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14/08/2012

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Alexandre O'Neill, em Marco de Canaveses.

ALEXANDRE O’NEILL POR ANTÓNIO FRANCO ALEXANDRE

A meio do século passado já me apercebera, confusamente, que tanto ou mais do que eu estavam doentes as palavras. Uma terapêutica, a do alambique, levaria à meditação do branco sobre o branco, e nos melhores dos casos ao silêncio. A da ignição, se permitia revelações – nos teus bonitos, banais, olhos castanhos, o favor do seu «verde secreto» - carregava ainda as execráveis maiúsculas «Amor, Aventura, Poesia», e com elas a fantasmagoria do sagrado, a «vida mentirosa, mental». Outra começava em No Reino da Dinamarca, dura e feroz como a abrir nos fora dito: «diamante cruel». Supunha um diagnóstico: o destino como «solidão e mágoa», o «quotidiano “não”», a vida que «não vivemos», a vizinhança do grotesco normal, do vil decente, e ainda, contudo, o beijo do «jovem amor que recebeu/ mandado de captura ou de desejo». Sobretudo, par quem lia ou, pior, escrevia versos, mandava romper com «a poética poesia», afastar os «cabeleireiros de palavras, /pirotécnicos do estupor», lutar contra o «bonito» para fazer «bom». Noutra aparentemente diversa circunstância, quanta merecida e salutar bofetada nos dá O’Neill. Ir, ao contrário, buscar saúde à linguagem doente, no sarcasmo e no jogo, no sem-cerimónia e no impuro; e a meio, dizer serenamente algumas verdades decisivas, algumas emblemáticas: que o medo «tudo vai ter», ou o «remorso de todos nós». Mallarmé, – «a tristeza é que não há por lustro um», decerto sob o lustre – não se limitava, não se limita para nós, a reduzir o pobre mundo nosso às sobras do poema; diz-nos antes que a poesia pode e deve atravessar a realidade toda, até ao singular e insignificante, e ao impossível que lhe resiste, tipo mosca Albertina. Tornar-se livro o mundo, é tornar-se mundo o livro, e ainda, não coincidirem nunca. Com perdão das maiúsculas: dessa exigência, ética, Alexandre O’Neill é exemplo, que não segue só quem o imita.

António Franco Alexandre, “Editorial”, A Phala, nº88, Setembro, Assírio & Alvim, 2001.


«Grupo Surrealista de Lisboa»: (Em cima) Mário Cesariny, José-Augusto França e Vespeira;
(Em Baixo): António Pedro, Alexandre O'Neill e João Moniz Pereira, 15 de Maio de 1948.

«Já não corro atrás de miragens»

Chega-se a um escritor como quem parte de viagem. Eu nunca tinha falado com Alexandre O’Neill quando fui entrevistá-lo. Decidira a entrevista de repente, sozinha, pensando que um homem que escrevia aquelas coisas ou era muito igual a elas ou muito diferente delas. Certas entrevistas a autores muito admirados acabam em verdadeiros naufrágios da imaginação. O que eu sabia, com a certeza das evidências, é que era um grande, um tremendo poeta. Como diria Bocage no Nicola, «zoilos tremei, posteridade és minha». Nunca me passou pela cabeça que aquele poeta não fosse visto como um dos maiores por quem ama a letra e a língua portuguesa. No entanto, sobejava na reputação de O’Neill, no país dos zoilos, uma incidência brejeira e uma nota satírica à Tolentino, como se o grande Alexandre se esgotasse no dichote e no mote, no fraseado dos espertinhos e na facilidade do trocadilho e da aliteração. Para mim, O’Neill era o lirismo lusitano na excelência do seu desapontamento. E havia os amigos que falavam dele de outro modo, confirmando a admiração. O José Cardoso Pires e o Vasco Pulido Valente sabiam do O’Neill e tinham dele a opinião que eu tinha, o homem era brilhante. Lá fui, e encontrei dentro das paredes da casa na Rua da Escola Politécnica uma grande solidão, espessa como o tempo, um grande cansaço de viver de costas voltadas ao vento. A entrevista foi longa, transformou-se numa conversa, a minha curiosidade de quem começa a escrever aliada à curiosidade de quem encontra quem goste de escrever. Tínhamos os dois o ódio da «vidinha» medida em colherinhas de café, como dizia o Eliot. Trocámos poetas admirados, e lá vinha o Eliot entre eles, que eu considerava intraduzível para português, sobretudo o Prufrock. Ele ofereceu-me uma edição brasileira que trazia o Prufrock numa tradução que considerava menos má, quase, quase boazinha. O O’Neill não se enganaria numa destas. Regressei com o meu Prufrock tropical e a minha admiração intacta, mesclada de tristeza. Alexandre O’Neill tinha falado da morte e eu apreciava o tema, que desagua em melancolias de crepúsculo. Não soube logo que aquela seria uma dessas famosas últimas entrevistas. Ou talvez tenha sabido. O que sei de certeza é que tenho pena de não poder conversar com ele hoje, quando o tempo também sobre mim passou e mais coisas aprendi. Nunca se lê o mesmo poema duas vezes e o sofrimento ajuda muito. Roubei a O’Neill muita coisa, que é o que os escritores fazem embora cubram a nudez do acto com a palavra influência. Em Portugal Eça e O’Neill são os meus mestres. O título da minha coluna no Expresso, «A Pluma Caprichosa», é de um verso dele, a pluma caprichosa com que o destino escreve. Lembro-me que quando ele morreu, o Vasco Pulido Valente e eu peregrinámos pelos bares de Lisboa e apanhámos uma bebedeira épica em homenagem ao falecido, que sabia o significado de uma «torpe alegria».


ENTREVISTA DE CLARA FERREIRA ALVES, (21-9-1985)

Alexandre O’Neill tem andado arredado dos lugares da fama. Se o homem se confessa solitário e «meio-morto», o poeta – presente em reedições e traduções – está mais vivo do que nunca…
                Quiseram dar-lhe uma medalha, a Ordem de Santiago e Espada. Respondeu, por escrito, que não aceitava porque se havia entre ele e o país uma dívida, era ele quem devia. «Sou contra, era a forma mais simpática de dizer não». Vive num prédio descascado da Rua da Escola Politécnica, rodeado de livros, desordem e solidão. É poeta, publicitário nas horas não vagas. Chama-se Alexandre O’Neill e tem 60 anos de idade.
                A quem o ignore, quem o tenha por «blagueur», quem o considere um dos «maiores poetas vivos portugueses», na fórmula habitual. Não sei se é, se não. Sei que gosto muito de alguns poemas dele, palavras «escorraçadas como pobres amantes», «de um tempo sem amor nenhum». Citei, utilizando fora do poema, palavras do poeta. Um poeta que não publica há algum tempo, apenas reedita. Uma segunda edição (Imprensa Nacional), das suas Poesias Completas, em Junho de 1984, revista e aumentada. E a reedição (Presença) de Uma Coisa em Forma de Assim, em Abril de 1985. Porquê a entrevista? Espanta-se. Ele, que nem sequer «está na moda»… consta dos manuais que os entrevistados têm de fazer coisas actuais, dar nas vistas. No caso do Alexandre O’Neill não é preciso, porque a sua pessoa é discreta a sua poesia não. Entrevemos nela uma qualidade que se vai tornando rara. Não é também para isso que servem as entrevistas? Para entrever? Pressentir?
 Alexandre Pinheiro Torres e Alexandre O'Neill,
 Amarante, 1944.

