12/07/2019

...


“Nas horas em que a maré deixa a descoberto a antiga Praça do Comércio e a Avenida Marginal do século XX, já tenho feito algumas ligeiras explorações, e recolhido alguns fósseis e exemplares arqueológicos, de que minuciosamente falarei no meu Diário.
À míngua de interesse científico, não deixa de ser curioso um dos primeiros objectos que se me depararam numa pequena exploração, a leste da minha tenda, no mesmo sítio, talvez, em que se emaranhavam as vielas de Alfama.
É uma prancha, ou lâmina, petrificada, e recoberta de calcário e grés de formação marina. Fi-la imergir numa solução de corrosivo antilítico, e, desligado o calcário da prancha primitiva, pude ler nela, em indecisos caracteres:
ALTO AQUI!
LEGÍTIMO VINHO DO CARTAXO!
As memórias escritas do quinto período geológico, um pouco mais claras que as do período terciário e quaternário, e bem assim as preciosas informações do cenobita açoriano, convenceram-me de que a prancha aludida era uma tabuleta comercial; e de que a aparente redundância da expressão vinho legítimo era a mais legítima consequência do estado económico e social dos portugueses, no século XX, ou fins do século XIX, a que a prancha provavelmente pertencia.
Cartaxo devia ser algum burgo vinhateiro; mas, com o seu nome, vendia-se vinho legítimo e vinho falsificado. Parece que o mesmo sucedia com outras regiões vinhateiras, porque havia vinho do Porto, que era da Bairrada; vinho de Colares , que era de Tomar; vinho de Bordéus, que era de Carcavelos; vinho de Champagne, que era do Poço do Bispo.
Este quiproquó industrial estava tão radicado nos costumes do povo e no interesse das grandes indústrias, que, quando um governo julgou indispensável dar o nome às vacas e pôr os pontos nos ii, como então se dizia, uma empresa poderosa, Mixórdia & C.ª, fez uma revolta, que obrigou o governo a cantar a palinódia e deixar correr o marfim. Em todo o caso, não havia desdouro na transigência, porque estava ainda em voga uma ciência, chamada economia política, de cujos princípios bastará citar este: «laissez faire… mixórdia e tudo».
O que se dava com o vinho reproduzia-se nas demais indústrias: a manteiga era margarina; o café era grão-de-bico, o açucar era farinha, os panos da Covilhã eram panos de além-Caia. Por desamor a estes panos e outras fazendas suspeitas, esteve um ministro em risco de ser crucificado por uma seita de contrabandistas, que infestava o país.
E as falsificações estendiam-se a tudo, desde as indústrias até aos industriais, desde o povo até aos governos. Comerciantes de gente negra, bandidos de casaca e luvas, marçanos anónimos que surgiam endinheirados dos alçapões da fortuna, tinham no seu tempo o cognome de homens de bem, beneméritos e sustentáculos da pátria.”
Cândido de Figueiredo, “Lisboa no Ano Três Mil – revelações arqueológicas obtidas pela hipnose e publicadas em 1892”, pp. 25-27, Frenesi, Lisboa, 2003.

Sem comentários: