26/12/2019

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26 de Dezembro de 1891.
Leitor, bôas-festas! Abre-me um riso. Repara que te não vou pedir coisa nenhuma. De me aturares, fui-me deixando acometter d’uma certa benevolencia a teu respeito, e essa benevolencia é o maximo d’estima que por ti póde sentir um coração costumado sómente a desprezar. Sei que és hereditario cultor das virtudes simples de familia, e homem de ramerrão, professas a ternura religiosa das grandes datas do kalendario. As tuas robustíssimas espadoas não podiam ser soménte mólhes do porto d’ar onde o teu globulo rubro se renova, mas por força tambem os sustentaculos d’um mundo moral que te ajuda a luctar contra o destino, e que apezar de te fazer ás vezes ridiculo, nem por isso te apeia d’uma superioridade ideal que eu provavelmente nunca attingirei. Razão porque ha no meu desdém por ti, uma ponta de ciume, e porque a sarcastica mysantropia que me fechou a porta dos gozos simples que aligeiram a vida, em vez de me talhar em Jupiter, o que fez foi cavar-me de roda do espirito um fosso, que me sequestra de tudo, e nem ao menos me estanca a saudade do que me acostumei a desdenhar. Este desterro péza-me, confesso, porque eu sou essencialmente um animal de ninharia e convivência, nascido para ter côrte, para se rolar no luxo, e para acceitar sem surpreza que toda a gente faça excepções em meu favor.
Pódes imaginar portanto o que teria sido, n’esta immensa cidade de quatrocentos mil habitantes, e seis milhões d’egoismos, a minha vespera e dia de Natal, sósinho entre a alegria insultante de todos, repellido dos fócos d’amor patriarchal como um sem-familia perturbador das alegrias consanguineas, vendo as mais modestas casas de jantar illuminarem-se, as mais desataviadas salas abrirem-se, amigos e parentes felicitando-se, abraçando-se, sem antagonismos visiveis, esquecidos do struggle, e apaziguados todos pela banalidade jovial da vida intima – a vida modelada sobre os antigos textos da tradicção, com a igreja d’um lado, o escrivão de fazenda do outro, o policia de guarda, e o Diario de Noticias como encyclopedia e breviário.
Ah como eu tive inveja do saloio que parou o burro á porta d’uma mercearia da Bitesga, para comprar a duas duzias de brôas da consoada; do pobre engraixador da esquina, indo á praça com a mulher, de fato rico, apreçar um quarto de peru; da varina entrando na salchicharia, radiante, a comprar salchichas, ao fim de ter deposto a canastra á porta, rude presépe onde o filho loiro chuchava o dedo, com o ventre de sapo para o ar! Todas essas indoles de povo, roídas de penuria , vergadas de trabalho, primitivas, mas fecundas e convergentes, por uma fatalidade ancestral, á reedição das alegrias periodicas do anno, se me afiguraram infinitamente superiores á minha friavel indole de janota sceptico, demolindo no ar sem plano certo, negando pelo simples prazer do paradoxo, incapaz d’estabilidade n’um problema, constantemente á procura de novo, e em topo de colina voltando-se, desesperado de só ter achado gosto – ao que era velho. Oh meu pobre coração amortalhado de tristeza! diz como te dóe o isolamento a que uma intelligencia esteril te votou. Conta, não tenhas medo, conta que choraste lagrimas de remorso, quando da janella do teu albergue viste os tres pequenos do visinho preparando ao seu papá uma emboscada; e o pobre homem entrando, carregado d’embrulhos, e elles de se lhe atirarem p’ra cima, como feras, sedentos de curiosidade e de meiguices, quando já da pobre cosinha da casa o olor de cabidella os chamava para dentro, e os parentes pobres, convivas d’esse dia, as velhas em chita, os velhos em belbutina e saragoça, vinham dar ao seu parente rico, as bôas festas. Vê como sob o manejo d’uma mulher trabalhadeira, os trinta mil reis mensaes d’esse pobre empregado fazem milagres de riqueza, luzindo na cosinha alegre, na bata da mulher, nos bibes das creanças, e no desafogo honesto de todos esses focinhos felizes, que marcham para o futuro despreoccupados da morte, e acceitando a vida apenas pelo que ella é, o usofructo d’uma agregação temporaria de moleculas. Compara a virilidade hygienica d’essa vida de ninho, feita de trabalho, de methodo, de defensão reciproca e de coragem, com o dessasocego da tua vagabundagem deleteria «d’espririto superior», gestando universos sobre leituras de livros mal escriptos, e dyspepsias sobre menús chinfrins de restaurants, e diz-me depois se a crise de solidão moral que te alanceia, não é condigno premio da «vida ironica» que te quizeste dar, toiro com azas, n’uma epocha em que os toiros só podem ser superiores pelos chavelhos!
…… dia de Natal, eu que eu conheço toda a gente, não tive ninguém que me dissesse «anda jantar». Vinguei-me sahindo de casa, e engajando os primeiros va-nu-pieds eventuaes. Dois pobres do asylo, os uniformes sem nodoas, pouco bêbedos. Marchamos para o Augusto, e na sala commum, a uma de cujas mezas nos sentamos, houve reboliço por banda das meretrizes e irregulares que mais alegres do que eu, alli tinham ido fazer o seu jantar de festa, em partie fine. Não descrevo a comida, registando apenas o trabalho gasto em despersuadir os meus dois commensaes de não metterem no bolso os restos de cada prato do festim.
Á sobremesa, um d’elles, bebedo, como eu o fitava com uma piedade christã de filho prodigo confiou-me que estivera quatro annos n’Africa, por um roubo, e o conselheiro X. o mettera no asylo, havia sete mezes. O outro era um velhinho abahúlado, olhos de doido irónico, que fugiam, fallando pouco; mas todo o jantar suspeitei de scellerado, tanto os seus monosyllabos humildes, e os seus contínuos escrupulos de consciencia, lhe davam o ar d’um homem de bem. A despedida, o mais velho chamou-me conde, e o mais novo, doutor, sem acertarem, e lá foram cambaleando, a rogar pragas a quem lhes fizera o serviço de lhes metter no craneo a apoplexia. Pobres malandros! Deixai o meu egoismo abusar da vossa fome. Sem vós, eu não poderia dizer, como toda a gente: «Jantei hoje o natal com dois amigos velhos»."
Fialho d’Almeida, “Os Gatos – Vol. V”, pp. 33-37, 4.ª ed., Livraria Clássica Editora de A. M. Teixeira, Lisboa, 1921.

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