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11/02/2012

Pare, Escute e Olhe!...

M. S. Lourenço 
M.S. LOURENÇO «Ler não é olhar é ouvir»

    Embora o fim do culto da leitura tenha sido previsto já em 1962 por Marshall Mac Luhan no seu estudo sobre a decadência da Imprensa intitulado «A Galáxia de Gutenberg», o numero de filósofos da cultura que desde então profeciam o desaparecimento do livro e da leitura nunca deixou de aumentar. A designação genérica de «Pessimismo Cultural» tem sido justamente adoptada para caracterizar esta profecia, cujas origens no entanto foram formadas pelo Pessimismo Cultural de Nietzsche e de Oswald Spengler.
     Há na verdade um conjunto crucial de experiências que tem que ser interpretado e é justamente na constituição dos conceitos necessários à sua teorização que tem que residir o nosso primeiro esforço. Nos países industrializados, portanto herdeiros e actuais portadores da cultura de Gutenberg, foi introduzido o dever escolar, por meio do qual o analfabetismo se torna legalmente impossível, como sendo a pedra sobre a qual o edifício da Cultura deve assentar. Neles a rede de bibliotecas públicas e de instituições privadas às quais o público tem acesso não tem parado de crescer neste século. Também o número de livros portáteis e acessíveis em preço, de publicações periódicas quer especializadas quer de interesse geral tem-se gradualmente tornado também acessível e, nestas condições, o instrumentário de leitura nunca foi tão fácil de alcançar como no nosso fin de siècle. É perante este conjunto   de factos que a emergência do fenómeno do analfabetismo secundário, nos países com esta tradição cultural, constitui uma dificuldade teórica difícil de enquadrar e muito menos de explical satisfatoriamente.
     Duas posições são in limine possíveis. Em primeiro lugar é possível seguir o padrão de pensamento acima descrito como pessimista, e decidir que na verdade se chegou ao fim do culto do livro e da leitura e que estamos já no limiar da era de uma grande plebe televisual, a qual se caracterizará pelo culto de imagens visuais simplificadas, transmissíveis por um monitor de televisão ou de computador. Embora este pareça ser o actual curso dos acontecimentos, ele não tem no entanto o carácter de um desenlace fatal. A esta é possível contrapor uma segunda possibilidade segundo a qual o que está a terminar é apenas uma forma de leitura, a qual de resto só foi prevalente desde a invenção de Gutenberg. E como seria completamente absurdo começar por datar a Cultura apenas a partir da invenção de Gutenberg, é igualmente absurdo julgar que o fim do culto do livro e da leitura significa também o fim da Cultura.
     A invenção de Gutenberg tornou possível a forma de leitura a que poderíamos chamar «leitura visual», a qual consiste na impressão de que ter os olhos em contacto com a página escrita é a condição suficiente da leitura. Mas esta impressão, tal como a generalidade das impressões visuais, não é correcta, uma vez que a página impressa, quer de poesia quer de prosa, constitui apenas um conjunto de indicações, o qual de maneira nenhuma se pode identificar com a totalidade da mensagem a transmitir pela obra de arte literária. A página impressa está para a obra de arte literária na mesma relação que a partitura musical está para a     
obra de arte musical. E assim como só a realização sonora de uma partitura pode definir a obra de arte musical, assim também só a realização sonora de um texto impresso pode determinar o contorno definitivo da obra de arte literária.
     Assim torna-se necessário fazer uma nova reflexão sobre o acto de leitura até se chegar à ideia de que ler não é ver, mas é antes e acima de tudo OUVIR, de modo a que a leitura visual dê lugar definitivamente à leitura musical. Gostaria a título de ilustração mencionar alguns exemplos, os quais podem tornar esta tese ainda mais inteligível. Em Poesia existe uma gravação de Yeats de alguns dos seus poemas líricos. Para mim a experiencia musical inesquecível permanecerá sempre a leitura que Yeats faz do seu poema «I shall rise and go to Innisfree» onde talvez pela primeira vez fui conduzido à ideia de que o poema impresso «I shall rise and go to Innisfree» é apenas uma parte de todo o poema, a totalidade do qual só nos é apresentada através da realização sonora feita por Yeats.
     A divisão em si artificial entre Poesia e Prosa não conduz a uma relativização desta ideia, no sentido em que só em Poesia é que a literatura musical pode ter lugar. Existe também em disco uma gravação de uma leitura de James Joyce de um fragmento do capítulo de «Finnegans Wake», conhecido por Anna Livia Plurabella, em que a qualidade musical da leitura é de tal maneira esmagadora que se torna irrelevante colocar a questão de saber se afinal se classifica o texto como Poesia ou como Prosa, uma vez que é com certeza Música.
     Resta considerar o género de prosa narrativa, conto ou romance, em que a linguagem se move nos aparentes limites do   quotidiano. Este género pareceria à primeira vista inacessível a um tratamento musical da sua leitura: mas Thomas Mann provou justamente o contrário ao gravar a leitura da sua pequena narrativa «O Acidente Ródoviário», onde mais uma vez se torna irrecusavelmente óbvio que a narrativa impressa só narra uma parte da totalidade da história: só a voz e a elocução de Thomas Mann são capazes de reproduzir a totalidade da pequena obra de arte.
     Assim a palavra e o som podem ser postos em correspondência, de modo a que o significado intencionado pela obra de arte literária possa ser agora expresso pela massa sonora a que dá origem. O veículo do sentido deixa de ser apenas a palavra impressa para incluir também a sua realização sonora. Para se poder exprimir o conteúdo musical que jaz depositado na mancha impressa é necessário abandonar o preconceito, infelizmente tão enraizado, de que entre a fala e o canto existe uma contradição insuperável. Devemos justamente à Segunda Escola de Viena, e a Alban Berg em particular, ter-nos libertado deste preconceito e ter-nos deixado finalmente ver que entre a fala e o canto existe, ao contrário, uma progressão de possibilidades.