                No seu livro A Saca de Orelhas, de 1979, há um poema chamado precisamente «Entrevista». Começa assim: «diz-lhe que estás ocupado / a entrevistar-te a ti mesmo / mesmo porque se não / o pões desde já porta / fora […]». Tem raiva às entrevistas?
                Não, não! Esse poema fazia parte de um filão de poemas que eu estava a explorar na altura, um contínuo… não tenho qualquer preconceito contra as entrevistas.
                De qualquer modo, não tem dado muitas entrevistas na sua vida. Como poeta, o que é que tem andado a fazer?
                Poemas, poemazinhos, e provavelmente vou publicar outro livro, para o ano que vem ou coisa assim.
                E os poemazinhos onde é que estão? Na gaveta, prontos a serem editados? Os seus poemas são de gestação rápida ou lenta?
                Estão a repousar. É fazê-los, guardá-los e esquecê-los. Mais tarde volto a pegar neles, porque o mais difícil é saber se se aguentaram ou não. A gestação é rápida, faço um poema em dois ou três dias, e só depois do pousio faço as modificações, o tal ofício de marceneiro, para usar uma imagem gasta.
                Não vai a lançamentos de livros (dos outros), não frequenta «soirées» nem tertúlias, não aparece em festas nem recepções… na televisão ninguém o vê há muito tempo, na rádio tão pouco se ouve alguma vez a sua voz. Não escreve longos artigos de opinião em jornais. Isolamento deliberado, reacção contra o «establishment» literário?
                Não saio quase nunca. Estou na segunda linha, não tenho nada contra o «establishment», continuo a fazer poesia e é em relação à minha poesia que se cometeram alguns exageros. O meu objectivo nunca foi fazer pouco, diminuir, satirizar, embora os poemas emanem de um certo número de trivialidades.
                Numa entrevista ao JL, ao Assis Pacheco, publicada há uns anos, você dizia que estava tão doente que nem podia caminhar contra o vento…
                Sim, sim, eu tive um enfarte há nove anos e o meu médico proibiu-me de caminhar contra o vento, aconselhando a virar-me e caminhar sempre no sentido do vento.
                E desde aí, ficou sempre a favor do vento, metaforicamente falando? Nos seus primórdios artísticos, gostava muito de caminhar contra o vento…
                Estou bastante mais a favor do vento, sim, o que não quer dizer que seja uma imagem de conformismo.
                Ultimamente voltou a falar-se na sua doença…
                Já estou meio morto. O ano passado tive outra vez problemas de saúde que me deixaram abalado. A partir daí tenho que inventar o meu próprio interesse pelas coisas. Alheei-me um bocado de coisas inutilmente cansativas.
                Alheou-se da vida? A vida de que é feita, afinal, a sua poesia?
                A vida interessa-me, o que não me interessa é a vidinha.
                A vidinha?
                Videirar, ou videirunha. O «viviter» francês, ou seja, ir vivendo.
                Desiludido consigo com os outros? Nada o faz correr?
                Já não corro atrás de miragens, como todos os jovens bem-intencionados. E quase não posso correr, tenho uma ligeira oscilação quando ando, até uso uma bengalinha.
                Dá um certo «panache»…
                Dá, dá imenso. Posso oferecer-lhe um café, sumo de laranja?
                Nada de bebidas alcoólicas, portanto. O whisky, a cerveja, que apareciam nalguns poemas…
                Só posso beber um copo por dia, de vinho branco ou tinto.
                Sempre me deu a impressão que gostava de cumprir itinerários lisboetas que incluíam os copos, os amigos… com que se entretém?
                Escrevo, leio. Até tenho um fraco que estou a ver se mudo, que é aquela crónica no Jornal de Letras, quero ver se deixo de a escrever, porque é uma espécie de rom-rom.
A crónica, exercida muito tempo, mata qualquer um, nunca pensou escrever um romance, um romance a sério, inteiro, e não pequenas prosas, textos dispersos?
Já escrevi, até escrevi seis, só que não os publiquei. Como dizia o Aragon, quando um cretino é automático é provável que também o romance seja cretino.
Então porque é que não se abalançou ao romance? Seria normal, dada a sua tremenda facilidade verbal, o seu gosto das palavras.
Romance? Nem pensar! Acho que não tenho jeito para isso. Escrevi um livro de crónicas. E depois, há muita concorrência.
Uma vez disse, publicamente, que não escrevia um romance porque não estava para contar a vidinha, que é o que fazem muitos romancistas portugueses. No entanto, o Eu, na sua poesia, é forte. O pendor autobiográfico, o inventário interior. Que Eu é esse, o do poeta? É, ainda, o do homem?
O Eu da poesia é o meu Eu crítico, o meu Eu inventado, embora esteja por vezes bastante perto do outro.
Tem o vício de escrever?
Realmente tenho. E é cada vez mais difícil, porque se vai ganhando uma certa consciência da dificuldade de escrever.
É metódico? Tem rituais de escrita? É capaz de se levantar a meio da noite para ir escrever?
Faço na cabeça e então é que escrevo. Não tenho método nenhum, mas levanto-me muitas vezes a meio da noite para ir ao papel, para não esquecer no dia seguinte.
Em criança, como é que era? Escrevia?
Era um chato, uma tristeza. Estava quase sempre em casa, era filho de gente que não me deixava sair à rua. Era um menino fechado, um bocado triste, e passava muito tempo à janela, bem perto daqui por sinal, na Rua da Alegria. É curioso porque morava na Rua da Alegria e ela provocava-me um sentimento de tristeza, quando via subir as carroças com os trabalhadores de aspecto cansado… interessava-me o espectáculo das pessoas.
A sua infância não repassou para a poesia.
Sim, é verdade, talvez porque não foi uma infância feliz, nem infeliz. Foi um tempo cinzento, sem relevos, não o distingo de outros.
Na adolescência, se continuava fechado e espectador de janela, devia ler muito. E escrever poemas de adolescência.
A partir dos quinze comecei a ler. Lia Júlio Verne, aqueles livros da altura que todos os rapazes liam. E escrevia verso.
Recordações particulares?
Andei em colégios particulares. Lembro-me que quando fui para o liceu, a partir do 2.º ano começou a segregação de sexos, meninos dum lado e meninas do outro. Uma chatice!
Já se interessava pelas mulheres?
Tenho alguma bossa de femeeiro? Bom, do liceu fui para a Escola Náutica, queria ser piloto, achava um modo de vida simpático. Só que durante as férias do 1.º ano fui à capitania de Lisboa pedir a cédula marítima para navegar como praticante de piloto sem carta e aí eles disseram-me: nem pense nisso, você tem uma miopia desgraçada! Arrumei o curso. É preciso ver que, burocraticamente, não havia inspecção médica para entrar para a Escola Náutica. Tinha que fazer a prova de que sabia nadar, e que via para nadar, e pronto. Por isso não fui apanhado. Até já escrevia a propósito: «Já andei para marinheiro mas pus óculos e fiquei em terra.»
Deve gostar do mar, no entanto ele quase nunca aparece na sua poesia, ou na prosa. Aparece o azul, mas é o azul do céu, aliás uma cor quase obsessiva em certos poemas…
Talvez haja aí um certo recalcamento, por não conseguir fazer do mar a minha profissão. O azul é, de facto, o do céu.
Já deu por si a analisar os seus poemas?
Oh, sim. Os poemas iniciais acho-os sujamente quotidianos, demasiado comprometidos com uma poesia que não é autobiográfica mas finge sê-lo. Acho, assim, uma coisa…
Por volta de 47 e dos seus 20 e poucos anos, já andava metido na fundação do Grupo Surrealista de Lisboa. Devia andar pelos cafés, as tertúlias, ser politicamente contra. Quando é que conheceu o Cesariny?
Conheci-o através do Lopes Graça que tinha um grupo coral chamado «Amizade», ligado aos movimentos juvenis da política. O Cesariny era membro do desdobramento juvenil desse coral. Nos andávamos pelo Barreiro, pelas colectividades, a cantar em grupo. Politicamente claro que era contra, era MUD juvenil.
