia que êsse regime de favor não se prolongaria por muito tempo. Na escola, foi para mim ponto de fé, desde o primeiro dia, que não andaria eternamente em instrução primária. Não, querida leitora. Tenho perdido, nos zigue-zagues da vida, todas as ilusões benfazejas. Resta-me uma única. A minha única ilusão consiste em supor que não tenho ilusões.
Se gosto de perfumes? Decerto, principalmente do perfume do seu papel de carta. Mitsouko ou Narcise noir? Perdoe que a minha resposta rescenda a tinta de imprensa. Não é culpa minha. O original foi aromatizado au Dandy. Na verdade, gosto de perfumes e tenho o olfacto educado, o que me permite fazer classificações. Há mulheres que cheiram a wagons-lits – um mixto de banho recente, hulha, metal aquecido, corticite e ozone. São as «mulheres internacionais». Em compensação, alguns boudoirs de marquesas trescalam a repartições de finanças – cigarro apagado, poeira, oleografias e «Diário do Govêrno».
Perguntará que sei eu de boudoirs de marquesas. Dou a mão à palmatória: muito pouco. Não sou um escritor especializado no assunto. Tenho vários titulares na minha família: vários apreciáveis parentes possuem títulos da dívida pública – e que falam, dormem e amam como todos os outros titulares. Não basta?! Creio também que não. Mas seja justa: é apenas a segunda vez que me ocupo de marquesas e nem chega a ser uma reincidência. Quando, da primeira vez, escrevi num dos meus contos a frase «deitei-me sobre a marquesa», não tinha (juro-lhe) a intenção de provocar a emulação dos meus leitores – e sim, unicamente, a de relatar como me expús a uma observação clínica meticulosa.
E por hoje basta. Escreva-me na volta do correio, para me dar a matéria-prima da minha próxima resposta. Não lhe beijo a fímbria do vestido, porque seria romântico e contra higiene. Limito-me a beijar-lhe a fímbria da mão direita, o que é igualmente romântico e anti-higiénico. Que quere? Agrada-me o seu perfume. Mitsouko ou Narcise noir?” Pp. 99-101.

11) “É conhecida a minha simpatia pelos conferencistas. As conferências são um meio excelente de nos alhearmos das realidades durante um mínimo de cinquenta minutos. Enquanto o conferencista fala, a assistência medita naquilo que mais lhe apraz, o que nem sempre é possível conseguir nas circunstâncias normais da vida. De modo que é dupla a vantagem das conferências: para o orador, colheita fácil de aplausos; para o público, alguns momentos de bem estar e de isolamento espiritual. Já no «100 % FALADO», livro que corre mundo, incluí as Reflexões sôbre o casamento, palestra que tôdas as pessoas bem intencionadas consideram um modêlo no género. Continuo empenhado a facilitar o trabalho dos que pretendem contactar com a multidão por intermédio de uma voz quente e de um copo de água fria, no confôrto de uma sala. Os bons conferencistas, isto é, aqueles que linguarejam com êxito, nunca teem ideias próprias. Cedo-lhe portanto as minhas, sem reservas, antes com a melhor boa vontade.” Pág. 108.

12) “Em resumo: o homem não é lobo, nem cordeiro. É unicamente hipócrita. Desdenha do que lhe agrada e reprime o que realmente lhe interessa. Polígamo refalsado, só contra a vontade defende em público o matrimónio, que secretamente considera, talvez com razão, um aborrecido processo de trocar o amor por miúdos…
(…) Isto vem a propósito, neste momento em que as populações das cidades começam a ir diàriamente despir-se à beira-mar, para mais íntimo contacto com o oceano. Estamos na época do pudor. A sociedade policiada, descendente de Adão e do homem de armas, serve-se de um funcionário para verificar a compostura dos banhistas. É o cabo do mar.
Eu sou aquele oculto e grande cabo…
Espécie de espada de Damocles e ôlho de Providência, o respeitável funcionário ocupa-se em medir a área dos soutiens, fiscalizar a esquadria das alças e tirar o logaritmo dos calções. É singular, mas verdadeiro: o Estado dá ordenado, farda e municiamento a um delegado seu, para impedir que os cidadãos descubram livremente o umbigo. Mais valia criar uma licença de uso e porte de umbigo, já que é injusto proibir que cada qual disponha – cobrindo-o ou descobrindo-o – dêsse encantador ornato, que lhe foi dado pela Natureza. “ Pp. 132-133.