16/01/2020

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"De resto, no século XVIII viajou-se muito pelo simples interesse de conhecer outras terras e outras gentes, diferentes leis e diversos costumes. Não são só os diplomatas e os doentes que se deslocam no globo, uns enviados pelos seus governos, outros pelos seus médicos; agora viajam também os artistas e os escritores, os filósofos e os naturalistas, os ricos curiosos e os nababos enfastiados. Alguns dos viajantes estrangeiros que escreveram sobre os portugueses, uma das pechas culturais que lhes apontavam era a de não viajarem. Viajarem pela Europa qureriam eles ter dito, pois logo informavam que o português só saía da pátria para ir ao Brasil, à África e às Índias orientais - o que, aliás, para exotismo bastava e dava sobra. Somente, sob este aspecto, os portugueses foram mais exportadores dos costumes da sua terra do que importadores de exotismos, que eles consideravam bárbaros.
O francês, o inglês, o alemão que não  podiam viajar liam livros de viagens. Assim, nas literaturas europeias setecentistas, com excepção das de língua portuguesa e castelhana, os livros de viagens abundavam e sucediam-se.
(...) Os filósofos e os enciclopedista aproveitavam os testemunhos dos viajantes em ilustração das suas teses e reforço dos seus argumentos, tendentes ao abalo dos princípios racionais em que a sociedade vivia organizada. A variedade de crenças, a multiplicidade de religiões, a diversidade moral, as diversas formas de governar e de os homens se constituírem em sociedades, o 'bom selvagem', ajudavam os filósofos a minar a Autoridade, consubstanciada na Igreja Católica e na instituição monárquica.
Neste crescente e cada  vez mais amplo movimento literário, sob os signos do exotismo, da crítica e do ataque aos malefícios do obscurantismo do dogma e do Poder autoritário, começaram a destacar-se com particularidade os livros dedicados às jornadas e permanências na Península Ibérica.
No geral, os viajantes entravam em Espanha já com ideias preconcebidas. Vinham, por assim dizer, colher exemplos que confirmassem e ilustrassem as suas teses, todas elas anteriores à observação e à análise. Compunham assim o quadro de duas nações supersticiosas, fanáticas, atrasadas, bárbaras, e ridiculamente ignorantes, onde imperavam o clero e dois reis absolutos. Fiados em Voltaire, em Montesquieu, em D'Argens, em La Harpe, que nunca haviam passado os Pirinéus, confirmavam que para cá desses montes governavam a Inquisição e um clero ignaro dominava os reis e mantinha o fanatismo dos povos. Aqui, nos dois países da Espanha, mantinha-se praticamente íntegras a ordem que a autoridade real sustentava, a crença nos dogmas, o poder absoluto e a certa ciência dos monarcas - conjunto de alvos excelentes para os protestantes e para filósofos deístas ou simplesmente ateus. Na verdade, a maioria dos livros de viagens na Península que foram publicados no século XVIII participam dos dois combates que então se travavam na Europa: pela supremacia do Protestantismo, destacadamente nos três primeiros quartos do século; e pela abolição dos governos monárquicos absolutos, em particular no último quarto do século, sob inspiração maçónica."

Castelo Branco Chaves, "Os Livros de Viagens em Portugal no Século XVIII e a Sua Projecção Europeia", pp. 10-12, Biblioteca Breve, 1977.

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