M.S. Lourenço
In ‘A Phala’, n.º 23, Abril/Maio/Junho, Assírio & Alvim, Lx, 1991.

20/01/2012

Para o e-leitor...

RICARTE-DÁCIO DE SOUSA «Um acto de amor e posse»
     Cem anos não tinham passado sobre a data de publicação da Bíblia de Guttenberg (1455) já os documentos chegados aos nossos dias apontavam para a existência, no decorrer do séc. XVI, de coleccionadores da letra impressa, a erguerem pacientemente as primeiras bibliotecas particulares.
     Poderemos salientar na época a livraria reunida pelo humanista alemão Willibald Pirkheimer (1470-1530), amigo de Dürer, cujos livros viriam mais tarde a pertencer à família inglesa dos Duques de Norfolk, e os três mil volumes de Jean Grolier de Servières, Visconde d’Aiguisy, Tesoureiro-mor e Embaixador de França (1479-1565) e talvez o maior bibliófilo de Quinhentos.
     Coleccionar é um acto de amor e posse. Exige discernimento e cultura e é incompatível com a ligeireza. Bibliofilia e bibliomania não são, logicamente, uma e a mesma coisa.
    Lembro-me com nitidez da entrevista concedida pelos escritores Roger Stéphane e Bernard Pivot, para um dos seu famosíssimos programas «Apostrophes» da televisão francesa. Stéphane, célebre autor do livro Portrait de l’Aventurier (1.ª ed. 1950) com capítulos inovadores e pioneiros sobre T. E. Lawrence, André Malraux e Ernest von Salomon, ao ser interpelado sobre os seus «amores» das primeiras edições, respondia: «Claro que sim. Amo as tiragens originais, mas atenção, só adquiro as raridades dos escritores que admiro». Neste ponto entra em cena a cumplicidade com o texto que lemos, a corrente estabelecida entre nós e o outro, e o rasgar de horizontes que podem modificar a perspectiva da vida.
     A bibliofilia poderá nascer nesse instante, na tentativa extrema de captar, através do objecto, no qual está inserida uma aventura do espírito, a sensação de partilha. O objecto em si (pelo menos na 1.ª edição) tem um formato, uma qualidade de papel, um aspecto tipográfico a traduzir certamente o consentimento ou a escolha do autor. Muitas vezes as tiragens reduzidas e o grau de raridade aumentou com os anos e a nossa vontade de posse, essa, centuplicou com o refrear do desejo!

