03/11/2019

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QUESTÃO DE TERRAS


Quando o Ricardo Romarigues me convidou simpàticamente para ir passar o fim de semana lá na herdade, fiquei um pouco desconfiado.
Tinham-me contado que havia querela entre ele e o doutor Estêvão Brás Tramagal, tudo por causa de uma outra herdade, a herdade da Argola, que Ricardo tinha de antiga e que o doutor Tramagal afirmava ser proprietário por ocupação e cultivo. Dizia-se até que o doutor contratara malteses sólidos para lhe defenderem a causa. Coisas de terras, não é?
Mas acabei indo, na minha bicicleta.
Ao entardecer, quando estávamos de conversa, tendo ao alcance das mãos magníficas canecas de vinho esquentado à lareira e mastigando, com saborear lento, excelentes rodelas de paio e pão trigal, estrugiu o ruído inesperado lá fora. Corri à janela, espalmei o tabuado contra a parede que olhava o espaço.
E vi.
Através da terra larga avançava uma matula de porrete em punho, bigodes antigos, ar de mundo já esquecido.
Pisavam duramente e berravam em conjunto:
Argola é nossa. Argola é nossa. Viva Tramagal!
Pausa. Novo berro colectivo:
Argola é nossa. Argola é nossa. Viva Tramagal!
Era a briga.
Não tinha nada a ver com aquilo. Fechei o tabuado o melhor que podia, puxei as calças que me escorregavam embirrativamente e declarei ao Ricardo que, embasbacado, parecia não acreditar no berro que chegava:
Olha, aguenta-te.
Corri às traseiras, montei a bicicleta e aqui estou.
Coisas.”



Mário-Henrique Leiria, “Contos do Gin-Tonic”, pp. 147-148, Editorial Estampa, 2. ª ed., 1976.

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