O surrealismo, claro, era de importação. Mas os surrealistas já existiam há muitos anos. Porque é que estavam tão atrasados? O Cesariny já devia estar mais avançado do que vocês nesse campo…
Não, não. Fui eu que comprei a História do Surrealismo do Maurice Nadeau e disse que tínhamos de fazer uma coisa daquelas: Foi uma descoberta de 1948, através do livro e da antologia que ele publicou. Foi um alvoroço, o surrealismo surgia-nos exaltante e libertador. O Cesariny fez a descoberta na altura, embora já escrevesse umas coisas com muito humor, que eram uma «charge» ao neo-realismo. O nosso surrealismo era, aliás, uma reacção ao neo-realismo da época.
E que é que achavam do neo-realismo e dos seus mentores?
Uma chateza! O Mário Dionísio, o Cochofel! Na poesia não havia quase ninguém. Havia o Joaquim Namorado, que era fanaticíssimo. Havia até uma piada que se contava a propósito do Cochofel. Dizia-se que quando chegasse a revolução, o Cochofel chamava a criada e gritava: «Maria, traz a bomba!» E depois da criada, toda ataviada em renda, lhe trazer a bomba numa bandeja de prata, ele atirava a bomba pela janela… afinal de contas, o Cochofel até era um bom tipo.
Nesta sala há muitos livros em grande desordem. O que é que jaz nesta desarrumação?
Coisas muito boas. E tenho mais estantes assim, pelo resto da casa. Há de tudo, poetas americanos, franceses…
Poetas ingleses, não? É estranho, mas quando reli outro dia dois ou três poemas seus, havia um vestígio de Eliot, um afloramento de Prufrock.
Tenho-o neste momento à cabeceira, embora não possa dizer que seja um autor de minha cabeceira. Comecei-o a ler tarde, mais tarde do que é costume. Por volta dos 26, 27 anos.
Onde eu noto um paralelismo acentuado entre a poesia de O’Neill e a de Drummond de Andrade é na recuperação, num certo tratamento do que é pueril, transformando-o em sublime. Uma certa captação do real. Já sei que detesta que lhe apontem influências, mas é uma herança que não está em condições de negar, parece-me. Essa e a do Manuel Bandeira…
É verdade e também é verdade que nunca se disse publicamente em Portugal o quanto o surrealismo português deve a Drummond de Andrade. E ao Bandeira, que tenho a fraqueza de considerar um bom poeta.
Fraqueza?
Dele se disse que é um grande poeta menor.
E acha que esses rótulos dos sacerdotes da crítica metem na poesia devem influenciar a sua opinião? O que é, afinal, um grande poeta menor? Não é um rótulo?
Sim, tem razão, não passa de um rótulo, embora tenha vindo de uma pessoa amiga. Para mim o Bandeira é simplesmente um grande Poeta. Se há poetas menores, ele é dos maiores.
Acha que existem bons críticos de poesia em Portugal?
É possível, mas nunca vi. Às vezes há um acerto, é tudo.
Parece-me que está a jogar à defesa, a remeter… Ainda o «par delicatesse j’ai perdu ma vie»?
«Delicatesse» não há. Hoje passo tudo pela refinadora, é diferente.
Depura as palavras, as ideias? A espontaneidade (aparente) da sua poesia soa a falso. Quando calha, alia magistralmente a arte e a técnica, ou busca essa precisão, trabalhando o verso?
O verso é muito trabalhado, é um processo lento de dizer uma coisa. E agora estou cada vez mais exigente. É um trabalho minucioso, e mesmo quando parece desataviado, é um desatavio voluntário. Não acredito na poesia… bom… vamos lá a ser modestos… o que quero dizer é que a grande, a boa poesia, percebe-se logo. Desconfio do que é fechado, hermético, chamemos-lhe assim.
                Já se emocionou com um poema seu, muito depois de o ter escrito?
                Tantas vezes! Há poemas privilegiados em que isso acontece com certa frequência. Também acontece o contrário, aqueles que são falhanços. Há um poema sobre fogos-postos de que gosto muito, considero-o um dos mais bem acabados que escrevi até hoje. E emociono-me.
                O que o emociona é, em última análise, a forma, não o conteúdo. E a memória, a recordação de momentos?
                Sim, emociono-me por estar bem feito. Claro que há poemas que têm a ver com memórias de situações que não tinham nada a ver com o poema em si mesmo, e são poemas de amor. Também aí pode existir emoção.
                Saindo da emoção para o calão. Muitas vezes lhe é atribuído um conhecimento profundo da linguagem lisboeta de rua, do «bas-fond». Chegou mesmo a inventar palavras de calão, como Onassis, para dizer dinheiro. Frequentava os lugares verdadeiros dessa linguagem? Era uma pessoa da noite?
                Era mais fama do que outra coisa, embora essa do Onassis seja verdade, também não pegou. Nunca fui pessoa da noite, frequentador de tabernas ou alfurjas, e os que as frequentam devem estar mais dentro do assunto do que eu.
                Acredita em gerações?
                Não acredito.
                O tempo é uma das abstracções mais terríveis que permitem os seus versos. O que é, aos 50 anos, o tempo? A sua passagem?
                Até há pouco tempo não dei pela passagem do tempo, fui vivendo, fiz do corpo alavanca sem pensar no futuro. Há pessoas que passam a vida a pensar na reforma, aos 20 anos já pensam na reforma, aguentam empregos terríveis para chegarem lá. Há muita gente com essa mentalidade de funcionário público, nunca foi o meu género. Também nunca fui poeta de pensar no meu currículo. Recusando estas coisas, cheguei aqui.
Acha que actual poesia portuguesa foi invadida pelo academismo?
Nitidamente. Os académicos apossaram-se da poesia portuguesa e puseram-na ao serviço do currículo.
Faz sentido a frase de que Portugal é um país de poetas?
Nunca fez sentido para mim. A não ser se se identificar poeta com distraído, lunático. Lá que somos um país de lunáticos, somos. No outro sentido, nada.
Lê poetas portugueses contemporâneos?
Poucos. Só dois ou três. O João Miguel Fernandes Jorge, o Herberto Helder, o Eugénio de Andrade.
Nunca se sentiu injustiçado, em relação ao seu valor poético? Não acha que o puseram de parte apesar da sua qualidade?
Sei que não estou na moda. Pode ser sem intenção, talvez certas ideias tenham sido, por mim, mal desenvolvidas ou expressas, e por isso não foram compreendidas e tornaram-se desinteressantes para os outros.
Será que falhou, aí, um certo trabalho de auto-promoção? A moda precisa da auto-promoção hábil, do «marketing»
Não quero fazer acusações. As pessoas que me lêem gostam dos que lêem e algumas têm surpresas agradáveis: olha, aquele fulano é um poeta! E ficam a conhecer-me de novo.
Como é que é conhecido?
Como «blagueur». Um tipo com graça. E é o contrário porque se graça existe, ela é um bocado amarga. Até me arrumaram apressadamente com o Tolentino, o Junqueiro.
Quem o arrumou?
A crítica. Voltamos, simpaticamente, à crítica.
Arrumaram-no bem ou mal, em sua opinião?
O Tolentino era um grande poeta, não me importava de ser parecido com ele mas não sou. No tempo da crítica impressionista havia a mania de estabelecer parentescos. As pessoas tinham de ter pais, avós, ascendentes e descendentes.
Prefere ser bastardo ou filho legítimo? Se tivesse que escolher um «pai» quem é que escolheria? Cesário Verde?
Gostava do Cesário, sem dúvida.
Digo-lhe duas palavras e quero que responda o que lhe vier à cabeça, automaticamente. Intertextualidade…
É muito importante saber praticá-la inteligentemente.
… psicanálise…
Não acredito muito. É acomodatícia, o seu papel foi acomodar as pessoas a uma sociedade intragável. À parte isso, deve ter tido certo valor terapêutico.
A sociedade é intragável?
Sim, porque nos propõe fazer consumir coisas que, conscientemente, não faríamos nem consumiríamos. A vida na cidade, os autocarros a transbordar, os refrescos de anúncio…
Essa é engraçada vinda de alguém que ajuda a vender coisas, que inventa mensagens de consumo. Você trabalha em publicidade. Já se viu a consumir algo que tivesse proposto publicitariamente?
É boa! (Risos). Não, acho que não.