   Por vezes as ironias e as leis de mercado, vingam-se na posteridade do mau passadio que o poeta suportou no seu tempo, e de forma implacável exigem o dízimo acumulado! Recordo o caso de Benjamin Péret, num viver (quase sempre) endiabrado e de risco, com mil carências permanentes e cujas primeiras edições (nas tiragens especiais) valem fortunas, estando apenas ao alcance de milionários. Um exemplar da tiragem especial, papel do Japão, do au 125 du Boulevard Saint-Germain, Paris, 1923, com desenhos de Max Ernst, chega facilmente aos dois mil contos! Muitas das suas «plaquettes» são autênticas obras de arte.
     Alguns dos companheiros da prodigiosa aventura surrealista foram grandes bibliófilos. Aragon. Eluard e Tzara. E o próprio André Breton possuía preciosidades (escolhidas a dedo) do Romantismo, e ainda traduções francesas (raríssimas) do Romance Gótico inglês dos fins do séc. XVIII.
     Na nossa terra falava-se nos quarenta mil volumes de Afonso Lopes Vieira. Ainda existem? Onde Param?
     Coleccionar pode levar ao desatino egoísta e feroz, e em certos casos limites, o desequilíbrio mental não anda longe. No séc. XIX português existe um exemplo medonho. Agostinho Vito Pereira Merello, espantosos bibliómano, reuniu, dezenas de anos a fio, sumptuosas biblioteca, na qual possuía peças únicas, e entre elas, o manuscrito inédito do poema de «Santa Maria Egipsiaca» atribuído a Sá de Miranda. Esta personagem, quando ilustres investigadores (Teófilio e Carolina Michäelis) lhe pediam para ver a obra, respondia: «Gosto tanto dela que não a mostro, seja a quem for!!!» Só depois da sua morte foi possível editá-la!
     Talvez a solução esteja no conselho do homem que mais admirei nestas lides, Pascal Pia, grão-senhor dos livros antigos: «O ideal, dizia ele, seria possuir três exemplares do que amamos. Um para o acariciar. Outro, para trabalhar. E o terceiro para emprestá-lo aos amigos, e é preciso que o mereçam!»

Ricarte-Dácio de Sousa
In ‘A Phala’, n.º 23, Abril/Maio/Junho, Assírio&Alvim, Lx, 1991.

