06/04/2018

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Gerez, 6 de Abril de 1944 Ainda a leitura destes frades nacionais, e a convicção cada vez mais provada de que a vida mental portuguesa não tem crescimento. Parece que cada escritor, cada artista, aqui, começa sempre de novo. Camilo é tão primário como Fernão Lopes, e João de Deus tão ingénuo como D. Dinís. Nenhuma geração, desde que Portugal é Portugal, pegou na herança que lhe deixaram, e aumentou o capital. À gente de setenta, por exemplo, clara, luminosa, racionalista, seguiu-se uma outra sebastianista e brumosa. Onde se entronca Antero? Quem ergue hoje o facho que brilhou nas mãos de Garrett? Perdem-se as raras mensagens que de tempos a tempos aparecem, e cada alfobre literário é composto por uns pobre pacóvios que vêm de Trás-os-Montes ou do Algarve, e que entram a gatinhar nas letras ou no pensamento como se a arte e as ideias estivessem ainda no Condado Portucalense. A cultura não chega ao povo, e quem vem dele não a pode trazer, evidentemente. Isto não é falta de respeito nem de carinho pelo que temos. Deus sabe a ternura que me desperta uma das nossas páginas gordurosas de prosa! É apenas uma verificação imparcial. Se pegamos numa história da nossa literatura, lá temos o sábio Fr. Amador Arrais, o inefável Heitor Pinto, o velho Manuel Bernardes, o nunca assaz padre Vieira. Mas se tratarmos duma história do nosso pensamento, é a mesma gente que nos aparece, a ser pau para toda a colher. O mesmo nome serve para representar a poesia, a novela, o teatro, a filosofia, a mística, a retórica, tudo quanto Marta fiou. O pior é que Marta fiou uns tormentos que arranham a alma de quem os veste! Já o romance fez todas as experiências, tentou todos os caminhos, e o nosso ainda a choutar em Fornos de Algodres! A coisa começou menos mal com Bernardim Ribeiro, mas quem deu continuidade àquele nosso esmoer saudoso dos sentimentos? Fazemos uma arte de impulsos, desarticulada dum todo, anárquica e fragmentária. Também não queria um imbricamento tão apertado como existe em certas terras, onde se está a ler Gide e a entender Montaigne. Mas pedia uma linha de propósitos, uma ramificação constante da mesma cepa comum, dando cada ramo as suas flores e os seus frutos. Mas não. Por mais que a gente se esforce, o que é certo é que em toda a nossa literatura não há verdadeiramente uma obra que seja um facho a arder na grande noite da humanidade. Onde temos nós coisa que se compare a um D. Quixote, essa gigantesca coluna do génio mais estremado que se viu? Camões? Muito bom, evidentemente, mas é preciso mais. Ainda foi a nossa limitação que cantou ali. Os Lusíadas! Logo no título a nossa tacanhez se manifestou. Os outros chamaram às epopeias deles Odisseias, Paraísos Perdidos, Divinas Comédias, etc. Nomes que agarram mundos. Nós ficámo-nos pelos lusíadas desta pobre Lusitânia. Bem se sabe que o nacional português era na ocasião o universal. Mas está justamente aí o limitado da visão. Nunca o relato grandíloquo das façanhas dum povo podia constituir em si matéria de eternidade. A isso era preciso juntar-lhe qualquer coisa de mais simbólico e geral, uma síntese que ficasse para sempre a ser um marco de imaginação e de poder criador. Quase tão ilegível como os Lusíadas, a Divina Comédia tem contudo a visão assombrosa e apocalíptica do Inferno. E sempre a humanidade há-de encontrar ali a concretização dum terror, dum enigma que lhe devorou a fantasia. Nas piores páginas do Quixote permanece vivo o diálogo infindável e universal do espírito e da matéria, e é isso que nele importa fundamentalmente. Ora Camões não levantou o pano a nenhum mistério. Deu a volta ao mundo, como Fernão de Magalhães, a cantar as nossas glórias. E as nossas glórias passaram…
Mas está bem, aceitemos Camões. E a seguir? A seguir vêm dois séculos em que ninguém sabia o que era um verso! Lá aparece Garrett por fim a estudar o romanceiro, a aprender de novo a magia das coisas, e consegue escrever as Asas Brancas. Mas, ao lado, Castilho continua a rimar arcàdicamente, e Herculano permanece granítico, a fazer cruzes quebradas como um mau pedreiro. Ora a arte e o pensamento implicam um afinamento contínuo de processos, um saber cada vez mais sólido e desanuviado. Perdendo-se a experiência passada, é natural que tenha de se recomeçar com meios simples e primários. E o progresso é impossível. De resto, esse crescer contínuo, além doutras vantagens, evitava-nos o dissabor de certas adptações ou imitações serem tão grosseiras e calvas. Aflitos, os nossos artistas e pensadores, em certos momentos, começam a correr para apanhar o comboio de uma actualização universal. E como vão sem bagagem, nus e ingénuos, o resultado é no fim a roupa que vestem em Paris tapar-lhes o melhor da personalidade.
É claro que uma verificação destas só é possível se puder servir o futuro. Mas é exactamente no futuro que eu penso.
Só há grandes literaturas onde o povo é permeável à cultura. Onde se leu a Bíblia à lareira durante centenas de anos, e onde as Mil e uma Noites não destoam ao lado de uma charrua. O nosso povo, que é donde sairam os nossos maiores, precisa dum banho lustral de pão e de beleza. E então, sim! Então cada escritor português que vier não terá apenas para descrever, e grossamente, as pitorescas romarias da sua aldeia.

Miguel Torga, “Diário III”, pp. 26-30, 1954, Coimbra.

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