Como muita gente que não pode viver exclusivamente da escrita, teve que se arrimar a uma profissão onde as palavras importam. Porque escolheu a publicidade e não os jornais por exemplo?
Não sei como fui lá parar mas fui. Fiz-me aprendiz de publicidade porque era uma maneira pouco trabalhosa de ganhar para o sustento. Talvez fosse essa a razão. Já lá vão 30 anos.
Não será essa mentalidade semelhante, afinal, à do funcionário público a sonhar com a reforma? Você sonhava com o fim do mês?
Não. Com o fim do mês sonha toda a gente. E mudei tantas vezes de empresa e de trabalho, de forma tão livre, que nunca tive a proposta da reforma no final do túnel.
Tem ou não direito a uma reforma?
Deve dar para morrer alegremente.
Ganhou dinheiro com a poesia?
Sim, em Itália, e aqui, na Imprensa Nacional.
O que é mais importante: a relação com os outros ou com as palavras?
A relação com as palavras é fundamental e a relação com os outros depende da relação com as palavras. Mas não sacrifico um jantar com um amigo para acabar um soneto.
E um jantar social?
Nunca.
Não o convidam?
Não vou.
Tem muitos amigos?
Não, para aí um ou dois.
Podemos falar de solidão?
A procurada é boa, a não procurada às vezes é chata.
Faz parte da mitologia de criação artística, a solidão…
Estar sozinho não é a solidão. Às vezes está-se sozinho porque se quer e isso pode dar um bom monólogo, uma meditação. O facto de eu viver só é que, às vezes, é chato e vou até ao barbeiro da esquina só para falar com alguém.
Não usa o telefone? Nunca ficou agarrado ao telefone, à espera que tocasse, a quebrar uma ansiedade solitária?
Já fiquei, mas ele não tocou.
O que é a velhice?
Não é nada, não a sinto a não ser nas limitações que o estado de doença me impõe. Com alguns cuidados evita-se.
E o medo da morte?
Curiosidade, como é que isto tudo vai desfechar.
Não se detecta no poeta O’Neill qualquer misticismo, panteísmo, nem mácula de sentimento religioso. Porquê? É um ateu puro e duro?
Não possuo qualquer sentimento religioso. Não sou ateu porque nem sequer me defino em relação a uma crença qualquer.
Teve uma educação religiosa tradicional, católica, com missas e comunhões?
Primeira comunhão, comunhão solene, baptismo, tudo. Não sou contra, acho que até fez bem. Não se tornou repressiva e aprendi a detestar a hipocrisia.
Já esteve à beira da morte. Apelou a quê ou a quem?
Ao bom senso. Lembro-me que senti que o universo minguava, as preocupações do dia a dia desocupavam a cabeça e ficou, só, a espera… Mais um bocadinho de vida, ou então de morte.
Acredita na imortalidade literária? E se não acredita em que é que acredita?
Não acredito. Acredito naquilo que escrevo.
Isso confere-lhe algum sentimento de superioridade? Já se sentiu muito inteligente, ou até genial?
Nenhuma superioridade, mas já me senti muito inteligente. Genial, nunca. Se posso fazer a classificação de mim mesmo então sou o grande poeta menor a que me referi há pouco.
Já utilizou a sua facilidade verbal contra alguém, numa disputa? Ou para ferir alguém?
Ao longo da vida, tenho-o feito e algumas vezes com arrependimento. Dizer uma graça pode significar uma crueldade para com os outros.
Componente lírica, componente satírica, qual a mais forte?
Ambas são fortíssimas. Uma vez um padre jesuíta, o padre João Maia, escreveu que eu tinha um lirismo envergonhado.
Leio-o há muitos anos. Agora, parece-me só um entrevistado envergonhado. É capaz de me dizer que se acha um bom, um grande poeta?
Acho! Pois sou, sou um bom poeta.
Pagou algum preço para chegar aqui?
Incomunicação a nível do quotidiano.
Tenho na minha frente um publicitário incomunicado e um satírico triste. Como é isto?
A lei. Os que funcionam no reino do riso, do humor, são todos muito tristes. Não conheço nenhum humorista que seja alegre na vida de todos os dias, exactamente por ser humorista.
Vai ao cinema?
Rarissimamente. O cinema foi uma arte que se traiu, talvez por ter de ser também uma indústria. Traiu o que prometia com um Griffith, com tantos outros. O Spielberg, aquele dos Salteadores e do ET, apresenta um produto comercial muito bem vendido e muito imaginativo e não mais.
E televisão, vê? Viu os debates políticos?
Vi. Vejo televisão. Achei aqueles debates melancólicos.
Fé política, alguma?
Tenho uma fezada. Tendo para uma coisa que todos execram – esperemos que se diga execram – e que é o PS. Com todos os seus defeitos. Até fiz um «slogan» que andou por aí: ele não merece, mas vota no PS.
Diga outro «slogan» famoso cuja paternidade lhe pertença.
Há mar e mar, há ir e voltar.
Devia ter ganho uma fortuna com esse…
Devia mas não ganhei. Estou a fazer diligências junto da Sociedade de Autores para ver se ao menos de 1983 para cá, consigo alguns direitos. O «slogan» até já consta de um dicionário de provérbios portugueses. Mais uma prova de como eu sou desarrumado e nunca penso nas consequências, a não ser quando escrevo.
A tradução da sua poesia em italiano como foi, acompanhou-a de perto?
Apareci numa prestigiosa colecção da Eunaudi, que tinha o Cavafy, o João Cabral de Melo Neto… mas a tradutora, a certa altura, não suportou que eu interferisse e acabou por traduzir «o dito está dito» por «il díto resta díto». Este «díto» não era o meu «dito» mas «dedo», veja-se a confusão. Noutro ponto, onde eu dizia «não deve a literatura ao absinto em quantidade mais que ao tinto», ela traduziu tinto por tinta de parede. A do dedo era óptima, cada vez que eu ia a Itália cumprimentavam-me com o dedo.
Tem filhos?
Um de 25 anos e um de 9, que é o meu «neto».
O mais velho gosta do seu trabalho poético?
Lê e gosta. E gosta que eu lhe leia certas coisas. Outro dia queria por força que lhe lesse a Morte à Tarde, do Hemingway.
Foi você que lhe passou os livros para as mãos, na adolescência? O Hemingway, entre outros?
Sim, passei-lhe o Cabral de Melo Neto, que ainda hoje o faz ficar espantado.
Gosta de Hemingway, hoje?
Conforme a fase. Tenho um poema em que digo género Hemingway, fase kitsch. O Velho e o Mar acho um horror. Mas tem coisas muito boas. A aventura, o cabotismo, são recuperados.
Era capaz de dar um tiro na cabeça, como ele deu, quando achasse que já não conseguia? O suicídio é uma vocação eminentemente poética, pensa o vulgo…
Não vejo grande mal em uma pessoa poder contribuir para a sua morte decisivamente, quando nada resta a fazer. O Koestler e a mulher fizeram isso. Acho que era capaz, sim.
Há na sua poesia, disfarçadamente às vezes, outras não, uma preocupação da justiça social, com o verso a servir de factor corrector dessa situação. Os pobres incomodam-no, entristecem-no?
Tenho má consciência. Dou sempre esmola. Pode ser o maior bêbado, dou sempre esmola para os copos dele, acho que tem direito aos seus próprios vícios e a alimentá-los.
Estas perguntas parecem «fait divers» mas faço-as porque quando no romance do Kundera, de que agora todos falam e todos retiram citações e ilações, ele teoriza sobre o «kitsch». Os portugueses acharam fabulosa essa teorização do «kitsch» mas, na sua poesia, você fez notáveis comentários do «kitsch» nacional. E tratou-os a preceito…
Não me faça um especialista do «kitsch». O «kitsch» começa por ser uma hipocrisia e acaba por ser um subproduto de uma sociedade que se apieda de si mesma, em demasia. Entre o que se deve sentir e o que se sente, às vezes, vai uma grande distância. E depois o «kitsch» é a fancaria. Como eu escrevi, é ter o Guernica que liga com as cortinas… isso não!
Nunca teve crises de autopiedade? Não as deixou penetrar a poesia?
Então não tive?
Humor negro: diga um epitáfio que gostasse para si mesmo. Mão me diga que nunca fez nenhum, preparado para aquele momento bem português em que morre um artista e lhe caem em cima os vampiros das homenagens, dos amigos, dos depoimentos, das desculpabilizações, dos discursos e dos engrandecimentos. A gloríola – a palavra é sua –, em Portugal, é muito póstuma.
Não gostava nada que me caíssem em cima, nem que dissessem nada sobre mim. Epitáfio… eu até tinha um:

