31/12/2019

...





Milão, 31 de Dezembro de 1937 Não se pode dormir com tanta gente lá fora, aos uivos, a festejar o ano novo. Como se fosse possível um ano novo ser melhor que o velho!
A grande força da vida é mesmo essa: a unidade. Com muita ciência e paciência lá se consegue contar num tronco, pelas camadas lenhosas, os anos da sua duração. Mas o que ninguém consegue ver naquele feixe de horas é a diferença de oscilação do cedro num dia de trovoada e num dia de sol calmo. Como o vento nivelador, o tempo passa por nós sem deixar covas. Quem se lembra das arritmias passadas, lembra-se de um quimera. Do grande calvário percorrido, não fica em nós senão o eco da monocórdica pancada do coração.
É claro que aqui o Sr. Baptistini do lado, negociante de botas, para quem o negócio correu mal estes 365 dias passados, bebe champagne na esperança de que se lhe tenha acabado o azar hoje e comece a vender muitas botas amanhã. O Senhor Baptistini.
Mas será possível que três ou quatro milhões de pessoas não vão além desse raciocínio rudimentar e utilitário do Senhor Baptistini?!

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 55, 1941, Coimbra.

Sem comentários: