14/10/2019

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JULGAMENTO DEFINITIVO




O julgamento chegara ao fim.

O Juiz levantou-se, colocou a touca de pompons e encarou a assistência.

O silêncio era total quando o preboste tocou a corneta.

Todos se levantaram numa unanimidade respeitosa, enquanto o escrivão disparava os dois tiros da praxe.

A pequena porta à esquerda da tribuna abriu-se e os acusados entraram, acompanhados pelas vivandeiras e pelos carregadores habituais.

O coro, na varanda, entoou os primeiros acordes do hino e o decano dos archeiros perfilou-se e içou a bandeira.

Ia processar-se a leitura da sentença.

O Juiz estendeu o documento ao boticário de serviço nocturno que fora chamado especialmente.

A acusação descritiva foi lida em primeiro lugar, para descrever a acusação apresentada a favor dos acusados pela Comissão de Inquérito.

Os três réus eram elogiados sob reserva por, em local algures, terem exterminado trinta e sete crianças avulsas, setenta e duas mulheres em movimento recalcitrante, onze velhos não autenticados e sete cabras suspeitas de espionagem comercial, embora o óbito destas últimas não tivesse sido confirmado pela Comissão de Inquérito. Também lhes era atribuído o incêndio de três aldeias não localizáveis e de duas cadeiras Luís XV já localizadas, se bem que sem número de catálogo.

O preboste tocou a corneta e o escrivão, em sentido, disparou o tiro da praxe.

Ia ser lida a decisão final.

Os acusados viraram-se para o Juiz.

As vivandeiras viraram-se para os acusados.

Os carregadores viraram-se uns para os outros.

O Juiz tirou a touca de pompons, pôs o chapéu das circunstâncias sentenciosas e virou-se para o boticário.

O boticário prosseguiu a leitura do documento.

Verificados os acontecimentos e sendo os mesmos louvados por unanimidade, os acusados sofriam os seguintes benefícios:

O primeiro acusado, de boné grande (vinte e uma crianças, trinta e seis mulheres, sete velhos, duas aldeias), recebia medalha de ouro.

O segundo acusado, de boné pequeno (dez crianças, vinte e nove mulheres, três velhos, uma aldeia), recebia medalha de prata.

O terceiro acusado, sem boné (seis crianças, seis mulheres, um velho, nenhuma aldeia mas duas cadeiras), tinha direito a medalha de bronze.

A assistência irrompeu em aplausos frenéticos, com preferência evidente para o segundo acusado, que era da terra.

O boticário enrolou o documento e devolveu-o ao Juiz que o entregou ao Depositário de Secos e Molhados.

O preboste tocou a corneta e o escrivão, atento, deu os três tiros da praxe.

As vivandeira beijaram os acusados.

Os carregadores beijaram o boticário.

Todos se sentaram.

Os acusados subiram ao podium e saudaram a assistência, em sentido e sem rir.

O coro, na varanda, entoou os últimos acordes do hino.

À noite, depois da marcha triunfal, houve um cocktail Molotov comemorativo, no Palácio dos Jogos Fenianos, com a presença de todas as altas personalidades do Condado.

Dizia o Juiz aos três homenageados «ainda não lhes contei a última do Reboredo» quando o mundo explodiu.”




Mário-Henrique Leiria, “Contos do Gin-Tonic”, pp. 47-49, Editorial Estampa, 2. ª ed., 1976.

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