Aqui jaz Alexandre O’Neill
Um homem que dormiu
Muito pouco
Bem merecia isto

Fiz este epitáfio aos 30 anos.


in A Phala, Suplemento, nº88 de 2001
Alexandre O'Neill e António Tabucchi (fotografia de Noémia Delgado)

17/02/2012

Impressões...

Montagem fotográfica obtida segundo indicações de Álvaro Lapa, a partir da sua fotografia realizada por Luís Palma, 1994.


ÁLVARO LAPA IMPRESSÕES DA LUSITÂNIA

ENDOVELICO (deus do fogo?) (incerto). Deus dos curas (quase). Deus das curas. Esculápios dos celtas? Em pleno Alentejo em plena Mesopotâmia o Santuário de Endovelico ficava alto. Des Deus Endovellicus! Um deus alentejano. Onde está, antigamente estava / Aquele templo sumptuoso e rico / Do Deus Cupido, e que então chamava / O romance vulgar Endovellico[1]. Corresponda a Apolon ou não corresponda.

                S’Miguel da Mota. Alandroal 1890 ido. Homens animais etc. Pedras escavadas em forma de pia. Restos dum deus. Restos dos cultos. Era um E. Muito muito bom. Very very Gwell. Um monte santo.

                (Entrava o porco. Ou a porca. São deuses ctónicos. São deuses médicos.) Baudelaire não aproveitou. Um outro hemiplégico veio a curar-se. Que parece cão. Via nos sonhos. Sonhos da Terra. A Tenríssima curandeira. Segundo determinação avernal. Com inscrições versificadas. E todo o outeiro era sagrado. Misturas de arqueologia e de história. Que significa «segundo o que se Prometeu». Segundo o Yi-King. Espírito da música.

                Há uma encantadora historieta acerca de Confuncio. Uma vez o seu discípulo preferido ouvia-o tocar e ficara cheio de medo e disse-lhe: «O mestre hoje tem pensamentos de assassino.» Isto sucedia enquanto Confuncio observava uma aranha a tecer a teia à volta duma mosca, e por isso ele expressava o que via por movimento das cordas. A habilidade de seguir a música do mestre era tão grande que lhe entendia a emoção; mas não conseguia compreender a causa e apenas percebia que havia pensamentos de assassino misturados. Não era capaz de determinar era se esses pensamentos eram do assassino de homens ou de moscas. Música da terra. Música das transformações. Ocos dum órgão numa sala gigante sob o outeiro ouve-se os martelos. Soa por indigível. Ouvia-se nos sonhos. A voz própria boca de ninguém lábios de Yin ave de arribação. Ou uma pombinha ofertada a Endovellicus. Brûle san satyre. Que Gauguin leu «Mais depuis mon arrivée à Paris la vie que je mène est si peu gaie!» Vivam os canibais. De outro hemisfério. Leite de Vasconcelos. Olhando o Paraíso. Eu ouvi dizer – disse o galego Zoar – que é preciso cruzar os braços sobre o peito e as costas do doente, não sei se isso adianta para as crianças. Um paraíso barroco com o Minho. Floresta de folhas verdes como luz. Lago de Sol. Carne de papel.

Álvaro Lapa
In ‘A Phala’, n.º 39, Setembro, Assírio & Alvim, Lx, 1994.



[1] Braz Garcia Mascarenhas

11/02/2012

Pare, Escute e Olhe!...