19/01/2012



HERBERTO HELDER PHALA DE MÁRIO CESARINY


     Há trinta anos os jovens gafanhotos caíram sobre a poesia radioactiva de Cesariny, comeram dela, fulguraram dela um instante como pequenas jóias uranianas. Carbonizou-os o fogo roubado. Jazem agora nos arrabaldes. Quem não assistiu nem suspeita. Pode fruir-se aqui uma lição rápida: o poder que mantém o universo de um grande poeta é inacessível – não está nas palavras mas entre elas, não está nos modos mas atrás deles, não está na claridade mas na obscuridade («Pour être vrai il faudrait être obscur». Flaubert). Eis o abismo entre mestre e discípulos: o mestre é a zona de radiações que os discípulos devassam em revoadas estudantes. As ciências naturais, espécies e espécimes colhidos, trabalhos de campo e casa, desnaturam-se nos fundamentos: não há nada para aprender. O autor, que propôs «alguns mitos maiores alguns mitos menores», só tem a inexplicável sabedoria de ser o dono deles e da sua aliança oculta. No âmbito profano da escolaridade, números e ordens são intransmissíveis. A floração atómica Cesariny ergue-se no deserto, não é paisagem para visitas guiadas, trânsitos, aulas, mapas. Não se ensina nem aprende nela nenhuma botânica democrática. É uma paisagem bárbara, entregue à escarpada biografia dos dias e das noites. Está ali, arboreamente explosiva e irreal como uma radiografia, negra à volta, inabitável na sua massa de luz.
     Com que linhas te coses? Com as dos meus poemas.
     Ora vejamos: vinte e cinco linhas, por exemplo, ou vinte e quatro, é linha a mais para coser um poeta. Ou a menos. Sempre a mais e a menos. «Aceita este risco supremo: renuncia a compreender aquilo que escreveu». Com uma linha assim cosem Emily Dickinson – que se cosera, ela, com as linhas de mil e seiscentos poemas. «O vento agarrou nas coisas do norte, / Acumulou-as no sul, / Dobrou depois o leste sobre o oeste (…)» – tudo enfiado numa agulha opondo magneticamente, não apenas as quatro partes cardeais, mas o poeta a si mesmo num prodigiosa costura celeste.
     Recapitulemos.
     Eles pensam.
     Prefiro o pensamento de que não há forma de dizer porquê e o como e o para quê. Talvez possamos recorrer à paráfrase, uma larga frase contendo em si, como coração, a intangibilidade do poema. Maneira de abraçar? Ele pede para ser abraçado? O mal é que a frase derivada, abraçadora, não aquece nem arrefece, não substitui. E então pergunta-se para que serve? Pois apenas serve aquilo que substitui. Se o poema fica, inamovível, sobra a paráfrase. Só interessariam as paráfrases a poemas desaparecidos, ardentes homenagens, louvor, invocações que restituíssem os belos corpos devorados. Seriam poemas em segunda mão, no entanto animados pelo sopro hínico. Os discípulos são autores em segunda mão, mas falta-lhes o espírito que restabelece a vida. As falas ecoam as falas escutadas – nelas está constantemente
a aparecer o que não desapareceu. Só as vozes da aparição conseguem louvar: louvam a cerimónia da sua aparição. Porque uma voz é isso mesmo, aparição.
     Há trinta anos, reiterando, Cesariny aparecia onde tentavam que desaparecesse. Agora aparece nas férias epigonais. Territorialmente desimpedida, esta poesia é tão absoluta e solitária que o comentário vai pouco, e dentro: é a última de nome religioso. E foi ele, Cesariny, quem o disse: «Assim acaba este estranho poema, o último de nome religioso escrito pelo Autor». O poeta cose-se com as suas linhas, religa tudo em nome escrito. Qualquer nome é o último, possui a força da renúncia, despede-se de si próprio. E compreende-se como primeira canção, a do fogo, misteriosa voz do mundo que o autor autoriza. Anda por aqui o Demónio, nesta música, ouve-se no fundo quando a leitura se torna mestra de si como de si era mestra a poesia: absoluta e solitária.
     É o que posso dizer, assistindo.
     Em quantas linhas, vinte e cinco, vinte e quatro, não coso nem descoso? Trata-se de entender, e faço pelo melhor: entendo o que não entendo, obscura coisa, esta, entender, prática do leitor religado. Também anda por aqui o Demónio, em tamanha audição. Que músicas para que ouvidos! As coisas do norte no sul, leste e oeste um sobre o outro. Dito em palavra pura. Quando se habita a poesia, condena o ofício às fogueiras acendidas em todos os lados do vento até o corpo se transmutar em diamante, um corpo que as luzes executam, como sanciona o étimo: luciferinamente. A pena capital, sofreu-a Cesariny, o canto desnorteado.
     Pois o norte é isso, um nome que procura, que descobre, com as suas inspirações boreais, uma versão de águas e terras juntas, elementos, complementos, um estilo de ficar australiano. O canto é uma desolação de ar e fogo. O poeta, servo e senhor dos pactos, sabe-o bem. Perguntem-lhe nos poemas. Mas nunca finjam que ele respondeu. Porque a sua metáfora, a alquimia baptismal, não é uma resposta aos outros, mas uma pergunta a si mesmo. E se há nela qualquer sedução, veja-se como vestígio daquela dança propiciatória, sempre hipnótica, difícil, ofuscante – exercida para a melhor posse dos talentos. É inerente ao capítulo infernal da comédia, um abuso no mais enigmático dos círculos: a beleza é monstruosa.

Herberto Helder
In ‘A Phala’, n.º 9, Abril/Maio/Junho, Assírio&Alvim, Lx, 1988.