16/05/2018

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Coimbra, 16 de Maio de 1944
RAÚL BRANDÃO
Ao lado das grandes figuras realizadas, cuja sombra, de tão cerrada, nos arrefece, há uma outra categoria de artistas, que o são deveras, debaixo da copa de quem a gente refresca e medita. Insisto em que se não trata de artistas menores, ou coisa assim. Quando se diz artista, não há escala. Tão grande é, especificamente, Shakespeare como Baudelaire. Apenas um tocava num piano sem fim, e o outro num violino.
Destes homens assim, cujo poder material só vai à gaita feita dum caule de cevada verde, há aqui em Portugal imensos. Raúl Brandão, que é desses, é para mim dos mais atraentes e dos mais fecundos.
A obra realizada em tamanho, em Lusíadas, em Comédia Humana, em Sinfonias, destrói a obra por acabar, sonhada, esboçada, nimbada duma preguiça de promissão. As Berlengas que Brandão no deixou, as maravilhosas e nunca decifradas Berlengas que todos hoje conhecemos, não são as dos Pescadores. São o próprio assombro do artista, deitado nas rochas de Peniche a olhar os brumosos penedos. Um romance articulado da Candidinha talvez fosse eu, sei lá!, um grande livro. Mas não seria tão sugestivo como essa balbuciada Farsa que nos deixou, cósmica, protoplásmica, com portas para todos os horizontes da vida, e sem destino nenhum. Sempre que pego num livro de Raúl Brandão, estremeço. Como não sou capaz de o levar ao fim, como não é capaz de me possuir inteiro, parece-me sempre que toquei no grande corpo humano do autor, informe, mansarrão, aparentemente morto, e onde um raio de luz desencadeava uma tormenta. Já na estante, cada letra do título é ainda um dos seus olhos azuis de pescador, meigos e lancinantes, a contemplar-me.
As suas obras mais falhadas são para mim as melhores. As Memórias, por exemplo. De O Doido e a morte, obra perfeita, a gente ri-se e gosta, certamente. Das Ilhas Desconhecidas, a gente lê e gosta também. Dos Pescadores, a gente relê e gosta mais. Mas das Memórias, do Húmus, dos Pobres e do resto a gente não gosta. Fica com aquela massa imensa cá dentro para ir articulando pela vida fora de seu vagar. Porque uma coisa é um livro falhado e condenado à morte, e outra um livro falhado e condenado à vida. Há lá coisa mais palpitante de seiva, de eternidade, do que certos bosquejos de Raúl Brandão, a arfar como ondas sem vento num mar de emoção!
O grande sonhador não foi capaz de contar uma história direita. Não tinha imaginação romanesca, nem sabia. Mas cada esforço, cada passo para nos dizer a palavra específica sobre uma figura, é um alanceado desespero de ternura e trágica beleza.
Não é preciso que Raúl Brandão, ou qualquer outro artista assim, fique no primeiro lugar da história da literatura. Um primeiro lugar ao lado de Frei Heitor Pinto ou mesmo de Sá de Miranda interessa pouco. Mas já não é o mesmo ficar ao lado da sua própria evidência, tentador como um fruto imaturo.

Miguel Torga, “Diário III”, pp. 43-45, 1954, Coimbra.

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