M. S. Lourenço 
M.S. LOURENÇO «Ler não é olhar é ouvir»

    Embora o fim do culto da leitura tenha sido previsto já em 1962 por Marshall Mac Luhan no seu estudo sobre a decadência da Imprensa intitulado «A Galáxia de Gutenberg», o numero de filósofos da cultura que desde então profeciam o desaparecimento do livro e da leitura nunca deixou de aumentar. A designação genérica de «Pessimismo Cultural» tem sido justamente adoptada para caracterizar esta profecia, cujas origens no entanto foram formadas pelo Pessimismo Cultural de Nietzsche e de Oswald Spengler.
     Há na verdade um conjunto crucial de experiências que tem que ser interpretado e é justamente na constituição dos conceitos necessários à sua teorização que tem que residir o nosso primeiro esforço. Nos países industrializados, portanto herdeiros e actuais portadores da cultura de Gutenberg, foi introduzido o dever escolar, por meio do qual o analfabetismo se torna legalmente impossível, como sendo a pedra sobre a qual o edifício da Cultura deve assentar. Neles a rede de bibliotecas públicas e de instituições privadas às quais o público tem acesso não tem parado de crescer neste século. Também o número de livros portáteis e acessíveis em preço, de publicações periódicas quer especializadas quer de interesse geral tem-se gradualmente tornado também acessível e, nestas condições, o instrumentário de leitura nunca foi tão fácil de alcançar como no nosso fin de siècle. É perante este conjunto   de factos que a emergência do fenómeno do analfabetismo secundário, nos países com esta tradição cultural, constitui uma dificuldade teórica difícil de enquadrar e muito menos de explical satisfatoriamente.
     Duas posições são in limine possíveis. Em primeiro lugar é possível seguir o padrão de pensamento acima descrito como pessimista, e decidir que na verdade se chegou ao fim do culto do livro e da leitura e que estamos já no limiar da era de uma grande plebe televisual, a qual se caracterizará pelo culto de imagens visuais simplificadas, transmissíveis por um monitor de televisão ou de computador. Embora este pareça ser o actual curso dos acontecimentos, ele não tem no entanto o carácter de um desenlace fatal. A esta é possível contrapor uma segunda possibilidade segundo a qual o que está a terminar é apenas uma forma de leitura, a qual de resto só foi prevalente desde a invenção de Gutenberg. E como seria completamente absurdo começar por datar a Cultura apenas a partir da invenção de Gutenberg, é igualmente absurdo julgar que o fim do culto do livro e da leitura significa também o fim da Cultura.
     A invenção de Gutenberg tornou possível a forma de leitura a que poderíamos chamar «leitura visual», a qual consiste na impressão de que ter os olhos em contacto com a página escrita é a condição suficiente da leitura. Mas esta impressão, tal como a generalidade das impressões visuais, não é correcta, uma vez que a página impressa, quer de poesia quer de prosa, constitui apenas um conjunto de indicações, o qual de maneira nenhuma se pode identificar com a totalidade da mensagem a transmitir pela obra de arte literária. A página impressa está para a obra de arte literária na mesma relação que a partitura musical está para a     
obra de arte musical. E assim como só a realização sonora de uma partitura pode definir a obra de arte musical, assim também só a realização sonora de um texto impresso pode determinar o contorno definitivo da obra de arte literária.
     Assim torna-se necessário fazer uma nova reflexão sobre o acto de leitura até se chegar à ideia de que ler não é ver, mas é antes e acima de tudo OUVIR, de modo a que a leitura visual dê lugar definitivamente à leitura musical. Gostaria a título de ilustração mencionar alguns exemplos, os quais podem tornar esta tese ainda mais inteligível. Em Poesia existe uma gravação de Yeats de alguns dos seus poemas líricos. Para mim a experiencia musical inesquecível permanecerá sempre a leitura que Yeats faz do seu poema «I shall rise and go to Innisfree» onde talvez pela primeira vez fui conduzido à ideia de que o poema impresso «I shall rise and go to Innisfree» é apenas uma parte de todo o poema, a totalidade do qual só nos é apresentada através da realização sonora feita por Yeats.
     A divisão em si artificial entre Poesia e Prosa não conduz a uma relativização desta ideia, no sentido em que só em Poesia é que a literatura musical pode ter lugar. Existe também em disco uma gravação de uma leitura de James Joyce de um fragmento do capítulo de «Finnegans Wake», conhecido por Anna Livia Plurabella, em que a qualidade musical da leitura é de tal maneira esmagadora que se torna irrelevante colocar a questão de saber se afinal se classifica o texto como Poesia ou como Prosa, uma vez que é com certeza Música.
     Resta considerar o género de prosa narrativa, conto ou romance, em que a linguagem se move nos aparentes limites do   quotidiano. Este género pareceria à primeira vista inacessível a um tratamento musical da sua leitura: mas Thomas Mann provou justamente o contrário ao gravar a leitura da sua pequena narrativa «O Acidente Ródoviário», onde mais uma vez se torna irrecusavelmente óbvio que a narrativa impressa só narra uma parte da totalidade da história: só a voz e a elocução de Thomas Mann são capazes de reproduzir a totalidade da pequena obra de arte.
     Assim a palavra e o som podem ser postos em correspondência, de modo a que o significado intencionado pela obra de arte literária possa ser agora expresso pela massa sonora a que dá origem. O veículo do sentido deixa de ser apenas a palavra impressa para incluir também a sua realização sonora. Para se poder exprimir o conteúdo musical que jaz depositado na mancha impressa é necessário abandonar o preconceito, infelizmente tão enraizado, de que entre a fala e o canto existe uma contradição insuperável. Devemos justamente à Segunda Escola de Viena, e a Alban Berg em particular, ter-nos libertado deste preconceito e ter-nos deixado finalmente ver que entre a fala e o canto existe, ao contrário, uma progressão de possibilidades.

M.S. Lourenço
In ‘A Phala’, n.º 23, Abril/Maio/Junho, Assírio & Alvim, Lx, 1991.

01/02/2012

«Exemplum»

Eu acho que é cânone... Mas é capaz de ser uma minolta... de qualquer forma foi o Arnaldo Saraiva que a tirou em 1980 no Porto.


HERBERTO HELDER Por exemplo

                Ajudai-me potências lexicais, morfologias, sintaxes, tradições e memórias do dito, conversa do mundo. É fútil escrever: ilegível – e construir uma teoria lógica da ilegibilidade, uma tradição também, memória, «contexto», como eles designam, e decorre tudo isso do ilegível equívoco das transposições: transpor do instável e incontrolável para o estatuto controlável; com o pouco das cabeças quer entender-se a sensível cadeia das coisas que transitaram, representadas, traduzidas, apresentadas, das correntes da terra para as correntes do poema. Que recurso é este, que desentendimento, se não é só lateralidade, periferia, onde está o coração vivo e central? Rimbaud chega a Paris, o corpo é grande e os gestos não alcançaram ainda o tamanho do corpo, a voz para fora não possui ainda a melodia própria mas a voz interior já se casou com a razão do tempo, que poeta! O inadvertido Cros põe-se a inquirir: porquê tal palavra em vez de outra, e este ritmo porquê?, e aquela imagem? E o adolescente prodigioso, comendo sopa, não diz nada. Taciturno! Era um conversador péssimo. Talvez fosse possível explicar por aproximações, fornecendo imagens de imagens, metáforas de metáforas, criando um novo poema à margem do poema criado; toma-se isto por explicação? Talvez Cros o tomasse, mas Rimbaud, ele, não era explicador de coisa nenhuma: ardia, e lá estavam com perguntas sobre o fogo: se era de lenha, se de gás, se aquilo era papel queimado; e enquanto ele devorava a sopa não viam que se tratava do próprio, indefectível, simples, indeferível, ali à mesa, tão alto consumido das suas labaredas. Compreendem-se formas assim, há qualquer pequeno motivo para o grande motivo, essas formas podem ser mudadas? As linhas para onde pretendem transpor a ilegibilidade rimbaldiana, de modo a conduzi-la a uma vagarosa e minuciosa legibilidade, são as mesmas, sempre, para toda a poesia, e nessas linhas não se encontra escrita a música miraculosa nem a revelação nem o superlativo encontro das coisas nem a inteligência súbita do mundo. São formas ilegíveis; lê-las é a maneira única de ler: são as únicas legíveis para essa maneira única de ler. Claro, a metáfora extrema que é a realidade, a mais funda, a realidade fundada, fundamental, é uma imediata trama de conexões em nome, pois ao princípio era a acção do nome, o fiat lux faz a luz, o nome esclarece a coisa que alimenta o nome. As incroyables Florides rimbaldianas são as Floridas de uma cartografia assegurada pela aparição, a iluminação. Leia-se iluminadamente.
                Au fond ce que dit Rimbaud n’a pas de sens; je veux dire: de sens vers nous. Son but est prochain, immédiat, égoïste. En écrivant il ne travaille qu’à se débarrasser de son innocence. (Jacques Rivière)
                Disseram: não encontramos dificuldade em entrar nos poemas. De facto não encontravam. E eram desconhecidos circunstanciais, não tinha nada nas algibeiras biográficas, semióticas, psicanalíticas, ideológicas, simbólicas, nada, não eram acrobatas teóricos, vinham de longe, dotava-os apenas um talento virgem, a virtude de manejar perguntas que em si mesmas achavam respostas.
                Hermético. Coisa imemorial, esta, uma coisa insistida para arrumo de casas, anda-se pelos quartos, alguém tropeça nos móveis, cuidado, uma visita guiada. O hermetismo é um bónus à insolvência leitora. Explica-se. Não se explica a atenção mas a desatenção. Generosamente. Já foram tão abundantes que explicaram tudo. As explicações eram tão miúdas no seu delírio que a gente se inteirava na incalculável reserva e engenhosidade dos recursos ignorantes. A ignorância é muito mais brilhante que a ciência. Sabe muitíssimo mais.
                O sabido dos poemas era decerto bastante menos que o sabido dos explicadores, era igual ao que sabiam os cúmplices, os cúmplices sabiam entrar neles e andar e conspirar lá dentro com móveis e imóveis. Porque os entendiam exactamente dentro, entendiam-se com eles, por dentro, os cúmplices, rápida entrada na casa, portas abertas, desenvoltura pelos corredores adiante. Parece que só se pode dar razão ao entendimento imediato com razoes habitadas sempre por essa luz cardeal primeira, e essas razões são apenas parcimoniosos auxílios à inocência sabedora: escoras, apoios, razões da razão.
                Não cabe a um poeta «explicar-se», talvez não cabe a ninguém esse contrabando de uma zona para outra, pertence tudo completamente à zona de origem; nem existe legalidade nenhuma em deslocar os poemas deste lado para aquele lado, a poesia não é uma agência de transportes.
                Que um poema é ilegível numa pauta de legibilidade ou que pelo contrário é nela legível assemelha-se bastante à arrogância e violência políticas do poder de uma forma sobre todas as outras. O mais directamente legível nos poemas – sofram-no estes tempos de literalidade conversada – pode ser o menos legível na poesia.
                Os poemas são instantâneos, aparecidos. Não há chaves porque não há fechaduras. Os poemas estão lá. Reclamam apenas a soberania do seu território.
                Não se pede (pedir-se-ia antes que tivessem a astúcia de entender a espécie de entendimento pedido) que tornem aberto o fechado; os poemas hão-de permanecer fechados após todas as desocultações e hão-de ser abertos para quem neles entre como numa casa oferecida.
                Àqueles que os acharam assim, uma casa habitavelmente fácil, quis mover-se como gentileza protocolar a algumas pequenas curiosidades, disposição das dependências, os materiais, as vistas, as vantagens, circunstâncias da electricidade, do gás, da água, o funcionamento. Convidou-se por exemplo para assistirem à arrumação, à «montagem», um pouco como se assiste a uma montagem cinematográfica. Isto é uma moviola. Que não – responderam. Responderam que se assiste logo mesmo sem assistir, que essa montagem é inerente aos poemas, às coisas que estão neles, às coisas do mundo relacionadas em relações de poema, que a montagem é a sua coerência, o modo insubstituível e irrecusável de serem assim. Eram argumentos peremptórios. Vinham do coração do poema, vinham para fora, para onde era visível. Cá estavam os interlocutores providenciais de Mandelstam, os destinatários, vozes da voz, ouvidos do ouvido. Ao menos agora concordava-se com o mundo, o mundo concordava.
                Quando acabou de ler o manuscrito de Une Saison en Enfer, a atónita Viúva Rimbaud – como ela mesma firmava a correspondência – inquiriu do filho qual o significado daquilo que lera. Arthur respondeu que significava literalmente e em todos os pormenores o que lá estava. Bom. Ajudemos um pouco esta espécie de viúvas: para cada autor o significado de cada poema é literal. Se as viúvas puderem – que diabo!, alguma coisa hão-de elas poder –, encontrem essa literalidade. Suspeito de que nunca a encontrarão, porque ou se entende tudo como coisa óbvia, digo: a literalidade do autor coincide com a literalidade do leitor, ou não existe socorro para acudir à viuvez. Merda. Basta de conversas à beira-mar quando o mar está aí, invitation au voyage, o mar espera o bateau ivre.

Herberto Helder
In ‘A Phala’, n.º 69, Abril, Assírio & Alvim, Lx, 1999.

31/01/2012

Franco nas respostas que são perguntas...

António Franco Alexandre. Fotografia de Manuela C.

QUATRO PERGUNTAS E 5 RESPOSTAS A PROPÓSITO DE OÁSIS

                Parece um livro muito diferente dos anteriores. Parece-me mais explícito e dramático. Por outro lado, o título Oásis, sugere o deslumbramento de quem atravessou desertos. É um livro biográfico no sentido mais intenso da palavra?

                Não é nem mais nem menos biográfico que outro poema qualquer; ou são todos ou não é nenhum. O que talvez seja é mais obviamente narrativo: os meus poemas, mesmo os mais líricos, tendem sempre a ser fragmentos de narrativa são mais extensas, e mais explícitas e dramáticas, como tu dizes. Mas há vários personagens, várias vozes, e não me interessa identificar-me especialmente com nenhuma delas. Quanto ao resto, o livro poderia chamar-se Anti-oásis, o oásis é nele uma figura sobretudo negativa, não é? É o lugar da humidade viscosa, mortífera. Mas duvido que o contrário do oásis seja o deserto.


                O poema é longo com ritmos e vozes distintas, as estrofes, que quiseste bem intervaladas, revelam uma pulsão irregular e bastante sincopada. O poema surgiu impositivamente como monólogo inadiável, ou resulta da junção de diferentes poemas ligados por uma idêntica emoção?

                Foi primeiro pensado, de um modo genérico e formal, e depois escrito continuamente, progressivamente, durante cerca de um ano. Fui escrevendo, improvisando «dentro do tema», e alterando o que tinha escrito, sempre «de trás para a frente»: quando cheguei à última linha, tinha acabado. Mas a estrutura tripartida, simétrica, os paralelismos, estavam fixados à partida, e alguns «episódios» visualizados (mas não escritos). Foi como escrever um conto. A palavra «monólogo» desconsola-me, porque embora tudo o que se escreva tenha necessariamente também a forma da reflexão interior, a intenção é que se sintam claramente as «vozes distintas».


                O eu é neste poema arrebatado e central. Mas eu é aqui também carne, o corpo anatomicamente exposto: olhos, boca, mãos, coração, sangue, carne, corpo, lábios. Este livro indicará uma mudança na tua poesia?

                O personagem mais evidente, às vezes eu e outras ele, é de facto um bocado excessivo, enfático, apesar de andar sempre rodeado de pequenas vozes irónicas ou controladoras. E tem uma irritação, que eu partilho, para com as belas imagens do corpo, toda a fantasia lírica do corpo, que é instrumento de sujeição dos corpos. O sangue, a carne, o veio de hipocondria, são maneiras que ele tem, um tanto brutais, de lutar contra a sedução da imagem. O oásis é também isso, a imagem bem acabada, pelicular.

                Dizem-me sempre que mudo muito, de livro para livro; mas parece-me que a questão, e a linguagem, já estava no Sem Palavras Nem Coisas, e até antes. Eu não penso os meus livros como colectâneas de poemas, mas como poemas completos, necessariamente diferente uns dos outros, até porque de diferentes «géneros». Não posso escrever da mesma maneira um diário de viagem (Visitação) ou o retrato de um amigo (Os Objectos Principais), e assim de seguida.


                Leio o primeiro verso «recebe-me coração espesso de sangue» e o fim do poema: «o coração das folhas para sempre». Este Oásis é um poema de amor? De dissolução? Ou de sobrevivência? Ou principalmente «o verbo que se fez carne»?

                É a carne a fazer-se verbo, não é? Não sei bem. Os primeiros versos são uma invocação, talvez essencialmente uma invocação ao Poema, simbolizando pelas alusões a uma canção de Camões, a um poema de Pessoa… Quando acaba está onde começou, na promessa do poema, que é tudo isso que dizes, amor, dissolução, sobrevivência; se calhar nem chega a haver poema… Entretanto há um passeio por Lisboa, com um companheiro importuno, um diabo menor.

                Por que não me perguntaste nada sobre a presença da música, que é constante, mesmo obsessiva; não se nota? Esse é um dos problemas da leitura que me inquietam, porque há passagens que receio fiquem aberrantes para quem não ligue à alusão musical. Por exemplo todas as frases em inglês são letras de canções, ou títulos. E há ainda um objecto muito importante, o trombone. É preciso pegar num trombone e sentir o inverosímil e maravilhosamente necessário que é fazer música com uma prótese assim. E as conotações históricas do instrumento, umas fúnebres, outras mefistofélicas, outras…, interessam muito. Não quer dizer que todas as alusões ou referências sejam emblemáticas. Formalmente, desejaria cada vez mais fazer poemas como quem faz música, o que não quer dizer «escrever musical».

Entrevista a António Franco Alexandre
In ‘A Phala’, n.º 31, Outubro/Novembro/Dezembro, Assírio & Alvim, Lx, 1992.

20/01/2012

Para o e-leitor...

RICARTE-DÁCIO DE SOUSA «Um acto de amor e posse»
     Cem anos não tinham passado sobre a data de publicação da Bíblia de Guttenberg (1455) já os documentos chegados aos nossos dias apontavam para a existência, no decorrer do séc. XVI, de coleccionadores da letra impressa, a erguerem pacientemente as primeiras bibliotecas particulares.
     Poderemos salientar na época a livraria reunida pelo humanista alemão Willibald Pirkheimer (1470-1530), amigo de Dürer, cujos livros viriam mais tarde a pertencer à família inglesa dos Duques de Norfolk, e os três mil volumes de Jean Grolier de Servières, Visconde d’Aiguisy, Tesoureiro-mor e Embaixador de França (1479-1565) e talvez o maior bibliófilo de Quinhentos.
     Coleccionar é um acto de amor e posse. Exige discernimento e cultura e é incompatível com a ligeireza. Bibliofilia e bibliomania não são, logicamente, uma e a mesma coisa.
    Lembro-me com nitidez da entrevista concedida pelos escritores Roger Stéphane e Bernard Pivot, para um dos seu famosíssimos programas «Apostrophes» da televisão francesa. Stéphane, célebre autor do livro Portrait de l’Aventurier (1.ª ed. 1950) com capítulos inovadores e pioneiros sobre T. E. Lawrence, André Malraux e Ernest von Salomon, ao ser interpelado sobre os seus «amores» das primeiras edições, respondia: «Claro que sim. Amo as tiragens originais, mas atenção, só adquiro as raridades dos escritores que admiro». Neste ponto entra em cena a cumplicidade com o texto que lemos, a corrente estabelecida entre nós e o outro, e o rasgar de horizontes que podem modificar a perspectiva da vida.
     A bibliofilia poderá nascer nesse instante, na tentativa extrema de captar, através do objecto, no qual está inserida uma aventura do espírito, a sensação de partilha. O objecto em si (pelo menos na 1.ª edição) tem um formato, uma qualidade de papel, um aspecto tipográfico a traduzir certamente o consentimento ou a escolha do autor. Muitas vezes as tiragens reduzidas e o grau de raridade aumentou com os anos e a nossa vontade de posse, essa, centuplicou com o refrear do desejo!

   Por vezes as ironias e as leis de mercado, vingam-se na posteridade do mau passadio que o poeta suportou no seu tempo, e de forma implacável exigem o dízimo acumulado! Recordo o caso de Benjamin Péret, num viver (quase sempre) endiabrado e de risco, com mil carências permanentes e cujas primeiras edições (nas tiragens especiais) valem fortunas, estando apenas ao alcance de milionários. Um exemplar da tiragem especial, papel do Japão, do au 125 du Boulevard Saint-Germain, Paris, 1923, com desenhos de Max Ernst, chega facilmente aos dois mil contos! Muitas das suas «plaquettes» são autênticas obras de arte.
     Alguns dos companheiros da prodigiosa aventura surrealista foram grandes bibliófilos. Aragon. Eluard e Tzara. E o próprio André Breton possuía preciosidades (escolhidas a dedo) do Romantismo, e ainda traduções francesas (raríssimas) do Romance Gótico inglês dos fins do séc. XVIII.
     Na nossa terra falava-se nos quarenta mil volumes de Afonso Lopes Vieira. Ainda existem? Onde Param?
     Coleccionar pode levar ao desatino egoísta e feroz, e em certos casos limites, o desequilíbrio mental não anda longe. No séc. XIX português existe um exemplo medonho. Agostinho Vito Pereira Merello, espantosos bibliómano, reuniu, dezenas de anos a fio, sumptuosas biblioteca, na qual possuía peças únicas, e entre elas, o manuscrito inédito do poema de «Santa Maria Egipsiaca» atribuído a Sá de Miranda. Esta personagem, quando ilustres investigadores (Teófilio e Carolina Michäelis) lhe pediam para ver a obra, respondia: «Gosto tanto dela que não a mostro, seja a quem for!!!» Só depois da sua morte foi possível editá-la!
     Talvez a solução esteja no conselho do homem que mais admirei nestas lides, Pascal Pia, grão-senhor dos livros antigos: «O ideal, dizia ele, seria possuir três exemplares do que amamos. Um para o acariciar. Outro, para trabalhar. E o terceiro para emprestá-lo aos amigos, e é preciso que o mereçam!»

Ricarte-Dácio de Sousa
In ‘A Phala’, n.º 23, Abril/Maio/Junho, Assírio&Alvim, Lx, 1991.